Na língua inglesa são chamados de “Driver’s cars”. Não necessariamente carros esporte, mas sim carros feitos para a diversão ao volante, mais que qualquer outra coisa. Aqui no Brasil não temos um nome específico para tal coisa. A ideia é algo onde a diversão ao volante seja o cerne de toda a história. Que os controles sejam sublimes, previsíveis, respondendo tão bem e instintivamente que o uso do adjetivo “telepático” não parece irreal. Que a maior consideração de projeto seja o ato de dirigir rápido. Ato de dirigir mesmo, de verdade, sem ajuda externa.
Você realmente gosta de dirigir? Não ligaria ter que aprender a fazer dupla-debreagem em caixas não sincronizadas? Curte quando consegue acertar dois punta-taccos em seguida antes de uma curva? Estes carros são para você.
O interessante é que não necessariamente são os mais velozes carros já criados. Não, não falamos aqui da interessantíssima horda de supercarros modernos, coisas como McLarens, Ferraris, Porsches e Bugattis, tão impossivelmente velozes, estáveis e potentes que parecem ficção científica, naves espaciais terrestres que anulam as leis da física. Falamos aqui de carros menos avançados, dois, três, dez passos atrás do estado da arte da velocidade pura. Coisas que esquecem o expandir das fronteiras dinâmicas para focar em algo mais difícil de alcançar, a diversão do motorista.
Carros onde, por clara consequência, um piloto de verdade é necessário; gente que se interessa e sabe dirigir. Nada de controle eletrônico, ao menos que seja invisível. Nada de câmbios de dupla embreagem, por mais que sejam legais e infinitamente mais rápidas e eficientes em certos carros; não falamos de coisa fácil demais aqui. Mesmo a aderência em curvas não é o mais importante; controlabilidade e previsibilidade de comportamento, sim.
São carros onde a união homem-máquina é completa. Não fáceis de dirigir como os mais modernos, mas coisas que, aprendidas suas nuances de comportamento, se tornam uma extensão do motorista. Suas reações são sabidas antes de acontecer, traseiras saem quando se quer, frentes são obedientes sempre. Os motores são alegres ao serem usados à moda, e gritam entusiasmados ao subir de giro.
Nestes dez carros, todos eles clássicos imortais com uma séria história de fãs apaixonados determinados a passar à frente sua história, existe algo a mais. São criações onde tudo se integra em um todo muito maior que as partes separadas. Sublimes casos de uma criação tão coesa que mesmo seus defeitos não podem nem devem ser eliminados; fazem parte de uma experiência única ao volante que não pode ser melhorada. Não dá para aumentar potência, não dá para colocar mais pneu, não dá para mudar nada. Literalmente, se melhorar, estraga.
Em ordem cronológica, são eles:
1) Mercer Raceabout (1911-1914)
Bolando um carro de competição que podia ser usado nas ruas, e, portanto, fabricado em série e vendido em representantes da marca como um carro comum, a Mercer quase que acidentalmente criou o tipo de veículo que hoje definimos como “carro esporte”. O nome em si vem do fato de que pode ser usado para esporte. No caso, corridas, claro. O dono dirigia seu Mercer até a pista, removia faróis e para-lamas, e estava pronto para competir.
Mais de 100 anos depois, o Mercer Raceabout ainda é um carro extremamente desejado, com uma legião de fãs. Todo mundo que o dirige sai espantado em como algo pode ser tão divertido, vindo dos primórdios do automóvel. Mas se você conhece a história do carro, e seus detalhes, isso não espanta nada.
Primeiro, é um carro onde nada é supérfluo. Basicamente, é um chassi curto com sua mecânica coberta da forma mais básica possível. Não há uma “carroceria” em si. Os dois bancos estão expostos totalmente, existe uma cobertura para o motor, tanque atrás dos bancos, para-lamas básicos, e só. Não há teto nem portas nem laterais nem nada. Para-brisa? Apenas um engraçadíssimo monóculo preso à coluna de direção, para impedir que alguns insetos cheguem à cara do piloto.
Mas isso faz dele, claro, um carro leve. O motor é um enorme quatro em linha que era estado da arte para seu tempo: dois comandos de válvulas, um de cada lado do bloco, acionam diretamente válvulas verticais viradas para cima. Este tipo de motor é chamado de cabeçote em “T”, porque o desenho em seção tem esta aparência. Com 4,9 litros de cilindrada, dava algo em torno de 60 cv, o que parece ridículo hoje, mas algo incrível em um carro tão leve então. Definitivamente não era lerdo. Velocidade máxima de 140 km/h era reportada, algo incrível ao seu tempo.
