“There’s nowhere you can be that isn’t where you’re meant to be.”
– John Lennon, “All you need is love”
Alguém me disse certa vez que tudo em nossa vida está predestinado, mas devemos agir como não estivesse, sempre, ou morreríamos loucos. Ainda acredito que seja a melhor maneira de encarar a vida, essa louca, pirada, incontrolável e imprevisível jornada á qual somos enviados sem explicação ou escolha.
Tem gente que acha isso uma bobagem. Acredita piamente que consegue controlar sua vida e seu destino, que o acaso e os contratempos que aparecem são apenas contingências não programadas, coisas que deviam ter sido levadas em conta no plano original e não foram. Que temos controle total sobre nosso futuro e os que não acreditam nisso são fracos e menores; supersticiosos títeres de conspiradores religiosos que negam o poder supremo do intelecto humano.
Mas se o meu próprio intelecto tem esse poder, então Deus eu mesmo sou. Infelizmente minha natureza me impede de praticar uma religião onde Deus seja o MAO. Que Ele nos livre disso! Não entro nem em clube que me aceita como sócio, quiçá um que me aceite como divindade suprema. Irc!
Mas divago; o assunto hoje é bem menos subjetivo; trata de eventos históricos registrados que provam como o acaso atuou de forma definitiva na evolução do automóvel e sua indústria. Encontros randômicos que mudaram tudo, de uma forma ou outra, e tornaram o futuro diferente do que foi antes deles. Existem vários, claro, e, portanto, a subjetividade permanece aqui apenas na minha escolha particular dos dez melhores exemplos.
Em ordem cronológica, são eles:
1) Billy Durant e David Dunbar Buick (1903)
Na virada para o século XX, David Dunbar Buick já era um industrial de sucesso em Detroit, apesar de suas origens pobres na Escócia. Mas ainda nada de automóveis ou coisa parecida: era fabricante de tubulações industriais e residenciais, e de banheiras e vasos sanitários. Quando conheceu o motor de combustão interna, ficou louco com aquilo; em pouco tempo vendia sua fábrica para aplicar o capital na fabricação de motores e automóveis. Logo anunciava o famoso motor “Valve-in-head”, de válvulas no cabeçote, novidade que o colocou no mapa.
Mas o desenvolvimento de automóveis se mostrou mais difícil do que parecia, e a jovem Buick tem dificuldades financeiras. Ao redor de 1902, David D. Buick muda a sede da sua empresa para a cidade de Flint, ao receber investimentos de empresários da cidade.
Lá chegando, Buick vem a conhecer Billy Durant. Até então cético sobre o automóvel, Durant era um bem-nascido industrial da região de Flint: sua Durant-Dort Carriage Company estava perto de se tornar o maior fabricante mundial de veículos de tração animal. Ele realmente estava entre a parcela da população (que existia em número nada desprezível) que odiava a novidade. Olhando de fora, da calçada, achava-os barulhentos, fumacentos e perigosos, a ponto de proibir seus familiares de andarem nas traquitanas.
Mas David Buick o convence a dar uma volta com ele em um de seus carros. Aboletado naquele pequeno carro guiado por seu criador, Billy Durant teve uma daquelas epifanias que mudam a vida. Entendeu rapidamente que aquilo era o futuro, que uma vez experimentado, ninguém em sã consciência ia querer selar um cavalo. A facilidade de se pôr em movimento, a velocidade, o conforto e a sensação de controle absoluto eram absolutamente inéditas, e agradabilíssimas. Vendedor nato, entendeu na hora que poderia vender milhares, talvez milhões daquilo. E que suas carroças e carruagens logo iriam ser relegadas a museus. Uma visão do futuro. Ali, naquele momento, nascia em espírito a General Motors.
Logo Durant entra como investidor e principal executivo na Buick. Durant era como um furacão; onde quer que entrava tudo mudava para seu ritmo frenético. Não dormia muito, não parava muito tempo no mesmo lugar, e sempre seguido de assessores, fazia negócios e decidia coisas incessantemente durante o dia inteiro. A Buick então tinha vendido pouco menos de 40 carros em sua curta história. Durant coloca um estande no Salão de Nova York de 1904, e toma conta dele pessoalmente; volta para Flint com mais de 1.100 pedidos firmes.
Durant, sabemos, usou a Buick para começar o maior conglomerado automobilístico que o mundo já viu, a General Motors, uma empresa que em seu auge foi a maior do mundo (em qualquer campo), e que detinha 50% do mercado mundial.
