O acidente do voo 302 da Ethiopian Airlines no dia 12 último trouxe o Boeing 737 Max 8 para o centro das atenções por se tratar do segundo acidente de características semelhantes ocorrido com a aeronave num intervalo de cinco meses.
Até agora muito se especula e pouco se sabe sobre o que realmente ocorreu com a aeronave da Ethiopian, bem como uma hipotética ou não correlação com o acidente da mesma aeronave nas cores da Lion Air, em 29 de outubro de 2018. Entretanto as investigações continuam e por motivos de segurança diversos países (e mesmo o FAA – Federal Aviation Administration) optaram por “groundear” (jargão aeronáutico, tirar do voo) toda a frota de aeronaves Max 8. E tanto jornalistas quanto youtubers de todo o mundo — com raras exceções, e ressalto o competente Lito Souza do “Aviões e Músicas”, adotando uma postura correta de não fazer quaisquer tipos de especulações sobre o assunto — tecem todo tipo de conjecturas e formulam hipóteses.
Por essa razão, deixarei esse trabalho para quem realmente investiga acidente,s e assim que sair algo concreto, emitido por um órgão oficial, comentarei aqui no AUTOentusiastas/AEROentusiastas.,Todavia, o que aqui posso comentar, desde já, é o que é um Boeing 737 Max 8 e o que o difere de seus irmãos mais velhos.
O Boeing 737
Longe de querer detalhar em demasia a historia da aeronave, o projeto 737 surgiu em maio de 1964 com o esboço de uma aeronave de passageiros, com motores a jato, para distâncias de até 1.600 km, inicialmente concebida para 60 passageiros (aumentada, posteriormente para acomodar até 124).
Para tal, os engenheiros da Boeing empregaram a seção central do Boeing 727, havendo inicialmente, entre eles, diversas partes da fuselagem intercambiáveis. Como o 727 é um descendente direto do Boeing 707, portanto pode-se afirmar que partes do projeto 737 advêm de projetos realizados na década de 1950.
Em 1965, a empresa alemã Lufthansa faz a encomenda das primeiras 21 aeronaves, sendo a primeira aeronave comercial da Boeing a ter o projeto lançado por uma companhia aérea não americana.
O objetivo da Lufthansa era a substituição dos Lockheed Super Constellation, Vickers Viscount e dos Convair 440 nas rotas de curta distância nacionais e mesmo algumas internacionais. A encomenda da empresa alemã foi sucedida pelo pedido da United Airlines, que solicitou uma aeronave ligeiramente maior, surgindo ai a versão 200 da aeronave
A United Airlines solicitou uma versão 1,82 m mais longa, versão esta que ficou conhecida por versão 200, apta a acomodar 136 passageiros em configuração econômica.
Por ter compartilhado muito dos projetos 707 e 727, o Boeing 737 inicialmente foi equipado com motores Pratt & Whitney JT8D-7, iguais aos dos Boeings 727-100. Trata-se de um motor incrivelmente confiável e robusto, mas que ao longo dos anos mostrou-se um tanto gastador, ainda mais em uma época (anos de 1970 e 1980) em que o custo com combustível passou a afetar negativamente e de maneira significativa o balanço das companhias aéreas.
E foi em 1979 com a Boeing, já antevendo a necessidade de substituição dos Boeings 727-100 de primeira geração por uma aeronave de porte semelhante, que ela iniciou o desenvolvimento da família “300”, dotada de motores produzidos pelo consórcio General Electric/Snecma, o CFM-56, um turbofan de concepção moderna (para a época e mesmo hoje, em suas versões mais evoluídas), com alta razão de derivação e de alta pressão de trabalho. Mas pelo fato do 737 ser um derivado direto dos Boeing 707 e 727, ele possuía o trem de pouso de pernas curtas (característica que o acompanhou até o lançamento da versão Max), o que inviabilizava a colocação de motores com fans de grande diâmetro.
Desta maneira, o consórcio CFM, em parceria com a Boeing, desenvolveu alterações nos motores visando a colocação no projeto da Boeing: O diâmetro do fan do motor foi reduzido em relação aos motores empregados no Douglas DC-8 série 70 e posteriormente nos Airbus A-320, e a caixa de acessórios do motor, normalmente localizada na sua parte de baixo, foi deslocada para o lado, dando a aparência “ovalada” da boca do fan, que passou a ter 1,52 m de diâmetro. Outra mudança significativa foi o deslocamento do motor para uma posição mais à frente em relação à asa, fato que, conforme veremos adiante, ficou ainda mais pronunciado no 737 Max.
