Caro leitor ou leitora,
Como estávamos (mal) acostumados à coluna do saudoso Roberto Nasser às sexta-feiras neste horário, achei por bem republicar esta matéria dele de 18 de julho de 2016, não só para saborear o seu estilo de escrever único, como para mergulhar na história brasileira e sul-americana do Simca, de interesse geral e dos apreciadores da marca francesa, em particular.
Bob Sharp
Editor-chefe
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SIMCA NA AMÉRICA LATINA
Por Roberto Nasser
A marca francesa — 1935-1981— embora bem assinaladora de seu caminho, e no Brasil festejada e preservada por interessados no sítio www.simca.com.br, na América do Sul não teve operação exclusiva no Brasil. Pelo contrário, a inquietação expansionista para a internacionalização instou-a a tentar atividades extra-França com leque de pequenas linhas de montagem, e perlustrou o Continente antes e depois de se instalar em nosso país. Aqui, precursoramente, antes de se instalar nos dias finais de 1958, tentara acordo operacional e facilidades para implantar linha de montagem em 1952, sem conseguir fechar negócios.
Na iniciativa exitosa chegou ao Brasil nos albores de 1956, logo após ter recebido visita de um simpático, falante e sedutor cidadão recém-eleito como presidente do Brasil. Em Poissy, beiradas de Paris, em pequeno passeio, Henri-Théodore Pigozzi, entusiasmado turinês naturalizado francês, criador da marca 20 anos antes, mostrou-lhe com orgulho as instalações industriais recém-adquiridas à Ford. Era, então, a mais moderna fábrica de automóveis no mundo, e a Simca a segunda marca francesa em expressão industrial.
Meia dúzia de passos e de palavras, a surpresa de ver o interlocutor expressar-se em francês com inidentificável sotaque mineiro, e acordaram: a Simca viria e seria muito bem recebida no Brasil. E mais, instalar-se-ia em Belo Horizonte, no estado de extração de minério de ferro, e do visitante, o logo presidente Juscelino Kubitschek.
Veio logo, protocolou proposta antes mesmo da criação do Geia, o grupo executivo para implantação da indústria automobilística. Mas nem se fixou na capital dos mineiros — a logística para operar longe dos fornecedores e dos maiores mercados consumiria as vantagens dos incentivos estaduais —, nem conseguiu prioridade por ter protocolado pedido antes dos outros interessados. Submetendo-se às regras gerais iniciou produzir em janeiro de 1959, transferiu-se à Chrysler em 1967 — na Europa a tomada acionária ocorrera em 1963. Aqui, como Simca, oito anos e três meses profícuos, mudando a razão social para Chrysler e mantendo os produtos Simca até julho de 1969.
Intenso desenvolvimento de tecnologia, de deixar marcas peculiares na estrada de nossa indústria automobilística.
Entretanto, industrialmente também andou por nossos vizinhos.
O QUE, E ONDE
Argentina
Faz-se confusão sobre a história da Simca na Argentina, afirmando-se peremptoriamente a marca não ter tipo operação industrial por lá. Mas teve.
Não foi com o nosso Chambord, conhecido dentro dos muros da operação como o Vedette 3, mas com o modelo anterior, o 2. Seria o Simca para o Projeto Brasil, substituído na última hora pelo nosso vistoso Chambord.
Na prática, apenas outra marca no mal administrado regime automobilístico no vizinho país, atraindo inúmeras fabricantes, por si ou por licenciados localmente, como no caso. A empresa Metalmecánica, com operação na cidade de Juan C. Paz, beiradas de Buenos Aires, conseguiu aprovar projeto de construção do Vedette com motor Rush. Nada a ver com o irmão de linha produzido no Brasil.
Na verdade, era um tipo de projeto, para se dizer com tentativa elegância, seria peculiar. Entretanto, como é a necessidade que faz o sapo pular, foi o produto certo para um período de incertezas na economia francesa.
