Já abordei várias vezes aqui o tema das liberdades que certas autoridades se outorgam em relação ao Código de Trânsito Brasileiro. Pequenas (ou nem tanto) transgressões, interpretações mais do que elásticas daquilo que está claramente escrito e, muitas vezes, apenas me resta aquela pergunta: como é que ninguém avisou a essa criatura que o que ela está fazendo é ilegal/irregular? Sim, porque como todo jornalista que já cobriu algum setor em Brasília sabe, ao cidadão comum é permitido fazer qualquer coisa desde que não desrespeite a lei. Já as autoridades públicas só podem fazer aquilo que está na lei. Toda autoridade deveria saber disso. Parece simples, não? Pois é. Parece, mas sempre tem alguém que complica. E não é que quando a gente pensa que as “otoridades” não têm mais o que inventar elas nos surpreendem inventando algo ainda mais absurdo?
Vamos, então, falar da mais recente porque nunca, jamais, nunquinha, digo ou escrevo “a última barbaridade” porque tenho certeza de que não será. Sempre vem outra. É apenas uma questão de tempo ou de a gente estar mais informada. A mais recente foi pintar lombadas (as tais travessias elevadas) com as cores do arco-íris em comemoração ao dia do orgulho LGBTQI+ (foto de abertura). Isso se não esqueci nenhuma letra. Se sim, me desculpem, mas a toda hora acrescentam alguma.
A iniciativa desta vez foi em Minas Gerais, dentro do campus da Universidade Federal de Juiz de Fora. A pintura das faixas é parte de uma idéia “de compor uma programação democrática e acessível” segundo o organizador, professor e coordenador do projeto de extensão “Identidades, cidadania e inclusão LGBTQ+”.
É óbvio que apesar de dentro da Universidade, as leis de trânsito ainda se aplicam por lá, tanto que as ruas tem nomes, sinalização horizontal e vertical padrão e seguem as normas da legislação — bem, quase todas. Travessia elevada multicolorida é algo totalmente fora do CTB, das normas, de qualquer coisa. Não questiono comemorar esse ou outro dia nem adotar ações de valorização de quem quer que seja, mas imaginem se para cada celebração forem pintadas as ruas da forma que alguém bem entende?
Tendo em vista nossos Legislativos datas para lá de estapafúrdias, já pensou se algum reitor resolver homenagear outras datas? Aliás, por que não levantar a autoestima dos vovôs e celebrar o dia do vovô que em Belo Horizonte existe. Porque eles não têm direito a uma programação democrática e acessível? O reitor da universidade pintaria as faixas com, sei lá, desenhos de cadeiras de balanço, óculos ou bengalas e andadores? (grau máximo de ironia, por favor, não me chamem de preconceituosa).
No mesmo estado, Minas Gerais, mas em Belo Horizonte há o inesquecível Dia Municipal da Luta de Braço — por sinal para os curiosos como eu, é 27 de agosto, dia da fundação da Confederação Brasileira de Luta de Braço. Por que o reitor não quereria homenagear estes valorosos esportistas? Ou este seria considerado um esporte elitista que, por isso, não precisa de homenagens nem maior visibilidade? (a ironia continua em alta). Ou, ainda, por que não homenagear uma força de trabalho tão esquecida, relegada a segundo plano mesmo, mal paga, pouco valorizada e homenagearmos o Dia do Coveiro? (sim, ele também existe em várias cidades, incluindo a capital mineira). As universidades poderiam valorizar esta categoria, não? Pintar-se-iam pás e esquifes nas lombadas, quiçá.
Curiosa mesmo fico em como homenageariam o 9 de Maio que na cidade de Esperantina, no interior do Piauí, é o Dia do Orgasmo. Sim, caros leitores, ele existe. Em outros países ele é meio chacota, meio comercial para alavancar as vendas de sex-shops e se “celebra” (será essa a palavra?) no dia 31 de julho. Mas em terras tupiniquins em 1999 o então vereador Arimatéia Dantas (PT) propôs e conseguiu que a Câmara Municipal da cidade aprovasse a data, apenas um dia depois da sanção.
Não menos respeito merecem as baianas do acarajé, cujo dia se comemora em 25 de novembro. Por que não homenageá-las com uma travessia elevada pintada de branco e com rendas? Sim, porque espalhar vatapá por aí seria um perigo para quem transitasse por ali… Ou com rotatórias que não tivessem saídas, lembrando os rodopios das saias destas incríveis mulheres?