E tudo começou num inocente passeio com Buick pela sua cidade natal.
2) Herbert Austin e Stanley Edge (1920)
Stanley Edge era um jovem engenheiro que trabalhava na vasta sala de desenho técnico da Austin Motor Company no início dos anos 20. A empresa fundada por Herbert Austin em 1905, localizada em Longbridge, acabava de sair de um período de administração judicial (a recuperação judicial que conhecemos aqui, anteriormente concordata).
Sir Herbert Austin, apesar de ainda ser oficialmente o presidente, não exerce mais o poder absoluto; as decisões são tomadas por um comitê formado pelos bancos credores e os novos diretores financeiros apontados por eles. Este comitê discordava sobre os rumos da empresa em quase tudo, e principalmente sobre a nova ideia do fundador de criar um carro pequeno e barato, que se aproveitaria da nova lei de taxação sobre potência (“tax horsepower”) e traria novos clientes que então compravam motocicletas apenas.
Stanley, então com 18 anos de idade, morava com a mãe, muito longe de Longbridge. Ia todo dia ao trabalho de trem, e os horários da linha o obrigavam a chegar no escritório muito antes do início do expediente, de manhã bem cedo. Sir Herbert também chegava cedo, pretendendo ser o primeiro, mas todo dia acabava dizendo bom dia para o jovem Edge ao chegar.
Válida ou não, acaba inevitavelmente por nutrir uma certa admiração pelo jovem. Sem conhecer toda a história, achando ele um funcionário mais dedicado que o normal, Sir Hebert acaba por puxar conversa naquelas manhãs solitárias. Descobre que Stanley Edge era um entusiasta do automóvel com muitas ideias interessantes. Os dois se entendiam bem e as conversas eram agradáveis e produtivas.
Não demora para Edge ser chamado ao escritório de seu supervisor, onde fica sabendo que deveria se reportar agora todo dia ao próprio Sir Herbert, em sua casa, Lickey Grange, e que trabalharia para ele agora, e não mais para a Austin Motor Company.
Sir Herbert Austin, impedido de fazer um novo carro pequeno por sua diretoria, decidira fazer o carro ele mesmo, com seu dinheiro. Com ajuda de Stanley Edge, em seis meses tinham o projeto pronto, desenhado na sala de bilhar de Lickey Grange. A influência de Edge é decisiva para o sucesso do carro: Sir Hebert faria apenas uma cópia do Rover 8 vigente, mas Stanley o convence a fazer um carro de verdade, em miniatura, com 4 cilindros em linha (o Rover tinha dois cilindros contrapostos), radiador imponente, e alavanca de câmbio entre os ocupantes.
O resto é história conhecida: Lançado em 1922, o Austin 7 era diferente de tudo até então. Minúsculo, foi um dos primeiros carros criados a partir do pacote interno, dos passageiros: feito para dois adultos e duas crianças. Deslocava apenas 700 cm³ inicialmente, mas logo seria aumentado para 750 cm³, cilindrada que manteve até o fim de sua longa vida. Foi um imediato sucesso, um carro de verdade em miniatura, que rapidamente acabou com a indústria de “Cyclecars”, e causou severo golpe à de motocicletas e de sidecars.
Sua influência foi enorme e pode ser sentida até hoje. O carro era leve, simples, barato, mas também veloz; não devia nada em desempenho aos carros “normais” da época. Como era muito popular, logo apareceram categorias e clubes de competição para o pequeno Austin, a mais famosa o “750 Club”. A Lotus começou com pequenos Austin Seven modificados por Colin Chapman e seus amigos, e acredito que não há coincidência sua maior criação compartilhar seu nome com o pequeno Austin. Sir Alec Issigonis criou seu famoso “Lightweight Special” para competir no clube antes de usar o que aprendeu ali no Mini original de 1959. A indústria de competição inglesa, hoje famosa, deve muito do seu início ao pequeno Austin. A BMW nasceu como fabricante de automóveis fazendo Austin 7 sob licença.
E tudo porque Stanley Edge morava longe demais do seu trabalho…
3) Ferdinand Porsche e Adolf Hitler (1933)
Sede da Chancelaria alemã em Berlim, 1933. Secretárias andando para lá e para cá, oficiais militares em uniformes decorados, e office-boys perambulavam atarefados e esbaforidos. Uma secretária falava baixinho ao telefone na imensa mesa bem à frente, enquanto três senhores distintos se apertavam em um sofá pequeno, esperando de olhos arregalados.
