Na semana passada comentei neste espaço a questão das cadeirinhas. Aconteceu como eu previa: o assunto sumiu das mídias (anti)sociais em apenas alguns dias e ninguém mais foi xingado de irresponsável por não criticar o fim da multa mesmo dizendo que continuaria levando crianças devidamente acomodadas nesses acessórios.
Não que eu seja bruxa ou veja o futuro — muito pelo contrário. Como já disse, consigo errar até previsão de eleição presidencial nos Estados Unidos quando só tem potencialmente dois candidatos. Apenas que no ciberespaço nada dura muito tempo, nem mesmo os “escândalos” ou a indignação.
Mas uma coisa me chamou a atenção. Muitos leitores disseram que colocam seus filhos desde que nasceram nesses acessórios, mas eles mesmos nunca usaram. Dá para dizer que seus próprios pais eram irresponsáveis? Lá vou eu estragar o suspense: não, não e não. E digo isso sem saber de qual geração são esses progenitores. Ou sem conhecê-los. Muitas vezes caímos na armadilha de julgar o passado pelos padrões do presente. Nada mais errado do que isso.
Eu tive ataques de caspa ao ver a cena de “Mad Men” em que a família do publicitário Don Draper termina um piquenique num parque e a esposa do personagem de Jon Hamm sacode a toalha de mesa, mandando às favas guardanapos sujos, pratos e nem lembro mais o quê, guarda a toalha no porta-malas e vão tranquilamente embora, deixando todo o lixo na grama sem nenhum drama de consciência (vídeo abaixo). Isso depois de o próprio Don Draper ter arremessado uma lata de refrigerante enquanto conversava com a família. A cena se passa em algum momento nos anos 1960 e então não existia o hábito de cuidar do próprio lixo. Dá para culpar o personagem? Não. Os produtores poderiam ter alterado ou omitido a cena? Na minha opinião, não, e fizeram bem em usá-la. Teria sido hipocrisia e não teria marcado a evolução (positiva, desta vez) do comportamento humano. Assim como eu, muitos telespectadores se horrorizaram e houve um certo tititi nas redes sociais.
O mesmo me acontece quando vejo um dos meus seriados antigos favoritos,” A Feiticeira”. Samantha costuma chegar em casa dirigindo seu enorme carro com a pequena Tabatha sentadinha numa cadeirinha que quase parece uma cadeira de praia, pendurada por dois caninhos que parecem canudinhos de tão frágeis, no banco da frente de um conversível! Socorro! Novamente, anos milnovecentoseGordini.
Não podemos, nem devemos, querer usar nossos atuais padrões para julgar comportamentos e atitudes passadas. As informações circulavam de uma forma muitíssimo mais limitada. Não havia internet, as tiragens de livros eram muito inferiores, não havia e-books… enfim. Nem sequer havia programas do tipo “Caçadores de mitos”. Muito menos testes de impacto divulgados amplamente ao alcance de leigos. E os modelos disponíveis eram bem precários para nossos padrões atuais (foto de abertura)
Ainda na questão da cadeirinha o trânsito era, de fato, muito diferente do atual. Havia, por óbvio, menos gente e menos carros circulando. Os motoristas não tinham tantas distrações como hoje. Infelizmente, é muito comum vermos condutores digitando nos celulares ou mesmo lendo mensagens o tempo todo — provavelmente o motivo mais comum de distração ao volante. Dependendo da época, até rádio era raro. Hoje vejo carros circulando até com televisão ou DVD para o motorista ligados — sim, nem preciso dizer que é irregular e constitui falta gravíssima.
Também anos atrás não se conheciam bem os pontos fracos na carroceria de um veículo. Por isso, muita gente levava filhos no porta-malas — não havia aquela noção de proteger o habitáculo nem de fazer com que o carro “aceitasse” a batida em vez de resistir a ela. E, de uma forma em geral, a segurança era um conceito bem mais, digamos, fluido. Basta ver corridas de Fórmula 1 antigas. Mecânicos consertavam carros ou trocavam os pneus trajando bermudas e camisetas como se estivessem à beira da piscina — com as roupas de hoje poderiam tranquilamente consertar uma nave especial, do lado de fora, é claro. O público ficava separado dos veículos por uma faixa imaginária, pois apenas não pisava no asfalto e se limitava à grama, embora nem sempre. E o que dizer da hora da bandeirada? Era um monte de gente na pista, junto com o sujeito que agitava a bandeira quadriculada! Imagina se estourasse o pneu de um carro? Melhor nem pensar.
O mesmo se aplica ao uso do cinto. Com raras exceções, muitos de nós não usaram cinto até uns 20 anos atrás. Certamente eu estou entre as exceções sei lá por que. Meus pais tinham mania de cinto, mas não sei qual a razão e infelizmente não tenho mais como perguntar. Lembro que só com uns 11 ou 12 anos é que me deixaram ir para o banco da frente, ainda sempre com cinto. Mas éramos moscas brancas. Lembro que uma vez minha mãe ouviu estoicamente alguém dizer para ela: “como você aguenta andar assim, parecendo a motorista de suas filhas?”. Imagino os mantras que ela deve ter entoado para não responder à grosseria. Talvez só mesmo porque ela achava que era melhor para as pimpolhas.
Provavelmente, daqui a alguns anos nossos descendentes nos achem pouco menos do que bárbaros por andar em veículos “apenas” com airbags, controle de estabilidade, câmera de ré e outros acessórios de segurança. Talvez haverá outros que hoje sequer conseguimos imaginar ou talvez o teletransporte elimine a necessidade de todos eles. E nossos tataratataranetos nos achem irresponsáveis por termos levados seus antecessores nesses veículos tão inseguros. Ou, quiçá, eles mesmos andem a pé carregando galhos de árvore à procura de animais selvagens para matar e garantir o almoço e não estejam nem um pouco preocupados com nossas polêmicas em torno das cadeirinhas e dos cintos de segurança.
Mudando de assunto: Meu amigo motociclista e instrutor de moto Tite Simões tem uma resposta excelente quando alguém que começar a se aventurar nessa modalidade e lhe pergunta:
— Professor Tite, quero começar a andar de moto. O que preciso?
— Lembrar que é vertebrado. E que ossos quebram.
NG