O assunto “alta quilometragem” vem sempre à tona em qualquer rodinha de conversa sobre carros ou mesmo no exercício (exercício mesmo) de compra de um carro usado, e por aqui não é diferente.
Algum tempo atrás, o Josias Silveira escreveu uma excelente matéria intitulada “Carros com 100 mil km: quem tem medo?” (por sinal, a segunda matéria mais acessada no AE, mais de 47 mil visualizações), e recentemente o nosso novo produtor e editor de vídeos Márcio Salvo, com seu “Um Focus e seu proprietário em festa”, reacendeu o tema na minha cabeça enquanto fazia (pela segunda vez!) a jornada Garça-Três Pontas-Garça,a primeira narrada aqui no AE.
Embora os carros tenham evoluído significativamente nos últimos 40 anos, alta quilometragem de um carro, simbolizado pelo número “100” ainda representa um valor carregado de simbolismo, quase que de mau agouro, como ocorre com o 13 nos Estados Unidos (e nos últimos 13 anos, com esse número aqui no Brasil também…)
Confesso que eu mesmo, embora em teoria isento de qualquer preconceito em rodar com veículo com alta quilometragem, já três vezes me vi diante do dilema de levar para casa um veículo com uma quilometragem alta em relação à idade.
Atavismo?
Até um passado não muito distante, os motores dos veículos estavam bastante longe de ter a durabilidade dos atuais. Chegar aos cem mil quilômetros era prova inequívoca de durabilidade e resistência (embora houvesse casos de notória durabilidade, como ocorria com os motores GM 151 de 4 cilindros e 250 de 6 cilindros).
Era comum os carros chegarem aos cem mil já com os motores dando mostras de cansaço com ruídos de “batida de mancal” nos motores nas primeiras partidas, aumento do consumo de óleo, perda de potência, apenas para citar alguns. Mesmo hoje existem os chamados “óleos de alta quilometragem” — melhor seria “óleos de quilometragem avançada! — cuja recomendação (pasme!) é o emprego em motores com mais de 100 mil quilômetros!
Dessa maneira, muitas vezes adquirir um veículo com dois anos de uso e mais de 60 mil quilômetros (média de 30 mil quilômetros/ano) era prova inequívoca de estar comprando um carro com o motor já usado em significativa parte de sua vida útil, uma vez que muitos motores mal atingiam 100.000 km.
Hoje, o incomum é NÃO chegar a essa quilometragem em perfeita ordem. Há diversos táxis em São Paulo, das mais diversas marcas e modelos, com 200 mil, 300 mil e mesmo 400 mil quilômetros rodados sem nunca ter sofrido qualquer intervenção de grande monta no motor. O caso mais extremo que vi (e de perto!) foi o de um Santana 2-L, carinhosamente chamado de “Guerreiro”, de um amigo, proprietário rural, atualmente com 550 mil quilômetros rodados ao custo de apenas uma troca de cabeçote!
Mesmo sabendo de inúmeras histórias de carros “centenários”, “bi” e até “tricentenários”, ainda convivemos e cremos no estigma do motor de 100 mil quilômetros, talvez até influenciados pelo fato dos hodômetros “zerarem” ao cem mil, um atavismo sepultado pela Kombi (ainda com motor arrefecido a ar) que no início dos anos de 2000 passou a ter hodômetro com centena de milhares de quilômetros.
Também era comum os demais componentes do veículo dar mostras de cansaço: ruídos internos, infiltrações de água, problemas diversos em transmissão, suspensão, lataria e até mesmo a pintura dos veículos que literalmente “gastava” e requereria em muitos casos, além de uma “catação geral” de ferrugem, um banho de tinta. Era uma série de problemas que acabavam por minar a confiabilidade no veículo.
Hoje tudo isso se tornou secundário: um veículo com 100 mil quilômetros deixou de carregar aquela cruz de “carro em final de vida útil”
Então com 100 mil km é um “carro na melhor idade”?
A pessoa que compra um carro usado tem que ter em mente que seus componentes já não são mais novos. E certas partes, quando nos 100 mil km, já são preconizadas trocas e em alguns casos, com desgaste acentuado.