Na verdade, todos que o dirigem são unânimes: uma experiência sensacional ao volante. Você se senta quase no eixo traseiro, a coluna de direção enorme e inclinada coloca o volante perto de seu peito. Senta-se alto, exposto a tudo. Apesar da falta de cinto de segurança, os bancos têm laterais pronunciadas e te seguram na posição. O carro anda surpreendentemente bem, e com os freios pífios da época, se diminui a velocidade principalmente derrapando; deliciosas e completamente neutras derrapagens em quatro rodas. Direção precisa, um torcudo motor que responde linearmente, os pneus finos, e o ajuste neutro do comportamento fazem esses four-wheel drifts durarem o tempo que o motorista desejar.
Pense um pouco nisso. Imagine. O que mais um entusiasta pode querer?
2) Bentley 3/4,5/6,5 litre speed (1920-1931)
Quando ainda corria com a Alfa Romeo, Enzo Ferrari dizia, com claro sarcasmo, que os Bentley eram os mais velozes caminhões do mundo. Uma ótima maneira de apresentar estes carros.
Muito desse sarcasmo de Enzo vinha da sua incredulidade quanto à eficiência da fórmula de W.O. Bentley em competições. Os tais caminhões velozes praticamente dominaram as 24 horas de Le Mans em sua época, vencendo em 1924, e depois quatro vezes seguidas a partir de 1927. Brutos e nada sofisticados se comparados aos Alfa, sim, mas não menos eficazes por isso.
Bentley na verdade pretendia ser uma marca de luxo, não de esporte. Mas seus incríveis motores, torcudos e potentes, sua construção sólida e inquebrável, e seu decente comportamento em curvas fizeram um bando de aristocratas ingleses criarem carros de corrida baseados nos chassis da marca, originalmente concorrentes de Rolls-Royce. Com carrocerias básicas e leves ao invés de enormes limousines, imediatamente se tornaram competitivos.
É uma experiência diferente dos carros esporte tradicionais. Mais ligada à força bruta do motor, e força física ao volante, além de muita coragem, claro, os Bentleys eram carros de um tempo em que homens eram Homens, e as mulheres agradeciam por isso.
Bentleys dessa época, chamados de “W.O.” por serem os únicos criados por Walter Owen Bentley (a marca foi absorvida por sua rival Rolls-Royce em 1931), até hoje são mantidos com carinho, e quase 100 anos depois, ainda gozam de um ativo mercado de compra, venda, reforma e manutenção. E seus preços estratosféricos refletem sua incrível desejabilidade para o entusiasta.
3) Bugatti tipo 35 (1924-1930)
O tipo 35 na verdade era um carro de Grand Prix. Mas isso não impedia várias pessoas de equipá-lo como carro de rua e andar com ele todo dia, nos anos 20.
Uma obra de arte lindíssima; uma ode as técnicas de moldar metal; um carro de corrida avançado e competitivo no ápice do esporte então; uma obra profundamente pessoal e apaixonada do seu criador, o insubstituível Ettore Bugatti. O mais visceral e profundamente adorável carro esporte clássico que já andou por este planeta. E dono do mais incrível berro já emitido por um motor de combustão interna. Outro clássico imortal, ainda em produção na Pur Sang, na Argentina.
4) Lotus/Caterham Super Seven (1957-hoje)
Criado numa tarde de domingo, para escapar de lavar a louça, por Colin Chapman e “Mac” Macintosh, o Lotus Seven é o clássico mais imortal, e o exemplo mais emblemático desta lista. A definição mais perfeita do termo “carro esporte”. Já falei dele repetidas vezes aqui no AE, então se me permitem a indulgência, vou citar a mim mesmo:
“Simplesmente não há nada comparável a ele.”
Feio, antiquado, não aerodinâmico, parece um inseto, um minúsculo alienígena de pernas finas e olhos grandes e esbugalhados, que anda por aí arrastando a barriga no chão feito uma lagartixa. Mas ao mesmo tempo, para o entusiasta, um sem-fim de detalhes visuais chama a atenção e acionam as sinapses do desejo de nossas pobres mentes deturpadas por anos inalando cheiro da gasolina de alta octanagem: pequeno, baixo, obviamente leve, expõe suas belíssimas partes íntimas de suspensão sem pudor algum. As rodas e pneus parecem mais altos que a carroceria. Na lateral do capô, os filtros de ar da dupla de Webers frequentemente ficam para fora, sobrando, saltando para fora, feito o decote de Sophia Loren — coitado, sempre tentando inutilmente conter toda aquela voluptuosidade. Seu volante pequeno e sua posição de dirigir rente ao solo prometem, mesmo com o carro imóvel, prazer supremo.