Essa nova geração de Boeings 737 ficou conhecida como “Clássica” e basicamente são evoluções feitas a partir dos Boeings 737-200 (os chamados “Originais”), conservando inclusive o perfil básico de asas, com um ligeiro aumento nas pontas. O 737 teve sua fuselagem incrementada em 2,76 m, permitindo a acomodação de até 149 lugares (uma configuração claustrofóbica — tive a oportunidade de voar num desses).
Derivaram dessa série 300 as versões 400, alongada, para até 188 lugares, e a versão curta 500, para até 140 lugares, cujo comprimento difere centímetros em relação ao série 200 original. Em comum a todas essas versões são as asas, apenas alguns centímetros maiores que nas versões originais 100/200 e área alar ligeiramente aumentada.
Com a permanente necessidade de evolução, a Boeing, em junho de 1993, lança o programa “NG” — a nova geração do Boeing 737, versões que iam do modelo 600 até o 900 ER (Extended Range, autonomia estendida).
A principal característica dessa versão são as superfícies de sustentação (asas e estabilizador) bem maiores e de área significativamente superior aos das versões anteriores. No processo construtivo também foi racionalizado o número de peças, objetivando reduzir o tempo de construção da aeronave, além de diversos refinamentos aerodinâmicos.
Visando atender ao mercado de aeronaves da classe de 200 passageiros, a Boeing criou uma versão — a 900, capaz de acomodar até 215 passageiros em classe única inicialmente. Visando não alterar demais a estrutura da aeronave foram mantidas as quatro portas de acesso principais, e as quatro portas de evacuação sobre as asas. Entretanto, por normas do FAA esse tipo de configuração só era permitida para aeronaves até 189 ligares. Assim, a Boeing teve de lançar a versão ER dotada de porta laterais adicionais e assim permitir o emprego de todo o potencial de lugares da aeronave.
A série NG do Boeing 737, contudo, permaneceu empregando os motores CFM-56, naturalmente que em versões significativamente mais evoluídas e econômicas que as originais, levando a Boeing a entrar em um dilema na primeira década dos anos 2000.
O Boeing 737 já era um sucesso de vendas, o jato comercial mais produzido,entretanto uma nova geração de motores estava em desenvolvimento para entrar em operação após 2010. Essa nova geração de motore, prometida em ser em pelo menos dois dígitos porcentuais mais econômica que a anterior, empregaria altas pressões de trabalho e altas razões de derivação, implicando grandes fans trabalhando com menos palhetas que as anteriores e empregando novas tecnologias de materiais.
De um lado havia a Pratt&Whitney apostando na tecnologia de motores “geared” (engrenados numa tradução literal). Em qualquer motor a jato, quanto maior a velocidade dos compressores, maior o volume de ar comprimido, entretanto dado o fato do carretel compressor de baixa pressão ter que girar o fan, existe uma limitação na velocidade de rotação, para que não haja perda de eficiência do fan. Para solucionar tal questão, a empresa desenvolveu uma caixa de redução, permitindo que o carretel do compressor e o fan trabalhem no mesmo eixo mas em velocidades diferentes, otimizando o funcionamento de ambos.
A General Electric e a Snecma, por sua vez, não se renderam aos motores engrenados: Preferiram usar materiais diferenciados, permitindo o emprego de pressões de trabalho ainda maiores e, a partir disso, podendo extrair a energia necessária das turbinas para girar o eixo do carretel de baixa pressão/fan.
O dilema da Boeing, neste momento, era que essa nova safra de motores simplesmente não poderia ser livremente colocada nos 737 NG sem alterações no projeto: envolveria uma série de alterações na aeronave que englobaria, em especial o emprego de trens de pouso maiores para que os motores pudessem manter uma altura livre segura em relação ao solo — importante nos pousos com vento de través em que normalmente o piloto baixa a asa a barlavento para manter a reta. A empresa poderia seguir no projeto 737 ou abandoná-lo e partir para uma aeronave 100% nova.