O mais baixo deles, um bigodudo e atarracado senhor, segurava também desenhos e tubos, indicando claramente que era o engenheiro ali. Ferdinand Porsche era já conhecido e admirado, mas estava prestes a dar um salto maior, e se tornar um dos mais importantes engenheiros da história do automóvel.
Com ele estava o Barão Claus-Detlof von Oertzen, executivo-chefe da recém-formada Auto Union AG (junção da Audi, DKW, Horch e Wanderer). Estavam ali para apresentar o plano de um novo e revolucionário carro de Grand Prix desenhado por Porsche, visando receber a ajuda estatal anunciada por Hitler no salão de Berlim. Levavam a tiracolo Hans Stuck; este um piloto loiro, alto, herói da pátria em competições, para ajudar no caso.
Na audiência o Führer os informa que o auxílio estatal já estava prometido à Daimler-Benz, e portanto chegaram tarde. Mas a conversa entre Hitler e Porsche flui mesmo assim, indo muito além do carro de corrida. Adolf Hitler conhecia bem o mundo do automóvel de então, e sua conversa com Porsche provou algo que já sabia: em Porsche a Alemanha tinha algo especial, a ser cultivado.
O futuro do professor muda naquele encontro. Além de dividir o bolo da ajuda estatal entre as duas empresas (Mercedes-Benz e Auto Union), a Porsche é contratada para o projeto do Volkswagen (estava longe de ser marca, era apenas uma expressão que significa “carro do povo”). Vários contratos bélicos durante a guerra também são colocados na empresa de Porsche, que sai dela, apesar da derrota do país no conflito, mais forte tecnicamente do que nunca. O resto, como dizem, é história conhecida.
4) Karl Rabe e Rudolf Hruska (1938)
Como já contei aqui no AE, em 1938 um jovem engenheiro austríaco chamado Rudolf Hruska encontra em um trem de passageiros outro engenheiro: Karl Rabe. Este era o braço direito de Ferdinand Porsche, que então tocava o incrivelmente importante projeto do carro do povo alemão para o governo de Hitler. A conversa acaba com a contratação de Hruska, e sua participação em todos os projetos da Porsche na época, inclusive a criação da imensa fábrica em Fallersleben, hoje Wolfsburg.
É a experiência com Porsche que o leva a décadas de trabalho na Itália no pós-guerra, culminando na criação do Alfasud e sua fábrica em Pomigliano d’Arco, aos pés do monte Vesúvio. Como ele mesmo disse: “A coisa mais bonita da minha carreira foi ter a possibilidade, há exatamente 30 anos de distância, de fazer pelo governo italiano exatamente o mesmo trabalho que meu professor, Porsche, fez para o governo alemão.”
Já pensaram o que aconteceria se tivesse perdido aquele trem?
5) Sergio Scaglietti e Enzo Ferrari (1937)
Sergio Scaglietti e seus irmãos sempre trabalharam com carrocerias, seja as reparando, seja construindo carrocerias novas a partir do zero. Nos anos 30 Sergio aperfeiçoou sua habilidade trabalhando para a Carrozzeria Emiliana, até que em 1937, seu irmão mais velho resolve abrir seu próprio negócio com o parceiro Renato Torricielli, e para isso, claro, chama seu irmão Sergio para ajudá-lo.
Naquele mesmo ano, a Carrozzeria Torricelli & Scaglietti abria sua oficina em Modena. Não muito tempo depois, um senhor narigudo cruza a rua para conhecer o novo carrozziere que abrira bem em frente ao seu estabelecimento. O senhor narigudo se chamava Enzo Ferrari, e seu estabelecimento, a já famosa Scuderia Ferrari. A primeira pessoa que encontrou ao entrar foi um jovem Sergio Scaglietti, arrumando ferramentas para começar o dia de trabalho. Os dois se deram bem logo de cara, o início de uma amizade sincera para toda vida.
Não demorou para que a empresa reparasse os Alfa Romeo de corrida da Scuderia Ferrari vizinha. Depois da guerra, já dono do negócio, Sergio firma duradoura parceria com a empresa de Enzo, mesmo ela mudando para o subúrbio de Maranello; logo toda carroceria Ferrari era fabricada na Scaglietti, na maioria desenhadas por Pininfarina.
Scaglietti funcionou como o departamento de carrocerias da Ferrari até que em 1970 efetivamente se tornou parte da Ferrari. E apesar dos carros de rua terem desenho de Pininfarina, Scaglietti fazia os carros de competição, o que o torna o pai de desenhos imortais como o da 250 GTO e Testarossa, dentre muitos outros monstros sagrados.
