Quando iniciei minha carreira na área de Estilo da Chrysler do Brasil, recebíamos o nome de Estilistas de Automóveis. Uma década mais tarde veio a palavra designer, que virou moda e, mais que isso, acabou sendo utilizada a torto e a direito mais como elemento de marketing do que qualquer outra coisa.
A palavra “estilista” praticamente desapareceu da linguagem industrial até mesmo na moda, onde era muito empregado.
Porém, na minha interpretação, ainda continuam existindo alguns “designers” que eu chamaria de “Estilista de Automóveis”. A expressão em inglês soa muito bem: Car Stylist!
Já em Português, estilista chega a sofrer “bulling” por parte dos mais rústicos.Porém, na realidade, o designer é um funcionário da máquina produtora de automóveis em massa e o estilista é o artista a serviço das marcas exclusivas, de produção baixa ou
única.
O Designer-chefe da Ferrari hoje é o Sr. Flávio Manzoni, com quem trabalhei em Wolfsburg quando ele foi, por um período relativamente curto, Chefe Criativo de Design da VW, e hoje na Ferrari, por questões de marketing, tem o cargo de Designer-chefe , pois a palavra design está na moda (ainda) e induz a um sentido de tecnologia, modernidade e sofisticação. Porém, do meu ponto de vista, o certo seria chamá-lo de Styling Director ou qualquer coisa do gênero.
Os maravilhosos Ferraris modernos são construídos com processos e materiais muito diferentes daqueles dos carros de produção em massa, justamente pelo baixo volume (8.000 unidades por ano).
Só para comparação, a Volkswagen chegou a produzir 6.000.000 de unidades por ano.
Esta enorme diferença de volume de produção gera dois fatores e efeitos principais.
No primeiro, a baixa produção significa,do ponto de vista de marketing, o efeito da exclusividade, do luxo, da coisa especial, fora de série, que valoriza muito o veículo.
Caso dos fabulosos Bugatti Veyron, em que foram produzidos apenas 450 exemplares durante seus dez anos de fabricação.
O Veyron foi desenhado pelo “estilista” Jozef Kaban, que conheci pessoalmente quando chegou na VWAG como jovem talento que foi “adotado” pelo Designer-chefe Hartmut Warkuss, meu ex-chefe na Volkswagen AG. Hoje Kaban é o Designer-chefe da… Škoda.
O segundo fator, que é o mais importante, são os processos de produção e materiais utilizados nestes veículos, que automaticamente dão maior campo para a criatividade, agilidade no projeto e decisões e efeitos visuais e construtivos que carros de produção em massa não conseguem alcançar.
Por exemplo, a carroceria de carros de produção em massa são extremamente complexas e caras de ser produzidas, já que é necessário desenvolver e construir uma enorme quantidade de ferramentas de prensagem de metal, que são extremamente caras e complexas.
Só para você ter uma ideia, as grandes peças de chapa aparentes de um automóvel são: laterais externas e internas (4) portas externas e internas (8), teto externo e interno (2), capô (2), painéis frontal e traseiros (4) e assoalhos, central e traseiro (4), painel de fogo (1), caixas de roda internas (4) e longarinas dianteiras (2).
Em média, para estas peças você precisa de quatro ferramentas (moldes) por peça.
Isto significa ao redor de 120 ferramentas só para formarem o grosso da carroceria. (somente chapa). Isso sem contar os inúmeros reforços e peças menores que se espalham por todo o carro.
Cada uma destas ferramentas têm que ser sólidas o suficiente para prensar milhões de peças e custam cada uma milhões de reais dependendo do tamanho e sofisticação.
Depois disso todas estas pecas tem que ser soldadas juntas, através de dispositivos de sujeitação e robôs, que ocupam uma enorme área dentro da linha de produção.
Já para carros esportivos como Bugattis, Lamborghinis, Ferraris e outro exóticos, suas carrocerias são produzidas em compósito de fibra de carbono, que são geradas por ferramentas de moldes “moles” muito mais baratas de produzir. As peças são moldadas manualmente, e embora tenham um processo mais longo de fabricação (feitas à mão uma por uma), têm um custo muito mais baixo quando se analisa o processo como um todo, já que os volumes de produção são muito inferiores e montados um por um em boxes relativamente pequenos.
Normalmente o chassi destes carros são fabricados com “chapas de alumínio” soldadas, dispensando portanto um chassis estampado, o que minimiza muito o investimento em produção.
Na verdade,este carros são produzidos como se fossem protótipos ou carros de corrida.
Também é fato que a maioria destes carros dão prejuízo para as companhias!
No caso do Bugatti Veyron, a lenda diz que, embora ele custe mais de € 1 milhão
para o cliente, ele custa € 4 milhões para ser fabricado! Acredito nisso!
Há maneiras de minimizar este prejuízo quando se tem uma potência como o Grupo Volkswagen por trás do projeto.
