Vendo a repercussão positiva da matéria CAMINHÕES MERCEDES-BENZ DE CAPÔ CURTO: 60 ANOS, e a participação dos leitores contando histórias de vida e vivências com esses veículos, acabei resolvendo escrever um pouco daquilo que vivi e ouvi de pessoas que vivenciaram esses caminhões, verdadeiras lendas sobre rodas. Como muitos disseram, o “Fusca dos caminhões”.
As histórias que deixarei aqui são lembranças e não necessariamente obedecem a uma ordem cronológica.
Os caminhões da Firma
Na década de 1980 e 1990 meu pai foi sócio de uma construtora, e a empresa tinha muitas obras naquele tempo. A frota de veículos era grande mas concentrarei nos caminhões.
Que eu me lembre, a empresa tinha um Alfa 210 cavalo-mecânico com o maior guindauto (caminhão com guindaste na carroceria) que conheci até hoje, agregado a uma prancha de três eixos (apelidado de “Mucão”, alusão a marca Munck), cinco caminhões Ford, sendo um F-600 tanque (verde, horroroso), três F-11000 (sendo um com guindauto pequeno — o “Muquinho”) e um Ford F-14000, adquirido, pelo que soube, para transportar uma retroescavadeira Ford 6600, que nos caminhões comuns da empresa não passava em balança).
Os Mercedes, esses sim eram vários: tinha um Mercedinho 608 D preto, Mercedes L-1113 com três eixos, um L-1313 com terceiro eixo (e o único vermelho, os demais eram azuis), um LA-1113 comum, com guindauto (o “Mercedes Muque”), dois LB-2213 (betoneiras), um LK-2213 e em 1988, foi adquirido um Mercedes L-2014 zero-quilômetro. Esse caminhão eu vi sem placa!
Tirando os 2213 e o LA-1113, cada caminhão Mercedes tinha o seu motorista, aliás algo exclusivo dos Mercedes porque os Ford não tinham “dono” (e a conservação, por consequência…)
Uma coisa engraçada é tanto o L-1113 quanto o L-1313 com três eixos tinham o entre-eixos de 4,2 m, o que fazia com que a carroceria tivesse 6 metros, igual á dos Ford F-11000.
O 1313 tinha uma coisa engraçada, coisa de motorista de firma: Precisando dormir na cabine, o seu Isac (a pessoa que dirigia o caminhão) simplesmente pintou de tinta vermelha o vidro da vigia traseira. E o mais incrível é que esse caminhão permanece assim até hoje (eu vi!), uma vez que está na fazenda de um tio de meu pai.
Já o LA-1113 “Muque”, embora no documento constasse como um veículo modelo de tração integral, eu o conheci sem eixo motriz dianteiro. Esse caminhão permaneceu na empresa até recentemente, quando foi furtado.
Os betoneiras LB-2213
Os dois LB-2213 betoneiras eram 1980 e foram adquiridos por meu pai para as obras da Cohab em Santa Etelvina, Itaquera e Sapopemba, bairros da Zona Leste de São Paulo.
Diz meu pai, João Luiz: “Compramos os LB-2213 para entrar no lugar dos modelos Fiat 180 C3. Como os Fiats não eram 6×4, era muito comum estragar a ponta de eixo com trancos no diferencial, e como, além de tudo, o local da obra era extremamente enlameado, a opção mais racional foi o 2213”.
E prossegue: “O Mercedes, diferentemente dos demais, não dava “tranco” quando arrancava, e por isso não derramava concreto quando trafegava. E o sistema de bomba hidráulica colocado na dianteira do caminhão, permitia o acoplamento de outro caminhão betoneira frente a frente um com o outro, em caso de quebra de um deles, impedindo que o concreto parasse de bater e endurecesse no ‘bule’”.
Os LB-2213 eram usados essencialmente dentro do canteiro de obras, quando era montada a usina de concreto. Por serem veículos lentos, não se prestavam para transporte de longas distâncias mas eram perfeitos para deslocamentos internos.
Os betoneiras, apesar do relativo pouco uso (passavam muito tempo parados, quando os serviços não requeriam usina de concreto no local) eram bastante surrados.
O caçamba LK-2213
Esse caminhão foi adquirido novo em folha em 1979 e era do tipo 3,,6 metros de entre-eixos (como os betoneiras). Aliás, foi no LK-2213 que eu aprendi a dirigir caminhão!
O que destacava nesse caminhão era o seu sistema de tração empregando duplo cardã. Explico. Hoje, qualquer caminhão 6×4 possui na verdade 3 diferenciais, sendo um em cada eixo e um central, montado no primeiro eixo de tração e que divide a força entre os eixos de tração.
Entretanto, o 2213 e 2216 até 1982 (se não estou errado) apresentavam o sistema de duplo cardã: da caixa de transferência partiam dois cardãs, um para cada eixo traseiro, tracionando igualmente e de maneira permanente os dois eixos diferenciais. Inclusive era possível remover quaisquer um dos cardãs. Cada um dos eixos traseiros era tracionado independentemente do outro.
Aliás, o mote dos folhetos de propaganda do Ford F-22000 era uma alfinetada na Mercedes: “Super Ford F-22000: tração nos dois eixos traseiros, que você só usa onde precisa” — a caixa de transferência do Ford, fabricada pela QT, tinha a opção 6×2.