Na linguagem da rua, um Frankenstein mecânico. Lá, Ariane era filha da crise do Canal de Suez, quando o governo francês sobretaxou os automóveis de maior consumo. Daí, com o Aronde, pequeno, exitoso, mas convencional com motor dianteiro e tração traseira, a Simca se mantinha no mercado. Tinha nas gavetas um projeto de carro pequeno, com grupo motopropulsor traseiro. Resgatou-o e começou corrida industrial para produzi-lo.
Na sua linha de produtos o Vedette 3-Chambord, com motor V-8, 2,3 litros, começava a declinar em vendas — e por isto decidiram mandá-lo ao Brasil. Para completar o nicho de preço, esticaram a vida do modelo antecessor, sacaram motor e transmissão V-8 e, em seu lugar colocaram o pequeno motor 1,3-litro e a câmbio de quatro marchas. Para bem caracterizá-lo, na França chamaram-no Ariane. Era de rendimento restrito — para o motor limitado, com torque de 10 m·kgf —, deslocar uma carroceria de 1.300 kg era penoso. O carro era lento em reações. Como atração, era barato, tinha espaço interno, foi bem vendido na França para serviços públicos e táxis. Durou de 1957 a 1963, e dele fizeram 166.363 unidades. Duas vezes e meia a produção de Chambord/Tufão/Emi-Sul/Esplanada no Brasil 1959 a 1969.
Curiosidade, a Metalmecánica combinou com a França e, por processo pouco conhecido — ignoram-se níveis das operações, intervenções industriais e conteúdo nacional — resgatou o produto, e qual Fênix exumou-o, iniciando montá-lo em 1966, três anos após o encerramento da produção francesa.
Não se sabe a formatação industrial e o nível de nacionalização, se as chapas para formar as carrocerias foram estampadas na Argentina ou se eram partes produzidas na França para reposição da frota rodante, mandadas ao vizinho.
No representante no futuro Mercosul deram-lhe nome composto: Ariane — era a versão mais simples da linha original, utilizando motor V-8 —; Miramas — poucos clientes sabiam da referência: autódromo francês onde um Vedette 2 com motor de 4 cilindros marcou recordes de resistência em velocidade lançada para provar aos franceses a confiabilidade no produto. Entretanto, como era produzido pela empresa que batizava seus produtos como De Carlo, transformou-se no De Carlo 1300.
Frustração
Quem, pela similaridade de parte da mecânica, imagina ter na Argentina um fornecedor de peças — suspensão e direção — para os Chambord nacionais, esqueça: a operação durou de 1966 a 1967, com restrita montagem de 507 unidades.
Colômbia
Na Colômbia a Simca chegou em 1968. Apesar de haver concomitância com a produção no Brasil, pela adquirente Chrysler, dos modelos derivados dos Simca Vedette — os nossos Chambord evoluídos a Esplanada e Regente —, o automóvel negociado com a Chrysler nada tinha a ver com os conhecidos dos brasileiros: foi o Simca Mil Série I. Pequeno, lançado em 1961, exibindo formulação forçada pela crise do petróleo resultante da briga pela gestão do Canal de Suez. Motor traseiro de quatro cilindros longitudinais, 944 cm³, 49 cv, e transeixo traseiro, sincronizadores Porsche, suspensão independente nas quatro rodas, desenho do italiano Mario Boano — o mesmo do conceito original do Karmann-Ghia.
O acordo operacional, por razões não conhecidas, foi feito com a Chrysler España, montadora do modelo desde 1962, e fornecedora das partes para montagem. Na colombiana Colmotores a Chrysler detinha 60% do capital.
Em termos de duração, oito anos, a operação colombiana durou quase tanto quanto a brasileira. Lá, entre 1969 e 1977, de modelos 1000, GL, 1.204 e 1300, fabricaram-se quase 27 mil unidades, com baixo índice de nacionalização ante a falta de qualidade das autopeças locais, importados a parte elétrica e o grupo motopropulsor.
Em meio à montagem, também superficial de outras marcas e modelos — Jeeps Willys, caminhões Austin e Gipsy, um jipe muito assemelhado ao Land Rover —, o Simca 1000l pretendia ser o veículo de entrada, o popular. Conseguiu pelo porte, consumo e identificação — não pelo preço. Custava 89.521 pesos colombianos — ou US$ 8.500.