Componentes de desgaste natural irão requerer manutenções corretivas devido à sua vida útil. Talvez, o caso mais emblemático seja a embreagem que, por melhor que seja utilizada, sofre desgaste e mais dia menos dia requererá troca dependendo do tipo de uso que o veículo tenha sido submetido. Em alguns veículos com câmbio automático está prevista a troca de seu óleo.
Partes de suspensão também podem requerer troca, o que é extremamente normal no uso em superfície lunar típico de nosso país e mesmo amortecedores podem estar pedindo substituição. O aspecto geral de mangueiras do sistema de arrefecimento assim como o seu líquido também necessitam de atenção.
Freios são componentes importantes: devido ao (questionável e por mim abominável) hábito do “passe no disco de freio”, uma troca periódica de pastilhas pode requerer a substituição do disco, aumentando a conta final.
Em alguns casos, o próprio motor pode requerer alguma manutenção a mais como troca de correias (de acessórios, que pode ser trapezoidal ou poli-V, e a dentada do ou dos comandos de válvulas, lembrando que a vida útil de algumas delas é de 100 mil km), velas, cabos de velas, enfim, partes de desgaste natural que dão problemas com alguma frequência. Eventualmente pode ser necessário trocar a bomba de combustível por precaução e limpar as válvulas de injeção (“bicos injetores”).
Por isso também é importante saber o carro que se está levando para casa. Alguns modelos acabam sendo negociados por um preço extremamente convidativo no mercado de usados exatamente por conta desses fatores: o custo de reposição desses componentes ser literalmente proibitivo.
Um bom termômetro é o custo de reposição de alguns componentes como discos de freio, amortecedores, articuladores esféricos (“pivôs”), correias, etc., a disponibilidade dessas peças (Fáceis de achar? Mais raras que o estojo de ferramentas Hazet de Fusca alemão da década de 1950?) e a existência de peças paralelas de primeira linha para elas. É exatamente aí a melhor explicação do porquê alguns carros simplesmente desaparecerem até das zonas periféricas e outros permanecerem em uso por longos anos.
A aquisição de um veículo usado com quilometragem mais alta pressupõe que seu proprietário tenha consciência de algum tipo de manutenção ele terá de arcar. Não será apenas “gasolina, óleo e pé embaixo”. Entretanto, em um veículo de boa procedência — um bom indicador é o estado geral do interior, bancos, aspecto externo sem funilarias malfeitas, carros com pneus bons e de boas marcas tendem a pertencer a proprietários cuidadosos —faz essas questões e manutenções corretivas se tornarem menores diante dos benefícios que se tem, inclusive em preço, se valendo do próprio mercado, claramente pendente ao veículo “de pouco uso” do “aposentado que só roda duas vezes por mês” (mas se esquece da manutenção básica).
Paciência e uma análise criteriosa do que é necessário e terá de ser feito faz-se mister para que a compra de um veículo mais rodado não se torne uma fonte de aborrecimentos.
DA
Dois exemplos pessoais
Tive diversos veículos adquiridos usados, alguns com alta quilometragem relativa (quilometragem em função do tempo) e outros não, todavia usarei o exemplo de dois deles que considero emblemáticos.
Ano passado, ao adquirir uma pequena indústria, me vi diante de um dilema: preciso comprar uma picape leve, mas, o que adquirir? Dentro de uma limitação orçamentária, comprar um básico zero ou um completo usado? Se for usado, quais os critérios de escolha? Em meio a um monte de questionamentos, acabei optando pela aquisição de um veículo usado.
A tempestividade na entrega do carro (pagou, levou) e a pouca burocracia me fizeram optar pelo carro usado. Aliás, convenhamos, comprar carro novo é uma chatice sem fim: ir à concessionária, escolher o modelo, aí o modelo escolhido com a cor escolhida “não tem em estoque, precisa produzir, levará 60 dias”. Você então se contenta com um similar mas de cor idêntica ao dos vizinhos todos da rua (branco é a cor da moda) e ainda assim tem que aguardar dois dias para aprovar o cadastro (se for financiar), mais dois dias para o “financeiro conferir a compensação”, outros cinco dias “para a revisão de entrega”, mais dois dias para “agendar a entrega técnica”, uma semana para “sair o documento”, enfim, se tudo correr muitíssimo bem a espera é de no mínimo 15 dias.
