De toda história do design automobilístico, os carros que eu mais admiro pela criatividade sem limites são os americanos dos anos 50, 60, até 70..
Principalmente no período pós-Segunda Guerra Mundial a indústria automobilística americana entrou numa fase de euforia, incentivando os estilistas da época a “soltarem as ideias”.
Muito inspirados, os estilistas usavam como referência elementos e formas vindas da aviação da época.
A verdade é que não é fácil tentar representar formas aerodinâmicas perfeitas e econômicas nas enorme massas de metal sustentadas em quatro rodas.
Além da aeronáutica, os maravilhosos carros desta época usavam elementos decorativos derivados da “art déco”, uma irmã próxima da “art nouveau”, porém mais simples e objetiva. O designer gráfico de famílias de letras se multiplicou de maneira espantosa.em que cada carro tinha sua grafia própria.
Quanto ao tratamento de superfície, a grande maioria formada por peças metálicas estampadas e pintadas, encontramos imensas áreas cromadas nos para-choques, frisos e detalhes internos e combinação de cores simplesmente sensacionais comparadas com a mesmice dos dias de hoje.
Você pode estar pensando como um cara como eu, que viveu toda sua vida profissional em empresas alemãs, tem coragem de declarar amor por carros americanos.
Acontece que meu “batismo automobilístico” na realidade se deu através dos clássicos da terra de Tio Sam..
Na minha infância, eu morava vizinho do meu tio Afonso, um alemão que foi chefe de produção da General Motors e um dos maiores especialistas destes carros no Brasil, já que ele era um dos únicos profissionais experts em câmbios automáticos Hydra-Matic e na mecânica “sofisticada” (para a época) destes importados.
Nossa garagem, que comportava vários carros, teve um momento onde viviam estacionados Impalas, Bel Airs e até Cadillacs da época.
No fim da tarde, quando ele chegava da fábrica ou das viagens pelo Brasil com estas esculturas ambulantes, eu corria para recebê-lo e brincar ao volante destes que pareciam mais naves estelares do que automóveis.
Por sua vez, meu pai, que também trabalhou 37 anos na GM, vivia me trazendo catálogos da linha americana para incentivar minha paixão pelo desenho (ele também era desenhista). Aquele material era como um tesouro nas minhas mãos e nenhum moleque das redondezas tinha algo tão valioso como aquilo.
Voltando ao tema Styling, (eu chamo assim porque a palavra Design veio algumas décadas depois) existem alguns detalhes muito importantes que eu gostaria de mencionar, pois influenciaram e muito o desenhos destes carros tornando-os clássicos atemporais.
Lidar com um modelo de mais de 5 metros de comprimento é muito difícil.. Entre outras coisas, é preciso ter muito espaço para ver o carro a distância.
Depois você tem que distribuir os elementos para disfarçar esta massa de maneira equilibrada e com as ”atrações” que se apresentam na carroceria, como “músculos”.
Além disso, eles praticamente não tinham “front overhang” ou seja, não tinham balanço dianteiro. O corpo do carro começava após o centro da roda dianteira, sempre com o radiador imponente à frente..
A altura de um Impala era 1,37 m, quando de um A8 é 1,47 m, 10 centímetros a menos faz toda diferença do mundo, em termos de proporção.. Um Porsche Panamera tem 1,42 m de altura, 5 cm a mais que um Impala. Este tinha 2,03 m de largura, já um A8 tem 1,94 m, 1 cm a mais que o Audi A3.
O Impala ganha em todas medidas de proporção básicas em comparação com estes concorrentes, e olha que não são concorrentes quaisquer, já que a boa proporção sempre foi “mais baixo e mais largo possível”
Praticamente todos carros desta época tinham motor central-dianteiro e tração traseira. Significa que todos carros tinham, se não completamente, a maior parte do motor posicionados para trás do eixo dianteiro e com tração traseira.