Embora o sistema seja simples, ele é muito limitante em termos de velocidade e os pneus traseiros tem que ser rigorosamente de mesmo perímetro senão ocorre a quebra de dentes da coroa. Além disso, a partir dos 60 km/h, o caminhão vibra a ponto de parecer que vai desmontar todo, principalmente quando se tira o pé do acelerador.
O nosso LK-2213 fez de tudo que um caminhão pode fazer: apesar de ser um LK, equipado com caçamba, chegaram a colocar nele uma betoneira (adaptaram) e durante um período de tempo, esse caminhão rodou com uma carroceria de madeira de 5 metros de comprimento, algo ridículo para o porte e comprimento do caminhão.
Foi muito usado tanto na empresa quanto nas fazendas do meu avô, seja com carroceria de madeira, seja com caçamba, transportando material para obras, calcário ensacado, fertilizantes, bovinos (tinha uma gaiola feita especialmente para a carroceria de 5 metros) e quando com caçamba, para a confecção de silagem para confinamento de bovinos.
Numa dessas viagens carregando calcário ensacado, aconteceu uma história no mínimo curiosa que ficou famosa na empresa e na Fazenda. João Sanches “Saci”, um motorista que havia na empresa, estava dirigindo o LK-2213 na rodovia Anhanguera a 60 km/h (velocidade máxima do caminhão) quando de repente é abordado por um veículo da Polícia Militar Rodoviária.
Verificações de praxe, o policial se vira ao “Saci” e fala: “Agora que vi que está tudo correto, o senhor retorne com seu caminhão, volte uns 3 quilômetros e lá na altura da base da Polícia pegue um dos seus (eixos) cardãs que o senhor perdeu e está largado na beira da estrada.”.
No final dos anos de 1990, meu pai acabou adquirindo o caminhão da empresa e na Fazenda o serviço básico dele era transportar esterco de galinha para plantio de café, bem como palha e uma ou outra movimentação de terra.
O “Urutu” (apelido que deram ao caminhão), entretanto já estava bastante surrado. Quando o recebemos, o cinto de segurança do passageiro tinha como função amarrar a porta para que ela permanecesse fechada.
Com motor fraco e pneus ruins, sofria com a quebrava dentes da coroa do diferencial e na estrada andar com o veículo carregado de esterco era um verdadeiro martírio. Geralmente tinha que colocar a caixa de transferência em modo reduzido pois como o esterco era vendido por caminhão, sobrecarga era corriqueiro.
Dessa época também ficou famosa a história do Neto, motorista da Fazenda que foi parado numa blitz da Polícia Rodoviária, carregado de esterco. O Policial queria multar o caminhão e o motorista pela falta de tacógrafo e por estar atrapalhando a estrada andando a menos da metade da velocidade máxima do trecho.
O caminhão só foi liberado (e sem multa!) quando no meio da conversa entre o motorista e o Policial, bateu um vento e todas as moscas que voavam sobre o esterco começaram a voar em torno dos dois homens, fazendo com que o policial mandasse prosseguir o quanto antes…
O “Mercedão” L-2014
Era feriado de Carnaval de 1988 e tínhamos ido visitar meu avô na Fazenda. Meu pai e eu fomos até a garagem e lá estava o “Mercedão” L-2014, novinho em folha (idêntico ao do folder acima), sem placa com plástico nos bancos. Aliás, naquele feriado, o Neto, motorista da fazenda ficou encompridando as telhas para que o 2014 ficasse totalmente coberto.
O caminhão, embora ficasse guardado na Fazenda, fazia serviços mistos para a construtora e a Fazenda e meu avô tinha um ciúmes danado do caminhão e como tinha plena confiança no motorista da Fazenda, cedeu-o para a empresa para viagens com o “Mercedão”.
Só que um caminhão para 22 toneladas de peso bruto total com míseros 130 cv e sem opção de um diferencial de dupla redução já é sofrível no plano, em aclives então…
Certa vez, soube que na Serra de Botucatu, carregado de calcário ensacado, o 2014 não conseguiu subir, parando em plena serra (lembrando que motores de aspiração natural perdem potência conforme a altitude). O trecho só foi vencido com a ajuda de um outro Mercedes, com motor turbo (e subindo vazio!), arrastando o 2014 serra acima.
Outra situação curiosa que presenciei várias vezes foi o “vexame” dele subindo a Rua Teodoro Sampaio, em São Paulo, para uma obra que a empresa fazia ao lado da escola onde estudei. Nessa rua era comum vê-lo levando cimento para a obra, sofrendo para subir enquanto um Chevrolet D-60 barulhento (hoje sei se tratar de um Chevrolet com motor Detroit 4.53), claramente sobrecarregado com blocos de concreto, ultrapassar toda uma fila de ônibus e o “Mercedão” inclusive.
Aliás, algo que nunca compreendi foi o porquê de a Mercedes Benz não oferecer diferencial de dupla redução no L-2014 nem como opcional, algo disponível nos L-1313/1314/1513/1514/1517 e 1518 como opcional e pasmem, de série até mesmo no Ford F-600!
O desempenho do 2014 original era tão sofrível que o motor original, exigido em demasia, necessitou de reforma com pouquíssimo tempo de uso e neste momento, foi feito o seu repotenciamento com a adição do turbocompressor. Esse Mercedes existe até hoje e ainda pertence aos meus tios. A última vez que o vi foi há uns 5 anos, estava bem conservado e bastante original.
DA