Na minha busca pelo “usado perfeito” (se é que isso existe), achei uma Saveiro cabine simples, completa (rodas de liga leve, comando do rádio/mídia no volante, algo raro numa cabine simples) mas não constava no anúncio a quilometragem. Fui ver o carro, à venda numa loja em Marília (SP), distante 34 quilômetros de casa. Ao chegar lá a impressão inicial foi a melhor possível: rodas perfeitas, sem ralados, ao contrário da lataria com muitos pequenos riscos. O interior intacto, com o volante íntegro, sem marcas de descamações e reformas e cheiro natural de carro, não de perfume ou de pano molhado (terrível — não sei o porquê de estacionamentos de carro insistirem em não secar adequadamente o interior nas limpezas úmidas). De ruim mesmo, somente as desagradáveis películas nos vidros, que embora não fossem das mais escuras, já eram o suficiente para atrapalhar a visibilidade. Mas nada que com jeitinho (paciência e uma lâmina de barbear) não desse para corrigir.
A parte inferior do carro, um espetáculo, sem quaisquer marcas de assoalho ralado, amassado (acredite é possível amassar um assoalho – já fiz isso) e com o “bate pedra” impecável (não tinha marcas como nas laterais!). Externamente, uma série de pequenos riscos e marcas do tempo, algo desagradável aos olhos mas que denota que o carro não foi repintado, dando margem a esconder algo mais sério.
O susto veio quando virei a chave e acenderam-se as luzes do painel: 88.746 km! Confesso que, na hora, senti um misto de arrepio (caramba, alta quilometragem para três anos de uso) e tristeza (estava tudo tão bom para ser verdade até ver essa quilometragem…). Depois de muito ponderar, abandonei o preconceito, segui a lógica (com um pouco de intuição) e comprei o carro num preço extremamente vantajoso (pedi 10% de desconto em função da…alta quilometragem!) e uma compra que passado um ano (isso ocorreu em outubro de 2017, precisamente no dia 14) vejo o quanto foi acertada: o carro está aí rodando uma média de 2.500km/mês e hoje está com 118 mil km rodados, com o motor esbanjando saúde.
Depois vim a descobrir que o carro havia pertencido a um proprietário de uma distribuidora de cimento e pequeno proprietário rural cuja propriedade fica à beira dos asfalto e que somente ele usou o carro, em grande parte do tempo, em estradas asfaltadas. Até as pastilhas de freio eram originais!
Neste um ano de uso procedi algumas manutenções corretivas dada a própria idade do carro, como a troca dos dois articuladores esféricos (pivôs) da suspensão, freios, todas as correias, embreagem, além de cabos de velas, velas e revisão no sistema de injeção. Entretanto o resto do conjunto permanece íntegro e tenho plena confiança no veículo para efetuar quaisquer viagens em quaisquer condições, e isso para mim é o mais importante em qualquer veiculo.
Num extremo quase que oposto, a Ford F-1000 4×4: adquirida com 14 anos de uso 150 mil quilômetros, em impecável estado de conservação, tinha um currículo quase que invejável: pertencera a um farmacêutico que a comprou para “poder ir pescar” e posteriormente vendida a um fazendeiro que viera a falecer poucos meses depois de sua compra, ficando o carro praticamente guardado durante cinco anos em virtude de inventário, rodando cerca de 2 mil quilômetros por ano (durante cinco anos!), o mínimo possível para garantir o funcionamento. Pois foi um pesadelo.
Dado o longo período de ficar guardada, estava com muitas borrachas ressecadas, incluindo ai partes plásticas do painel que se quebravam como vidro. O motor queimava bastante óleo pois, apesar de o MWM 4.10T ser um motor para mais de 800 mil quilômetros, esses motores diesel quando mal amaciados, tendem a apresentar desgaste no brunimento dos cilindros e, como resultado, maior consumo de óleo, e isso sem falar nos retentores de diferencial (estouraram todos quando o carro passou a ser usado) e cruzetas que acabaram por ficar com suas graxas ressecadas.
Dessa forma aquilo que um dia havia sido um sonho acabou se tornando uma fonte de dores de cabeça e aborrecimento, e acabei vendendo a caminhonete por puro desânimo em ficar correndo atrás de conserto.