É realmente algo de outro mundo, um alienígena entre mastodontes modernos. Que outro automóvel despreza tão completamente a necessidade de uma carroceria e de um desenho bonitinho? Que abandona a moda se mantendo idêntico por 60 anos, e usando apenas a quantidade mínima de roupa para cobrir suas partes mais pudentas? Que outro carro, destituído de toda e qualquer gordura no corpo, tão comum desde tempos imemoriais na forma de cromados, frisos, guelras, barbatanas e outros adornos inúteis, se assemelha tanto a um atleta? Que outro carro destila tão perfeitamente o prazer ao dirigir a sua forma mais básica, essencial e perfeita?
Nenhum outro. O Seven é a expressão máxima do espírito entusiasta, um carro que carrega a simplicidade e a inteligência acima da glória, da fama, e do status. Um carro onde todo excesso, todo o supérfluo, é deixado de fora de propósito, por um motivo, e não para ganhar um troco. Que não se importa em ser desconhecido e desprovido de glamour. Um carro que põe o prazer e a velocidade acima até daquela que é a função básica de todo automóvel, o transporte de pessoas, subvertendo assim a sua própria lógica básica.”
5) Austin Mini Cooper S (1963-1971)
Não, não falo aqui do MINI moderno, parido pela BMW. Não que não goste dele, pelo contrário, são carros incrivelmente legais, se bem que um pouco enfeitados demais. Falo de algo muito mais importante e incrível: o Mini Cooper S original de 1963.
Sir Alec Issigonis, quando criou o Mini original (lançado em 1959), o fez não querendo um carro para entrar nesta lista. Era apenas um carro pequeno e barato, transporte básico. Mas ao fazer um monobloco rígido com uma roda de 10 polegadas em cada canto, e motor transversal dianteiro com tração também dianteira para aproveitar melhor o espaço disponível, criou não somente algo muito próximo do carro atual, mas também literalmente um kart para 4 pessoas e bagagens: uma roda em cada canto, suspensão de curso curto por cones de borracha, centro de gravidade baixo.
Não demora para John Cooper, famoso construtor de carros de corrida, fazer uma versão brava do Mini, visando competições de rali e pista. A versão “S” do Cooper, a mais brava, com 1, 25 litro e dupla carburação SU, aparece em 1963.
Aboletado dentro daquele minúsculo carrinho, baixíssimo, com o volante quase horizontal entre as pernas, dançando em nossas mãos, motor entusiasmado e girador (se não lá muito potente), câmbio de engates rápidos com alavanca longa, e uma aderência e previsibilidade única no comportamento, tornaram rapidamente o carrinho uma lenda entre os entusiastas. E um verdadeiro anão matador de gigantes nas pistas.
Depois dele, Dante Giacosa selou a configuração do carro moderno aumentando o tamanho das rodas, colocando uma suspensão de verdade, e movendo o motor para o lado do câmbio, e não em cima, no Fiat 128 dos anos 60. Depois, a VW cria o primeiro Golf GTi nos anos 70, um carro pequeno familiar moderno (configuração de Fiat 128) com o espírito do Mini Cooper, descontinuado em 1971 (voltaria depois nos anos 90). Um tremendo sucesso, imortalizando esse novo tipo de “driver’s car”. Depois do GTi sempre tivemos pequenos hatchbacks familiares que são também uma delícia para dirigir, e que portanto não servem apenas para mover pessoas.
Mas nenhum deles foi tão perfeito nesta função quanto o original. Gênese.
6) Ferrari 250 GTO (1962-1964)
A base de onde apareceu o GTO, o 250GT, já era algo sublime: um carro equipado com um fantástico e minúsculo V-12 de 3 litros que nasceu para Fórmula 1 não podia ser diferente. Mas o GTO foi seu ápice, um carro de corridas desenvolvido por Giotto Bizzarrini para vencer as categorias GT em Le Mans e outros circuitos famosos, mas que acabou como talvez o mais incrível carro esporte, de rua, já criado.
O motor era o mesmo usado nos 250 Testarossa (carros de competição dedicados), com seis Webers duplos, 300 cv, e um berro de acordar defuntos. O motor e transmissão (essa nova e inédita de 5 marchas) eram montados baixos e recuados, e a carroceria tinha baixo arraste como objetivo. Junte isso a um acerto sublime, freios e pneus de competição, e se tem o que muitos consideram a mais fantástica experiência ao volante na face da terra. Até hoje.
Um balanço perfeito de potência, suavidade, berro, câmbio e embreagem deliciosos, direção leve, precisa e linear, equilíbrio perfeito em curvas e uma sensação de comandos mecânicos perfeitos, cuidados a minúcia como se fossem movimentos de um relógio suíço. Não é à toa que é o mais caro automóvel que se tem notícia, batendo recordes sem falhar toda vez que algum é colocado à venda. Da última vez que isso aconteceu em público foram nada menos que 48 milhões de dólares. Isso mesmo, quase 200 milhões de reais.