Já imaginaram se Sergio tivesse desistido de trabalhar com o irmão em 1937 como pretendia, e abrisse um negócio próprio em outro lugar da cidade?
6) Stanley “Wacky” Arnolt e Nuccio Bertone (1952)
Stanley “Wacky” Arnolt era um empresário de sucesso americano no pós-guerra, e entusiasta e importador de carros esporte europeus para os EUA.
Em 1952 Arnolt resolve viajar à Europa, principalmente para procurar novos modelos de carro para vender. Isto o coloca no mesmo Salão de Turim em 1952 onde um drama se desenvolvia silenciosamente em um pequeno estande ocupado pela empresa de encarroçamento de Nuccio Bertone.
Bertone estava, para ser claro, em maus lençóis. Liderada pela Fiat de Dante Giacosa, a maior parte da indústria italiana abandonava o chassi separado, e com o fim dele, a tradicional indústria independente de carrocerias temia seu fim. Era uma indústria então baseada em pedidos individuais de gente que precisava de uma carroceria para seus chassis comprados de fabricantes diversos; no pós -guerra. Com a popularização da venda de carros completos, em todas as faixas de preço, o tradicional negócio de produção e venda de carrocerias minguava.
Nuccio Bertone achava que não conseguiria uma saída para aquela situação. Acreditava que, se tudo desse certo e conseguisse vender os dois carros que trouxera ao salão, pagaria as contas restantes, daria adeus aos últimos funcionários e fecharia as portas definitivamente. Era só isso que esperava. Os dois carros nem eram totalmente dele: o representante romano da empresa inglesa MG havia lhe cedido dois MG TC, que foram encarroçados num desenho mais moderno, em versão cupê e conversível, pela empresa de Nuccio. O desenho era de Giovanni Michelotti, subcontratado, visto que Bertone não tinha dinheiro para manter um desenhista na folha de pagamento.
Neste momento, aparece no pequeno estande um enorme sujeito, obviamente americano (chapéu, botas e charuto), olhando atentamente os dois MG. Bertone se aproxima, se apresenta, e pergunta o que achou, com ajuda de um intérprete que andava com o americano. O americano, claro, era Stanley “Wacky” Arnolt. Disse prontamente que adorou os carros e queria comprá-los. Bertone, feliz da vida, começa a explicar que sim, claro, podia vendê-los, mas o chassi era dos revendedores romanos, e a carroceria era dele, et cetera e tal. Wacky responde:
— Não, pera aí, o Sr. não entendeu. Eu quero comprar pelo menos 200 deles, para começar. Cem cupês e cem conversíveis.
Nuccio não entendia inglês, mas de alguma forma conseguiu entender a quantidade de carros que o americano queria imediatamente. Quase infartou. As pernas bambearam e teria caído se o americano e sua turma não o amparassem. A Carrozzeria Bertone estava salva!
Bertone credita este evento sozinho como a fagulha do renascimento dos carrozzieri italianos. Produzir carros em série (ainda que pequena), com desenhos exclusivos e diferenciados, seria o novo caminho dos antigos artesãos de metal da península. Segundo ele, a partir de Arnolt e os 380 MG especiais que acabaram sendo fabricados, tudo mudou e uma nova forma de trabalhar apareceu e floresceu. Uma teoria com a qual é fácil de concordar.
7) O almoço de Colin Chapman e Gilbert “Mac” McIntosh (1957)
Corria o ano de 1957, e Anthony Colin Bruce Chapman, aquele famoso “Gênio instável” inglês, fundador e dono da Lotus, estava tendo um almoço em sua casa, com seu funcionário e amigo Gilbert “Mac” McIntosh e sua esposa. Hazel Chapman, a fiel esposa de Colin, cozinhou o almoço, e os homens estavam escalados para lavar a louça depois. Na mesa, depois do almoço regado a bastante vinho, a conversa, obviamente, se moveu para a Lotus, seus carros e seu futuro. A certo momento, Hazel expressou sua preocupação: com todo trabalho no novo Elite e o Lotus 11 de competição, a empresa tinha parado de produzir o Lotus 6 (corrente de 1952 a 1955). O Seis era um carro muito parecido, na verdade, com o futuro Sete: um carro simples e barato, criado para que os entusiastas ingleses que o usavam com transporte durante a semana, mas que nos fins de semana se tornava uma supereficiente arma para as corridas amadoras tão populares na Ilha.