Ano e meio após, a montadora colombiana ofereceu a versão1000 S, marcada visualmente pela frente pintada em preto fosco, uma faixa na mesma cor descendo pelos para-lamas traseiros, molas helicoidais levemente rebaixadas. Sugeria imagem esportiva, inexistente no mercado colombiano de então.
Logo em seguida foi a vez do 1204, cilindrada obtida no versátil bloco. Fazia agora 61 cv. Marcava-se por uma imitação de grade frontal e um painel de instrumentos com base imitando madeira e ampla “relojoaria”.
Chile
País com vocação de livre importador convive com todas as marcas interessadas em disputar seu pequeno mercado — 280 mil unidades/ano —, o Chile já viu com levas de operações de montagem.
A primeira iniciativa data de 1959 a 1964 e era produto específico, baseado no Aronde, o mais representativo da marca naquela década. Versões chilenas, curiosíssimas: picape, station wagon — na prática o picape com prolongamento de teto feito em compósito de fibra de vidro. E, também, um sedã curioso, com teto mais alto, mesclando a traseira do modelo De Luxe 1959, e a frente do modelo P60. Não fosse bastante, ainda exibia a peculiaridade de portar o estepe externo, como os americanos Lincoln e no caso brasileiro o também francês Simca Chambord Présidence. Deste parece ter inspirado os para-choques com garras em borracha. Mesmo caminho para as lanternas traseiras lembrando as de Chevrolet 1954.
Não há números de produção para esta primeira investida.
Nos anos ’60 o processo de montagem pela Chrysler Chile focou no modelo 1000, com partes importadas da Espanha. À época o Simca 1000 era produzido nas usinas de Poissy, França; Villaverde, Espanha; e Casablanca, Marrocos.
Uruguai
País peculiar, com pequena população e mercado, números contidos, desestimulando economicamente a implantação de fábricas de automóveis. Assim, com brilho empresarial encontraram solução alternativa: montagem local com pequena agregação de componentes do país ou regionais.
Da dezena de pequenas montadoras antes aplicadas a montar variadas marcas europeias, hoje sobrevive menos de meia dúzia envolvidas com carros carros franceses — Renault—, japoneses — Nissan —, e chineses, várias marcas, incluindo a Lifan exportando ao Brasil.
A Simca esteve por lá, fazendo picapes a partir de Arondes cortados, através da Santa Rosa Automotores, empresa com lastro na atividade, antiga, coordenando as duas maiores montadoras do país, a Nordex e a Oferol. São as de maior expressão, profissionais em montagem de várias marcas.
Dado de exceção, ao final dos anos ’50 um concessionário da marca adquiriu à matriz 100 unidades do Vedette 2 e os transformou em picapes. Muito apreciados à época, sempre lembrados como extremamente confortáveis, não há registro de sobreviventes.
Outro: o Uruguai quase conseguiu ter uma filial da Simca Brasil para montar a família Chambord.
Le Patron
Na história do automóvel há poucos exemplos de entusiasmo como os da Simca através de seu mandão maior, HT Pigozzi. Arguto, trabalhador incansável, corajoso, implantou a marca em 1935 transformando a Fiat em sócia, e tocou-a até 1964 quando, por situação nunca aclarada, o controle acionário foi assumido pela Chrysler.
Neste caminho, rica história, houve a surreal implantação de uma linha de montagem com 30 m de comprimento; a primeira terceirização para compra de componentes importantes; a sociedade com a Ford; um enorme processo de internacionalização da marca; a decisão de vir ao Brasil; a coragem de independer da Fiat para tal passo; a criação do Aronde, pequeno, resistente e lucrativo; o incentivo para as versões esportivas criadas por Carlo Abarth; e a surpresa — letal — de ver-se solapado pela Chrysler, — que acabou com as vantagens da empresa, perdendo a mão, passando-a à Peugeot.
RN