Já escrevi sobre a poética iniciativa (foto acima) de um secretário de Cultura que achou bacana sair pintando versos no leito carroçável das ruas de sua cidade — dele, pelo visto, pois o conceito de público parece que tem diferentes significados para uns e outros. Simpático? Nem sei, mas é ilegal e irregular. Tem gente que acha balão de festa junina lindo, uma tradição, etc., etc., etc. como diria o rei de Sião. Pois é, soltar balão é ilegal e pode causar incêndios e mortes. Justamente por isso é que a lei existe. Se não, cada um que acha algo bonito sai por aí fazendo.
Três anos atrás escrevi aqui sobre as “novas” cores usadas por algumas prefeituras para pintar faixas de pedestres, totalmente em desacordo com as normas. A alegação era de que eram “mais visíveis” assim. Bem, já saímos de uma cor para outra e outra e outra e agora é necessário todo um arco-íris. O que vem depois? Como disse à época, em breve seremos todos daltônicos.
Eu, por exemplo, acho monótonas as cores do farol. Quando for prefeita (ou reitora de universidade ou apenas professora novamente já que qualquer um pode fazer isto) vou mudar as cores verde, vermelho e amarelo para rosa antigo (uma das minhas favoritas), roxo (me cai super bem, vocês precisam ver) e azul anil que eu acho muito romântico. E também nada de colocar verticais, com algum significado assim como primeiro pare, a do meio não comece a travessia e a última siga em frente. Não, nada disso, vou fazer em ziguezague que é mais bonito. Mas quem sabe na outra esquina mude e coloque em forma de triângulo, para dar maior visibilidade. Que tal?
Será que alguma categoria, seja ela minoria ou maioria, precisa violar o CTB para ter visibilidade? Respeito se consegue desrespeitando as leis e as normas? Para mim, a mensagem é exatamente a oposta. O direito à visibilidade de uns não pode se sobrepor ao direito à visibilidade das placas e sinais de trânsito. O trocadilho foi involuntário, mas é legítimo. Será que não há outras formas de se obter respeito? Cidadania, que é o que clama o professor, é para todos na sociedade, então porque desrespeitar normas se inclui nesse quesito? Diria, também neste caso, que é exatamente ao contrário. Acho muita falta de criatividade mas talvez seja esse um dos problemas: gente que não pensa fora da caixa e se limita e repetir iniciativas de outros. E nem vou falar em problemas de trânsito que foram relatados nem em gasto de dinheiro com as tais intervenções. Limitar-me-ei ao cumprimento das leis (uma mesóclise e tanto).
Paris adotou a pintura de algumas faixas de pedestres com as cores do arco-íris no ano passado, na gestão de Anne Hidalgo. Em primeiro lugar, não sei como é a legislação lá. Em segundo, se vamos copiar coisas daquela cidade quero primeiro um metrô com a extensão e a qualidade daquele, e, claro, baguettes com o mesmo sabor das que se encontram por lá, sem falar nos vinhos, entre outras coisas.
Estocolmo e Utrecht (Holanda) entre outras cidades também fizeram isso, mas, novamente, não sei como é legislação. E, justamente já que todo mundo fez isso, não está na hora de fazer algo diferente se quer chamar a atenção para um fato?
Pessoalmente não acho que esse tipo de atitude gere mais do que mídia o que, me parece, é o que essas autoridades querem. Não tenho certeza de que isso signifique uma valorização ou afirmação de qualquer segmento ou ideal. Se for assim, falta pintar travessias em defesa da Amazônia, contra a poluição dos rios, em defesa das populações indígenas, dos quilombolas, contra o narcotráfico, a favor dos direitos dos deficientes, pela educação… nem sei se haveria travessias suficientes para tantas ações afirmativas. Mas só de pensar como seria o cenário urbano e os acidentes tenho ataques de caspa.
São Paulo já pintou faixa de pedestres na Av. Paulista que durou apenas o dia da parada, em 2017 — OK, foram repintadas com o padrão antes da abertura ao trânsito. Sem problemas nesse caso, pois foi algo temporário.
Acho que é uma questão de “lacrar” e de querer ser mais do que o outro. Apenas isso. Pena que quem deveria ensinar passe o recado contrário. Estabelecem-se guerras de narrativas para ver quem ganha. E danem-se os pedestres, os motoristas, os ciclistas e mesmo aqueles que, no futuro, serão tudo isso e hoje apenas aprendem maus exemplos.
Mudando de assunto: como todos sabem, adoro carros, mas não resisto a uma piada infame. Quando junta os dois, então… (tradução livre: “finalmente entendi para que serve essa coisa atrás do carro”)
NG
A coluna “Visão feminina” é de exclusiva responsabilidade de sua autora.