A preocupação de Hazel era a seguinte: a Lotus abandonou esses fiéis compradores. Seus carros se moviam para um patamar superior de preço e ambição, e com isso “our own boys” ficavam sem substitutos para seus já obsoletos Lotus 6. “A empresa foi fundada e cresceu vendendo para eles, Colin… Chega a ser um crime abandoná-los.”
O esperto Chapman, sempre pronto a aproveitar uma oportunidade que se apresentava, disse então: “Não seja por isso, querida! Se vocês lavarem a louça por nós, eu e o Mac começamos a checar a viabilidade disso já!” Hazel, já acostumada com o marido, disse que topava a troca, mas queria ver o resultado! Nada de ficar bebendo e papeando!
Quando chegou a sagrada hora do chá, lá pelas 5 da tarde, Colin e Mac já tinham feito uma checagem de peso e distribuição; uma estimativa de custo e de desempenho; e até alguns rabiscos de como seriam a estrutura e carroceria. Naquele ponto, os números pareciam tão bons que os dois se safaram de lavar a louça do chá também! No fim, trabalharam ininterruptamente até meia-noite, e quando chegaram no trabalho segunda-feira de manhã, o projeto de um novo carro oficialmente foi iniciado: o Lotus 7.
Isto significa que, se Chapman se dignasse a tirar a bunda da cadeira e fosse lavar os pratos naquela tarde de domingo, nossa vida hoje seria muito mais chata. E o mundo não teria coisas tão fantásticas como um Caterham Super Seven. Incrível, não?
8) Pete Brock e a GM Library (1957)
Pete Brock foi o mais jovem designer já contratado pela General Motors, com 18 anos em 1957. Ficou famoso por ser o desenhista responsável pelo conceito inicial que se tornou o belíssimo Corvette Sting Ray de 1963, algo que por si só o torna imortal, um dos gigantes de nosso mundo.
Mas a obra de Brock que mais me fascinou sempre foi o Shelby Cobra Daytona, criado quando ele abandonou um futuro seguro na GM por um bando de hot-rodders malucos que se juntaram ao redor de Carrol Shelby em 1965. Principalmente porque é um exemplo claro e irrefutável de como a aerodinâmica influencia o desempenho de um carro. O Cobra roadster, equipado com o V-8 Ford de bloco pequeno e 289 pol³ (4.735 cm³), chegava à velocidade máxima ao redor de 230 km/h. Mudando apenas a carroceria, Brock fez o carro atingir 300 km/h!
Mas isso não seria importante se não soubéssemos que o jovem Brock, sem ajuda de túneis de vento ou experiência anterior neste tipo de coisa, desenhou e criou o carro sozinho. E no seu primeiro teste, já mostrou a que veio, alcançando velocidades muito maiores que as do roadster, e ainda assim consumindo menos combustível. Como ele fez isso? Sorte? Ou era Brock um gênio autodidata?
Que ele tinha um dom genial para o desenho de automóveis, eu não tenho dúvida. Mas claro que não foi só isso. Ele mesmo explica:
“Quando trabalhava na GM, no início não tinha muito o que fazer, então eu lia muito. A GM tem uma incrível biblioteca, mas fica quase sempre vazia, parecendo uma tumba. Eu passava muito tempo lá, lendo tudo que podia. Certa vez, encontrei um livro de Reinhard Von König-Faschenfeld, um discípulo de Wunibald Kamm, o grande teórico em aerodinâmica alemão. O livro era na língua alemã, e eu não falo alemão, mas eu pude entender os diagramas e fórmulas. Matemática é uma língua universal, afinal de contas. O que eu fiz no Cobra cupê foi usar essas fórmulas à risca. Funcionou perfeitamente…”
Um livro encontrado para passar o tempo. É mole?
9) Ferrucio Lamborghini e Enzo Ferrari (1960)
Essa história todo mundo conhece, mas incrivelmente é a menos documentada, e muita gente acredita que é fictícia, invenção mesmo, “melhorar a realidade”. Tanto que existem milhares de versões diferentes. Como veio de um relato de Ferruccio, sem nunca ter sido confirmado por Enzo, fica no campo da lenda. Mas é tão importante, conhecida e legal, que vale a pena recontar.
Alguns dizem que, ao marcar uma reunião com Enzo para falar sobre os problemas de seu Ferrari 2+2 de uso pessoal, Lamborghini, então um industrial de sucesso, fica na famosa salinha de espera de Enzo por horas. Sem nenhuma reverência pelo narigudo, por não fazer parte do mundo de competições automobilísticas, perde a paciência e vai embora, para fundar sua própria empresa.
