Sempre tive muito orgulho do meu bom humor. Não logo que eu acordo, claro, que ninguém é perfeito e apesar dos meus esforços continuo levantando meio num limbo. Se ninguém conversar comigo os primeiros 15-20 minutos, fico normal. Se não… o Hulk é fichinha perto de mim.
Muito bem, habeas corpus preventivo já utilizado, tenho que reconhecer que tem outras coisas que me deixam de mau humor, independentemente da hora do dia. Nos últimos tempos tem sido essa mania de alguns meios de comunicação de convidarem ativistas para comentar notícias. O fato em si não seria problema se ficasse claro que eles são exatamente isso: ativistas. Não especialistas. Por isso suas opiniões deveriam ser avaliadas com cuidado e, de preferência, contrapostas com as de verdadeiros especialistas.
Um conhecido meu publicitário e jornalista especializado em motociclismo, Tite Simões, fez recentemente um desabafo nessa linha. Ele é aquele tipo de pessoa que sabe tudo sobre motos, é instrutor e vai além do gosto pelo veículo. Ele tem conhecimentos técnicos. Pois bem, ele e muitos amigos dele se revoltaram quando uma emissora de rádio convidou cicloativistas para falar sobre trânsito. Exclusivamente um lado do espectro do trânsito.O que eles fizeram? O que se espera de um ativista: defender a própria causa. Não debateram realmente as questões propostas, mas usaram o programa como um palanque para espalhar suas ideias. Novamente: não seria problema se isso ficasse claro para os ouvintes e se junto com o ativismo houvesse algum especialista no assunto trânsito.
Já faz tempo que exponho aqui casos de puro ativismo: ciclistas que saem pintando ciclofaixas onde bem entendem, secretários que pintam o asfalto de cores absolutamente fora das normas e por isso mesmo vedadas, prefeitos que pintam poesias no asfalto, algo também vedado pelo Código de Trânsito Brasileiro… Enfim, o poder público não tem o direito de violar normas ou leis e a sociedade civil não tem o direito de tomar para si poderes que não tem. Se você não concorda com uma lei, lute para que ela seja mudada, mas não as viole. Se cada um fizer o que quer, obviamente viveremos no caos. Se você quer que haja uma ciclovia na sua rua, peça ao vereador em quem você votou. Mande mensagens à Câmara, ao prefeito, ao secretário de Transportes, vá até a Câmara da sua cidade e brigue para ser atendido, mas não saia pintando faixas por aí. Se não, porque usuários de transporte público não poderiam pintar uma faixa de ônibus por cima da ciclofaixa que você pintou? Ou um comerciante que queira facilitar o acesso à própria loja poderia demarcar um “carga e descarga” à porta do comércio? Ou o direito de uns é mais válido do que o de outros? Se sim, o de quem? É por isso que existe o poder público, justamente para ser poder e público. É ele quem tem que dirimir se a rua pode receber algum tipo de faixa para bicicletas, ônibus, carga e descarga ou nenhuma delas. E se você é ativista, faça seu lobby com quem de direito.
Incomoda-me (a ênclise da semana) que a imprensa não faça o papel principal dela, que é informar. No debate mencionado pelo meu amigo motociclista os cicloativistas criticaram violentamente os usuários de outros modais. Chegaram mesmo a defender algo assim como proibir o trânsito de motos. Aí, vira barbárie. Cada um impondo suas convicções e tentando eliminar as dos outros. Faltou, então, a moderação e o contraditório. Faltou os jornalistas chamarem especialistas de verdade, não ativistas. A vantagem dos especialistas de fato é que eles t~em uma visão mais ampla e mais holística, sem viés ativista.
Tenho observado esse defeito em muitos âmbitos, mas como escrevo neste espaço sobre autoentusiasmo, motoentusiasmo, trânsito e assuntos correlatos, foco hoje nesse aspecto. Outro problema de dar espaço apenas ao ativismo é que passa-se a viver dentro de uma bolha. No caso daquele programa de rádio, é como se houvesse somente bicicletas no trânsito da cidade. Ignoram-se os outros modais e mesmo os pedestres — sem mencionar os demais aspectos envolvidos na questão. O comércio, a indústria e os serviços devem ser considerados, afinal são eles que movimentam a economia. A legislação deve ser levada em consideração. E, principalmente, a vontade do próximo deve ser levada em consideração antes de impor a própria.
Mas, por que a imprensa não tem feito o seu papel? Por que as pessoas em muitos casos não demandam isso? Infelizmente, é o tal “viés de confirmação”. As pessoas querem ouvir aquilo com o que concordam. Poucos nos damos ao trabalho de ler e de conversar com gente com a qual não estamos nem um pouco de acordo e o fazemos apenas para analisar outros pontos de vista. Sempre acho interessante ouvir outra perspectiva, mas a maioria apenas espera um endosso daquilo que acha que já sabe e que acredita que está certo. Como diz o especialista em Comunicação francês Régis Debray, as pessoas escolhem não se informar, apesar de todo o arcabouço de opções que existem. Se a cada ano temos mais instrumentos de informação, na prática isso pouco muda o comportamento da maioria. Senão, por que tantas feiquiniús? Simplesmente porque a maioria das pessoas prefere pseudoconfirmar aquilo em que acreditam em vez de verificar se é verdade. E, claro, como ativistas de vários tipos que são essas pessoas, fazem questão de repassar esses pseudofatos ou, sendo bem direta, essas mentiras.
Se o jornalista acha bonito um secretário pintar o asfalto de azul claro porque ele diz que isso vai baixar a temperatura do local, por que verificar e pesquisar antes de sair repetindo essa barbaridade? Tem, é claro, muita preguiça e falta de profissionalismo, mas passa também pela questão de que isso vai no mesmo sentido das convicções pessoais de quem escreve/transmite as notícias. Se ele acha o aquecimento global um perigo imediato, qualquer um que diga que fazendo algo baixa a temperatura do local e haverá economia de energia elétrica, parece legal… só que não. Isso é viés de confirmação, não jornalismo. O mesmo quando se ouvem somente ativistas e não especialistas de verdade.
E apenas para reforçar, faz horas que estou acordada e trabalhando. Meu mau humor sobre este assunto não tem nada a ver com meu mau humor matinal. É cansaço, mesmo, de ver e ouvir todo dia gente dando palpite sobre algo que não conhece porque escolheu não conhecer.
Mudando de assunto
Caros leitores, gostaria de comemorar este marco que alcancei graças a vocês. Esta é minha 200ª coluna. Estou muito feliz com uma série tão longa de escrevinhações. Obrigada a todos. E que venham mais.
NG
Imagem de abertura: fairvote,org