Sei que o fornecedor do painel do antigo Polo, que foi caríssimo (muito mais do que tecnicamente deveria custar) para nós aqui no Brasil, veio “indicado pela Alemanha”. Em off, fiquei sabendo que esta foi a maneira de compensar o fornecedor do painel do Bugatti, extremamente caro, e que o projeto nunca poderia ter um aval financeiro caso se tivesse que pagar o desenvolvimento e manufatura do painel, porque os prejuízos seriam enormes para o grupo.
Mas a grandeza histórica da marca Bugatti e a paixão pelo automóvel por parte dos chefes do grupo VW (Dr. Ferdinand Piëch e companhia) decidiu construir este que foi na época o carro mais exclusivo e caro do mundo.
Portanto não foi um designer que desenhou o Veyron, mas um estilista.
Outra característica do estilista é que nos seus projetos existe sempre um time pequeno que está ali para viabilizar as ideias do estilista, e não o contrário. Eles trabalham para o estilista. Ele sempre se dedica de corpo e alma a somente um projeto, o projeto do momento, até o fim.
Já nas grandes marcas e veículos de massa, existe um verdadeiro exército para controlar o trabalho do design, que tem que acompanhar mais de um projeto por vez.
Tudo é mais burocrático, e o designer tem que “encaixar” seu trabalho sob as limitações técnicas, e modinhas exigidas pela área de marketing, e “manias de chefes” de varias áreas. Coisas impensáveis num passado recente.
Uma época muito marcante por grandes estilistas foi a época de ouro do automóvel norte-americano, que gerou um avalanche de automóveis com uma concepção de estilo extremamente complexa e cara, durante os anos ’40 a ’70.
Os estilistas definiam complexas superfícies e muitos adornos (cromados) não se importando muito com a problemática do peso, do custo e meio de produção.
Os automóveis eram pesados, enormes e ESPETACULARES.
Convivi com um dos últimos estilistas brasileiros, o Celso Lamas, que foi o chefe de Estilo da Chrysler do Brasil.
Ele foi meu mestre e o homem que me abriu as portas para este mundo fantástico. O Celso era o típico estilista, com quase dois metros de altura, muito alinhado e educado — desde que você não pisasse no seu calo, nesse caso, mexesse nos seus modelos.
Presenciei brigas violentas dele com integrantes do diretoria de engenharia e administrativa da companhia na defesa de ideias radicais para os moribundos Dodge Darts/Chargers e Polaras.
Ele também me ensinou que os desenhos de estilo não deveriam ser exatos, mas, antes disso, transmitir e dar ênfase aos efeitos de luz, como “highlights” “spots”, enfatizar o “background” para ambientação, muito mais artístico do que técnico.
Já, quando entrei para a escola alemã, (Grupo VW) aprendi técnicas mais precisas de desenvolver e transmitir o design, como os “Tape drawings” em escala 1:1 e perspectivas com seções técnicas da superfície.
Todo trabalho era acompanhados (policiado!) pelas áreas técnicas, o que tornava nosso trabalho altamente desafiador.
Com a chegada da tecnologia digital a coisa piorou, no sentido de construção com controle absoluto através dos programas de desenvolvimento de superfície. Cada vez menos nos pomos a mão na massa,ou trabalhamos direto no modelo com os
modeladores de design.
Tudo é checado na tela e só para finalizar alguma fase, fresamos um modelo para apreciação física.
O resultado é justamente a padronização do design, através do uso de “clichês” técnicos e pasteurização do design.
Design puro
Mas antes de tudo isso, tinham os “encarroçadores”. No início, a construção da cabine era muito parecida com a das carroças, claro, porque o Homem
ainda não dominava as técnicas da cabine “feitas de peças prensadas”, como hoje.
Encarroçadores também eram chamados aqueles que desenvolviam carrocerias de automóveis no passado. E aí tem um história muito interessante sobre o trabalho de estilista, Designer ,artista seja lá o que for.
A carroça, é claro, nasceu por motivos funcionais, para transportar o homem e seus “bens”, daí seu desenho a princípio rústico. Mas quando a carroça começou a servir como transporte de reis, abastados e autoridades, então o fator “estilo” entrou forte na matéria.
E ali você vê a diferença do que um artista pode fazer num objeto, no caso, uma carruagem.
Numa de minhas viagens, visitei o Museu da Carruagem (Museu dos Coches) em Portugal e fiquei realmente boquiaberto com o que vi lá.
Trata-se de como ornamentar uma caixa de madeira que vai transportar, por exemplo, a Rainha e seus nobres e generais, políticos em geral.
São verdadeiras obras de arte ambulantes e o máximo em luxo individualidade e status na época.
Hoje o que se vê é o automóvel, dominando qualquer paisagem, com suas formas meio que padronizadas e sempre em mudança.
Hoje temos mais de um bilhão de automóveis no mundo, o que é até um pouco
alarmante.
Nos mesmos podemos sentir o impacto a longo prazo do aumento de carros nas ruas das grandes cidades. É um fenômeno mundial que, do meu ponto de vista,vai gerar a uma mudança radical nos meios de transporte,…como sempre.
Então, viva os artistas, encarroçadores, estilistas e designers que tornam a nossa caixa de aço mais bonita e confortável.
LV
Imagens do autor e netcarshow.com