Já Ferrucio diz que falou com Ferrari, e este, ao ouvir suas reclamações, disse furioso: “Você não merece meus carros! Não sabre apreciar uma coisa boa! Se limite a dirigir seus tratores!”
Existem outras versões do evento, mas eu acredito piamente na versão de Lamborghini. É bem o estilo colérico e orgulhoso do “Papa do Norte”. Mas de qualquer forma sabemos o que esse famoso encontro resultou: os magníficos carros da casa de Lamborghini. Só uma personalidade como a de Enzo pode nos dar algo tão sublime simplesmente xingando um cliente desgostoso numa segunda-feira qualquer…
10) Rick Wagoner e Bob Lutz (2001)
Bob Lutz, o famoso entusiasta e executivo suíço-americano , um dos pais do Opel GT, do BMW série 3, do Ford Sierra e do Dodge Viper, entre outros, se aposentou na Chrysler em 1998. Conhecido na indústria como um homem de produto com vasta experiência, Lutz, então com 66 anos, não conseguiu ficar muito tempo parado. Assumiu a liderança de um fabricante de baterias chamado Exige, então em problemas ligados à prisão de seus principais executivos num esquema de corrupção.
Enquanto isso, a Rick Wagoner, presidente da General Motors, passava por um dilema. Wagoner foi alçado ao posto máximo da empresa depois de anos fazendo um trabalho difícil, mas necessário: reduzir o tamanho absurdamente grande da empresa, e sua burocracia paralisante, durante os anos 80 e 90. Quando tomou posse, a empresa era mais leve, menos burocrática, e mais adaptada à sua época. Wagoner era um líder amado também, uma pessoa educada e tranquila, e integro e honesto como poucos.
Mas mesmo assim faltava algo a GM. E este algo eram carros bem aceitos pelo público. Focada por anos na parte administrativa e financeira, esqueceu-se do que fabricava. Apesar de uma engenharia de primeira linha, por falta de liderança com conhecimento na área, estava perdida, produzindo coisas que literalmente viravam piada, como o Pontiac Aztek.
A GM de Wagoner acreditava em dados apenas, e o Aztek parecia um sucesso certo nas tabelas e apresentações da corporação. Ninguém se levantou e disse que o carro era medonho. Wagoner era inteligente o suficiente para aprender com os erros; ao ver que não conseguiria ter a intuição necessária para distinguir um sucesso de vendas de um fracasso, tentou achar alguém na corporação que pudesse fazer isso. Mas não achou ninguém.
No ano de 2001, Bob Lutz recebia um prêmio do “Harvard Club” em um jantar de gala. Convidado a apresentar o prêmio estava ninguém menos que Rick Wagoner. Este faz um discurso divertido, como é praxe, cheio de piadas sobre a famosa carreira de Lutz. Ao receber o prêmio, Lutz rebate, continuando no espírito de brincadeira: “Rick, me desculpe, mas nenhum executivo que esteve envolvido com o Aztek me parece ter moral para falar de ninguém!” A audiência, é claro, veio abaixo em gargalhadas.
Rick Wagoner fechou a cara. Sentado ao lado de Lutz no jantar, pergunta, sério: “Bob, o que você acredita que seja nosso problema com produtos? Gostaria de sua opinião honesta.” Bob responde: “Quanto tempo você tem?”
Ignorando a etiqueta de eventos do tipo, e os colegas de mesa, os dois engatam numa conversa de horas. Rick depois se encontra de novo com Bob na Exige, e a conversa flui de novo por horas, até que nosso herói, aos 70 anos, é convidado a trabalhar novamente na GM, primeira empresa que trabalhou, em mais um período que durou 9 anos.
A GM mudou completamente em desenvolvimento de produto, fazendo um sucesso após o outro, de Cruze a Volt, de novo Camaro a picapes incríveis. Até aqui no Brasil, o Onix, líder absoluto, foi criado por uma engenharia empoderada por Lutz a partir do meio da década de 2000, quando parecia empacada em Opels de dez a vinte anos no passado.
Sim, a GM faliu durante este tempo, e Wagoner e Lutz saíram por isso, mas, além da ajuda estatal na crise, é por causa desse encontro que permanece viva até hoje. Motivos externos não apagam o brilho, e a importância, daquela piada de Lutz em 2001.
MAO