O Brasil tem dois tipos de leis: a que “pega” e a que “não pega”. Em dezembro de 2010, a portaria conjunta de nº 69 do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) e do Ministério da Justiça tornava obrigatório registrar no Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo (CRLV) que o carro não foi levado à concessionária para o “recall”. Não “pegou”…
A portaria foi emitida por decisão do então diretor do Denatran, Alfredo Peres da Silva. Ele explicou que o correto teria sido a aprovação do Projeto de Lei 6624 de 2009. De um ano antes, o PL proibiria a emissão do certificado de licenciamento anual caso o carro não fosse levado ao recall. Na prática, impediria o dono de vender o automóvel.
“Como o PL não foi aprovado”, comentou Peres na época, “vamos tentar pelo menos que se registre no documento que o carro não cumpriu o recall. Assim, o novo proprietário fica pelo menos ciente de algum problema de segurança do carro que está adquirindo”.
Peres acrescentou ainda que o PL de 2009 não foi aprovado pois foram levantados questionamentos legais, já que impediria a venda do carro. “Mas, com a portaria, o novo dono fica pelo menos avisado”. O então diretor do Denatran (o mais eficiente que passou pelo órgão nos últimos anos, em minha opinião) nem imaginava que sequer a “sua” portaria “emplacaria”: ele deixou o posto dias depois mas, passados oito anos, não houve nenhuma movimentação do órgão para se efetivar o registro no documento.
O Denatran, consultado a respeito no ano passado, explicou que havia dificuldades burocráticas para cumprir a portaria, mas que “o registro seria implantado até o segundo semestre de 2019”
Esta é a postura do brasileiro em relação à segurança veicular: o motorista não atende ao recall, o governo não se preocupa com o assunto e as fábricas de automóveis fingem que nada acontece. Honrosa exceção para Toyota e Honda que estão em busca de seus modelos mais antigos chamados para a substituição dos problemáticos airbags da Takata.
A triste verdade é que Executivo e Legislativo só se mexem quando estimulados por lobbies: ninguém vai se dedicar ao assunto recall pois não representa faturamento algum e portanto se arrasta há anos sem solução. Mas uma idiotice como a placa Mercosul foi — aos trancos e barrancos— implantada para alegria de seus fabricantes.
Não se pode afirmar que só o brasileiro não se preocupa com o recall, pois o índice de ausência é grande em outros países. Mas, no Brasil, é alarmante: nem 50% dos carros são levados à concessionária, mesmo quando se trata de um problema grave como os airbags da Takata que, ao invés de proteger, podem ferir e matar motorista e passageiro.
Além disso, a legislação que regulamenta o assunto é rigorosamente idiota: o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor exige que o fabricante realize o recall (com todas as despesas inerentes) ainda que o problema atinja um número ínfimo de veículos. A Volkswagen foi obrigada a fazer, recentemente, um recall destinado a um único carro (importado) e um segundo para apenas duas unidades, todos com proprietários identificados. Importadoras foram igualmente forçadas ao recall que atingia menos que dez unidades, todas com donos conhecidos.
Agora, o deputado Juninho do Pneu (DEM-RJ) reedita o projeto de 2009 com seu PL 1263/19 de mesma finalidade: impedir a emissão do CRLV caso o carro não tenha atendido o recall. Está sendo analisado pelas habituais comissões da Câmara dos Deputados, e, na prática, ao proibir a renovação do certificado, impede também a venda do veículo. Exatamente como queria Alfredo Peres há exatos dez anos…
BF
A coluna “Opinião de Boris Feldman” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.
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