7) Porsche 911 (arrefecido a ar, 1965-1998)
O que mais dizer do Porsche 911 original que já não se tenha dito? Seis cilindros contrapostos arrefecidos a ar não deviam funcionar pendurados lá atrás na extremidade traseira de nenhum carro. Mas a Porsche provou que desenvolvimento diligente consegue consertar quase tudo; o que não consegue na verdade são as vantagens inerentes daquilo. Neste caso capacidade de tração excepcional, direção sem assistência leve e precisa, capacidade de frenagem incrível, e possibilidade de pilotos de verdade usarem o movimento de pêndulo do motor a seu favor.
O 911 original precisava ser entendido, e muito treino e paciência era necessário para se aproveitá-lo. Mas uma vez dominado, dizem ser a mais estreita relação homem-máquina. Um clássico que teima em não morrer, centenas de especialistas empenhados em mantê-los vivos. E em alguns casos, recriando-os melhores que quando novos, como é o caso da californiana Singer.
8) Ferrari F40 (1987-1992)
Em 1987, um pouco como um objeto de pesquisa, meio como uma homenagem a Enzo, e um pouco para ganhar um bom dinheiro também, os engenheiros de Maranello pegaram o 288 GTO e se perguntaram: e se esquecêssemos de todo resto e levássemos o prazer ao dirigir até o máximo que pudermos? Sem frufrus ou frescuras; apenas o que interessa para uma experiência legal ao volante?
O resultado foi o mítico F40. Um carro que apesar do interior espartano, da cara de mau, e do V-8 3-litros biturbo de 478 cv, é dócil feito um filhote de poodle. Feroz em potência e velocidade, claro, mas fácil de ser dirigido, com um motor brilhante em linearidade, potência a todas as rotações, suavidade e berro, junto a uma alavanca de câmbio perfeita (e linda; grelha cromada embaixo, alavanca fina cromada saindo dela e bola preta em cima), direção sem assistência sublime e comportamento totalmente benigno.
Até hoje é sonho dourado de todo entusiasta. Um carro moderno, com tudo que gostamos dos Ferraris antigos.
9) Mclaren F1 (1993-1998)
O McLaren é outro carro que não precisa de muita explicação. Desenhado com o motorista no centro de tudo, até do carro, tem motor grande aspirado (V-12 de 6,1 litros), mas que gira até 8.000 rpm e quase não tem volante ou inércia interna, câmbio manual transversal, e nenhuma assistência de direção ou freios. Outro carro com uma legião de fãs, e que apesar de ter custado um milhão de dólares quando novo (algo então inédito), só aumentou valor: hoje vale algo em torno de dez milhões de dólares.
A perfeição não vem barato.
10) Mazda MX5 Miata (2019)
O Miata para o mercado americano, ano modelo 2019, com o dois-litros aspirado de 181 cv, é um minha opinião o melhor exemplo atual do que falamos aqui. É um carro relativamente simples e barato, mas onde o prazer à direção está acima de qualquer outra consideração. Durante os anos pessoas pedem para a Mazda colocar turbos, V-6, motor rotativo de mais de 300 cv, qualquer coisa que faça dele um monstro de potência como tantos outros carros esporte atuais. Mas a Mazda sabe que não se mexe num balanço perfeito; se você não entende isso, se não entende a delicada perfeição deste carro, ele não é para você. Compre outra coisa. Se tentar melhorar, estraga.
Carros esporte modernos já deixaram o Miata para trás em desempenho faz muito tempo. Hoje, comparado a Mustangs, Camaros e Porsches e outros, é definitivamente lento, e o tempo de volta em pista incomparável. Não é carro para ganhar corrida de ninguém.
Mas quando se fala em pura diversão dirigindo à moda, o papo é outro. Um motor girador e entusiasmado, suspensões sublimes, câmbio manual referência e a integração entre carro e motorista como cerne do projeto. É um roadster perfeito, moderno, mas ainda com tudo que gostamos de carros antigos, aquela interação mecânica e o controle total de comandos sem interferência. Uma brisa de ar fresco em meio a monstros cuspidores de fogo.
E apesar de lento para um carro esporte moderno, em termos absolutos não é: faz 0-100 km/h em menos de 6 segundos. Um tempo parecido com o do Ferrari 250 GTO, na verdade. O que nos faz entender como o tempo passa, e ao mesmo tempo, que não precisamos do mais rápido de todos para ser feliz.
Como não amar algo assim?
MAO