Este simples detalhe possibilita que na divisão dos elementos principais o balanço dianteiro seja bem pequeno, o que não é possível com o motor dianteiro moderno, uma grande praga para o Designer.
O motor dianteiro foi adotado por quase todas as companhias (ultimamente até a Mercedes) devido à redução de custo, eficiência de montagem e redução de peso.
A distância entre eixos era grande era e o balanço traseiro eram enormes.
Para você entender melhor fiz este desenho esquemático comparando um Impala com o A8 na vista lateral.
A comparação das vistas laterais de um Impala 59 e um Audi A8 é dramática. Sintetizei a vista lateral pondo dos dois carros com o mesma distancia entre eixos.
Vemos como carros do mesmo tamanho podem ter silhuetas tão distintas, sendo o Impala um carro extremamente esguio, de visual leve e com muita dinâmica.
Já o Audi, nos parece um carro “gordinho” e olha que ele é um dos mais “fit” da categoria nos dias de hoje.
O Impala é bem mais baixo, tem um balanço dianteiro curto e um balanço traseiro longuíssimo. Claramente, o motorista do Impala senta mais baixo.
Vamos então compará-lo com um Cadillac Sedan Deville 59, que seria compatível com a classe de conforto e luxo de um A8. A cabine é mais para trás e o capo é enorme, é mais baixo e mais esguio e com um imenso balanço traseiro. Quando se compara os carros percebe-se bem a diferença de percepção de tamanho, luxo, imponência e presença.
Mas os carros atuais não perderam esta elegância atlética à toa. Principalmente, os equipamentos de segurança ativos e passivos são responsáveis por esta obesidade visual dos carros modernos. Carros da velha guarda são ratoeiras metálicas, enquanto um desses modernos é extremamente seguro. Já os carros modernos são seguros e confortáveis, mas obesos, visualmente.
Aliás, mesmo tendo frontais extremamente elaborados, a traseira era o grande hit dos automóveis desta época.
As diversas interpretações de asas (rabo de peixe) faziam da traseira do carro um espetáculo à parte.
Claro que do ponto de vista funcionalidade os porta-malas não eram lá “esta coisa”, mas como atração visual, eram sensacionais.
Com certeza os carros modernos têm um aproveitamento do espaço interno muito melhor e foi exatamente por isso que os engenheiros foram por estes caminhos até chegarmos aos dias de hoje.
Mas para os Estilistas, funcionalidade e segurança não eram fatores importantes.
Eles estavam em busca de formas e cores arrebatadoras, como se estivessem mesmo esculpindo uma obra de arte, que também não tem função nenhuma a não ser mexer com nossos sentidos através da visão.
Todos tinham capôs enormes, a coluna “A”, assim como o gap dianteiro da porta, iniciava bem para trás do vão da roda dianteira.
A cabine dava a impressão de estar posicionada “para trás” no corpo do carro, como se a velocidade a tivesse empurrado para trás e a coluna “C” invariavelmente em direção ao centro da roda traseira como que apoiada no eixo traseiro. Isto traz dinâmica ao conjunto.
A coluna “A” era extremamente delicada, a “B” muitas vezes não existiam (assunto impensável nos dias de hoje pela estabilidade estrutural), e a “C”, sempre em direção ao centro da roda traseira, variava do quase nada ao exagero para mostrar caráter.
O corpo dos painéis de instrumentos eram de chapa (plástico não existia) incrivelmente criativos, elegantes e complexos.
Toda instrumentação (análoga) era como complexos centros de controle, repletos de detalhes e com extremo bom gosto.
Cada carro tinha seu próprio caráter, com arquiteturas complexas e extremo bom gosto quanto aos gráficos, e tipografia, ao contrário dos dias de hoje, onde quase todos painéis parecem os
mesmos, com variações somente no corpo do painel, todos feitos de plástico.
