Dirigir é algo delicioso, mas fazer baliza, por exemplo, não é algo que adore especialmente embora seja exímia nisso — força das circunstâncias, diga-se. Como cover de Mulher Maravilha que sou, também gosto muito de cuidar da casa, cozinhar, receber amigos, dar festas — e faço tudo euzinha, desde a comida até os arranjos de mesa. Isso significa fazer supermercado, ir ao açougue, à quitanda, à lavanderia, enfim, fazer todas as compras e, ainda, ir à costureira para encomendar aquela toalha de mesa que combina com o cardápio do almoço que vou fazer… E anda, para, estaciona, anda, para, estaciona, anda, para, estaciona… Não, nada disto me faz menos feminista no sentido de querer direitos (e deveres) iguais em muitas coisas, embora ache que homens e mulheres somos diferentes. Mas não vou entrar nessa seara hoje. Apenas quero dizer que gosto de ser jornalista, mas também me realizo fazendo um belo almoço e tendo uma bela casa. E não vejo dilema algum nisso.
Mas sem mais voltas (que ironia), vamos ao meu assunto de hoje: é claro que adoro dirigir, mas tem algo que gosto especialmente: fazer curvas. Sério. Nunca converse com ninguémi e não sei se isso é normal ou não, mas fazer aquela curva perfeita para mim é uma realização. Quando viajo adoro essas estradas de montanha, ou mesmo aquelas ao nível do mar, sinuosas. A Cuesta del Lipán, no noroeste da Argentina, é um dos melhores lugares da face da Terra para quem, como eu, gosta desses, vá lá, acidentes de percurso. A Serra do Rio do Rastro, em Santa Catarina, está na minha lista de desejos. Mas mesmo sinuosidades menores de caminhos do dia a dia quando feitos perfeitamente (ou seriam redondos?) sempre me provocam sorrisinhos de satisfação e sensação de algo bem feito.
Vejo poesia em reduzir antecipadamente a velocidade, só de leve, apenas tirando o pé do acelerador, entrar no ângulo certo e então pisar no pedal direito e fazer o traçado perfeito. Para mim, é algo catártico. É claro que gosto de dirigir em linha reta, em subidas, descidas (especialmente carros com câmbio manual, reduzindo as marchas), mas curvas… ah, curvas… Sim, relendo o que acabei de escrever pareço um homem descrevendo a mulher ideal. Mas talvez seja uma mulher autoentusiasta descrevendo a manobra ideal…
Ainda assim, não sou só eu quem acha isso. O grande escritor Mário Quintana me dá razão. É dele a frase que usei à guisa de título: Linha curva: o caminho mais agradável entre dois pontos.
Sempre prestei muita atenção na forma de dirigir de grandes pilotos, mas especialmente nas curvas. Sempre ouvi falar no lendário Tazio Nuovolari, o Mantuano Voador. Nos anos 1930 a principal característica deste piloto era, justamente, “agredir” as curvas e fazer um traçado diferente, mas usando uma técnica totalmente diferente.
Provavelmente, a melhor descrição desta técnica foi feita pelo próprio Enzo Ferrari que um dia pediu para ir junto com “Nivola”. Na primeira curva, ele achou que o piloto havia perdido o ângulo de entrada e que acabariam fora da estrada. Mas aí notou o semblante tranquilo do piloto. E isso se repetia a cada curva. Disse Ferrari: “Durante toda a parábola da curva, Nuvolari não levantava o pé do acelerador – até o mantinha lá embaixo. Ele abordava a curva um pouco antes do que meu instinto de piloto me dizia. Mas o fazia de uma forma insólita, apontando, quero dizer, de uma vez, o bico do carro contra a margem interna, justamente onde a curva começava. Pisando fundo (obviamente, com a marcha exata já colocada antes de sua assustadora “embicada”) provocava a derrapagem do carro nas quatro rodas, apressando o empuxo da força centrífuga e contendo-a com a força das rodas motrizes. Durante todo o arco, o bico do carro tirava fina da linha interna e quando a curva terminava e se abria reta à frente, o carro já estava na posição normal para prosseguir reto”. Caros leitores, isto não é poesia para vocês também?