A escolha, em 2011, recaiu sobre manter o 737, fazendo inclusive com que a empresa pudesse fazer a transição na operação dos NG para Max a mais simples possível para os pilotos.
Embora o 737 Max conserve o “charuto” das versões anteriores, com o DNA dos 707 e 727, trata-se de uma aeronave completamente diferente das versões iniciais, tanto estruturalmente falando quanto do ponto de vista da aerodinâmica, que foi bastante apurada com o objetivo de reduzir ao máximo o consumo de combustível.
A dificuldade do 737 Max foi a acomodação dos motores CFM-Leap (Leading Edge Aviation Propulsion). Para o 737 “Classic” e os “NG”, talvez até pelo fato de serem motores exclusivos da aeronave (diferentemente dos Boeings de fuselagem larga e dos Airbus onde você pode escolher o motor), o consórcio CFM teve de reduzir em quase 20 cm o diâmetro do fan do modelo 56 — sendo os motores versão -3 e -7B exclusivos do 737 por terem fans de 152 e 155 cm de diâmetro, como mencionado acima, enquanto no próprio Douglas DC-8, o primeira aeronave a empregar essa motorização, empregava fan de 173 cm! No 737 original, de motores JT8D, o fan era de apenas 137cm!
No CFM-Leap, embora feito sob medida para o 737, o fan teve de ser de 176 cm (no A-320, por exemplo, é de 198 cm!), o que levou a empresa a ter de alongar as pernas do trem de pouso da bequilha, e deslocar bastante os motores para a frente da asa, gerando alterações aerodinâmicas que mudaram o comportamento da aeronave.
Outras alterações na aviônica, no projeto estrutural e talvez, a mais marcante delas, os winglets com pontas para cima e para baixo, marcando a versão Max.
A mais polêmica novidade do Max e que a mídia está falando muito é o chamado sistema Maneuvering Characteristics Augmentation System (MCAS) ou Sistema de Melhoramento de Características de Manobras. Este sistema foi adicionado ao 737 Max devido ao efeito colateral da colocação dos motores em posição significativamente à frente das asas.
Devido ao tamanho dos motores e a sua posição, em situações de elevado ângulo de ataque (ângulo formado entre o vento relativo e a linha imaginaria representando a corda da asa), as naceles dos motores acabam produzindo sustentação, num posicionamento significativamente à frente do centro de gravidade, gerando um pitch-up (grosso modo, tendência de levantar o nariz da aeronave), levando a um ciclo de perda de sustentação, caso mantido.
Com o sistema MCAS, caso seja detectado, pelos sensores da aeronave, comportamentos como curvas de grande inclinação e elevada carga g nas asas e baixas velocidades em condições de flaps recolhidos, o sistema atua diretamente nos estabilizadores, comandando “nariz para baixo”, objetivando tirar a aeronave das situações críticas para qual o MCAS foi programado.
Os acidentes ocorridos com o voo 610 da Lion Air em 29/10/2018 e o recente 302 da Ethiopian Airlines, dada a similaridade de ambos em abruptas mudanças de altitude e velocidade, além do relato de dificuldade no controle da aeronave, trouxe à tona a suspeita de algum problema de projeto na aeronave e o “acusado”, o sistema MCAS. Por essa razão, optou-se pela retenção no solo (o chamado groundeamento) de toda a frota de 737 Max.
Uma empresa com o know-how da Boeing não tardará a encontrar uma resposta e uma solução aos fatos que levaram a esses dois acidentes. Todavia, essas questões podem abreviar o ciclo de vida do Boeing 737, cuja ideia inicial era ceder lugar ao projeto NSA (New Small Airplane) previsto para entrar em operação em 2030.
De todo modo, como eu disse no começo, é injustificável tentar desqualificar uma fabricante que só de 737 já chegou a quase 10.500 unidades, como tenho lido. Como chamar o avião de velho por ter sido projetado “no século” passado, como se esse século não estivesse a apenas 19 anos para trás, e dizer que a Boeing tem feito “remendos” no modelo e que reposicionar os motores, como expliquei, foi “um truque”.
Existe muita coisa em jogo, a vida de pessoas foram perdidas e o trabalho de muitos engenheiros sendo revisto tentando compreender o que está acontecendo com o Max, para a imprensa chegar a esse juízo de valor.
DA