Com a crescente aplicação de telas digitais retangulares a criatividade começa a voltar, porém caminhando para a mesmice dos telefones celulares, sem alma e “simulando” uma sofisticação fria e pseudomoderna.
As cores internas tinham variações e combinações perfeitas, extremamente elegantes e sem a mesmice dos tons de cinza.
Os bancos se assemelhavam a poltronas confortáveis, com infinitos padrões de desenhos e cores perfeitamente harmonizadas com o interior e exterior.
Sentar ao volante de um destes carros era como dar um salto ao futuro, grandioso, surpreendente, chique, o moderno. Realmente não dava vontade de sair de dentro de um carro destes e voltar para um mundo sombrio e monótono.
Outro show de criatividade eram os volantes de direção moldados em várias cores e formas, recebiam lindos ornamentos metálicos que incluíam a buzina e o o centro do volante, onde sempre havia ícones representando a marca do modelo.
Muitos deles usavam não somente uma cor de exterior, mas sempre combinações de cores anexadas a belíssimos gráficos, em duas cores perfeitamente harmônicas, limitadas por elementos decorativos moldurado por sofisticados frisos metálicos cromados.
A carroceria era pontilhada de elementos, quase místicos, com lindas grafias tridimensionais e elementos decorativos temáticos, que imprimiam caráter ao carro, como saídas de ar, letreiros e ícones, sempre esculpidas em metal e exortando um mundo futurista fantástico.
As grades dianteiras, fundidas ao para-choque, todas em metal cromado, criavam infinitas “caras” com características diversas, nunca se repetindo ou imitando modinhas passageiras, mas verdadeiras esculturas complexas e com caráter próprio.
Falando em caráter próprio, este acho que é o ponto mais forte dos automóveis desta época.
Cada carro era um universo complexo e belo mostrando uma criatividade sem-fim dos Estilistas da época.
Os faróis e lanternas eram outro espetáculo à parte.
Embora usassem tecnologia básica, como lâmpadas e parábolas, sempre eram anexadas a molduras metálicas cheias de estilo, e principalmente as lanternas, sempre com temas tridimensionais, tinham uma arquitetura futurista que remetiam a turbinas em chamas, cravadas em grandes molduras metálicas que valorizavam e disfarçavam uma tecnologia tão básica.
Outro fator que sempre me chamou a atenção eram as colunas “A” inversas, emoldurando vidros de para-brisa moldados e extremamente curvos, itens impensáveis na filosofia baseada na lucratividade e redução de custos.
O que mais me impressiona nestas esculturas ambulantes é que o material principal, usado em quase todos elementos era o aço.
Os estilistas não estavam presos ao grande vilão atual que se chama “contra-saída” que limita de maneira cruel qualquer tentativas de esculturas mais ousadas.
A espessura das chapas era de até 3,5 mm, quando hoje nos limitamos a chapas de 0,7 mm.
Para viabilizar estas formas proibidas, as peças da carroceria eram pré-soldadas à mão, montadas como um conjunto, novamente soldadas com “cordões de solda” e na linha de montagem da carroceria, limadas e lixadas com perfeição por operários “escultores”!
Ok, é verdade que os carros desta época eram, inseguros, pesados, com baixa qualidade de montagem, gastadores, poluidores, estruturalmente instáveis e com muitos outros “defeitos” comparados com os de hoje.
Porém, eles representam uma época em que os Designers eram livres para criar, e eram sensacionais do ponto de vista estético e sensorial.
Por isso hoje são verdadeiras raridades, cultuados pelo mundo todo e que custam centenas de milhares de dólares, mesmo tendo décadas de idade.
São imortais, e quanto mais velhos ficam mais cobiçados e admirados se tornam.
LV
Nota: A maioria das imagens retirei da página de Steffens Jobst e seu colaboradores – “AUTOMOTIVE GRAPHIC PRE-1970” no Facebook. Para os que também os amam os carros clássicos americanos e carros de todo mundo desta época, vale uma visita virtual.