Nuvolari foi considerado o gênio da derrapagem controlada, que ele usava para fazer as curvas dessa forma, digamos, original. O tal do drifting — técnica que eu só domino quando estou brincando de meias no assoalho de casa, no melhor estilo “Negócio Arriscado” — e mesmo assim ainda levo uns tombos de vez em quando. Mas esse domínio fazia parte de como fazer curvas. Nuvolari testava as pistas correndo antes com meio carro na pista e meio na área de escape. O sujeito tinha um controle tão absurdo do carro que chegou a correr com a perna direita engessada — ou seja, apertando três pedais com um único pé. Nada estranho para quem chegou a correr uma prova de moto com as duas pernas engessadas… Sim, porque ele era gênio em duas e quatro rodas.
A vitória na corrida Mille Miglia de 1930 é lendária. Achille Varzi se defendia a cada aproximação de Nuvolari abrindo nova distância, alertado pelos faróis do carro do mantuano, até que este descobriu e não teve dúvidas: apagou as luzes e continuou dirigindo feito um louco, no escuro. Varzi não viu a aproximação de Nuvolari que, numa curva, o ultrapassou, acendeu os faróis e seguiu rumo ao pódio. Caros leitores, lembrando que falamos de estradas na Itália em 1930 e de uma prova de 1.600 quilômetros de uma tacada só. Imaginem as condições da pista. De fato, a Mille Miglia é a predecessor dos ralis atuais.
É claro que além dessa técnica original de fazer curvas, o sujeito tinha uma garra e uma tonelada de conhecimentos técnicos absurdos. Assim como outros dos meus ídolos, tinha algo de blasé. Diz a lenda que em 1933 depois de dominar totalmente a corrida Tourist Trohpy, na Irlanda (a Fórmula 1 só surgiria quase vinte anos depois) alguém lhe perguntou o que havia achado dos freios do MG K3 Magnette que dirigira. “Na verdade, não posso dizer. Nem os usei muito…”. Em outra ocasião, quando dirigia feito um louco com seu mecânico ao lado na Mille Miglia, a tampa do motor soltou e ele acabou de arrancá-la com um tapa. Comentário dele para seu acompanhante? “Melhor agora. Assim o motor resfria mais rapidamente”. Aliás, mecânico para ir de copiloto de Nuvolari era difícil de achar. Muitos simplesmente tinham medo. Um dia, Enzo Ferrari chegou para o mantuano e lhe apresentou o mecânico Sergio Scapinelli, que seria o copiloto de Nuvolari na Mille Miglia de 1948. Credenciais do mecânico, segundo Ferrari? “Este sujeito tem 100 horas de voo, esteve na guerra e foi derrubado várias vezes. Não terá medo. Irá com você”.
O símbolo de Nuvolari era, paradoxalmente, uma tartaruga. Ele ganhara uma de ouro do poeta italiano Gabriele D’Annunzio com a seguinte frase: “Para o mais veloz animal da face da Terra, o mais lento”.
Hoje a célebre manobra de Nuvolari para fazer curvas não seria possível — aliás, nos últimos anos de sua vida também já não era viável integralmente. Naquela época as rodas não eram independentes e na época usava-se uma pressão altíssima para calibrá-las. Mesmo assim, apenas Nuvolari conseguia fazer as curvas dessa forma — alguns até chegaram perto, mas em curvas mais difíceis, acabavam levantando o pé e “telegrafando” com o acelerador. Depois com o uso de suspensão independente e pressões mais baixas nos pneus já nem o próprio Nuvolari podia fazer sua acrobacia completa, mas manteve até seus últimos dias a técnica de embicar o carro na direção interna da curva e provocando a derrapagem, então já corrigindo com alguns toques no volante e sem manter o acelerador pisado sistematicamente até o fundo. Ah, as curvas que os caminhos nos apresentam…
Mudando de assunto: gosto muito de MotoGP e acompanho pela televisão sempre que possível. Mas… gente, o que foi essa corrida da Áustria, no circuito de Spielberg? Final de enfartar qualquer criatura com sangue nas veias! Torço pelo Marc Márquez, mas durante as últimas voltas teria dado um troféu para ele e outro para o Dovizioso. Que disputa linda, técnica, de puro talento. Esses caras têm coragem mesmo. Com uma “ropitcha” um pouquinho mais resistente, mas basicamente o corpo como carroceria, disputam cada metro com uma garra incrível, a mais de 300 km/h. Merecem todo meu respeito de auto/motoentusiasta.
NG