Pois é, caros leitores, novamente a urgência do noticiário me leva a mudar de assunto. Voltarei às minhas colunas sobre minhas peregrinações pelos Bálcãs falando sobre cada país na semana que vem, pois tenho muitas coisas interessantes para contar e muitas fotos para mostrar, mas não queria perder o “timing” de escrever sobre dois assuntos que muito me interessam: veículos e estatísticas.
Então, hoje vou de assunto brasileiro, mesmo, pois o resultado de uma medida adotada há alguns meses me surpreendeu: em São Paulo, tirar as motos das pistas expressas das marginais e confiná-las nas pistas locais teria reduzido o volume de acidentes. A medida havia sido anunciada como uma tentativa de reduzir o número de acidentes, incluindo os fatais (foto de abertura). Digo “teria” não por que desconfie dos números — espero que estejam corretos, é claro — mas porque desconfio dos motivos para que isso tenha acontecido.
Em primeiro lugar, quero deixar bem claro que sou ideologicamente contra proibições de circulação. Deve ser meu espírito libertário. Me julguem.
Então, vamos esclarecer:
– Sou contra o rodízio de veículos que se adota em São Paulo e impede que carros circulem por quase toda a capital entre 7 e 10 horas da manhã e entre 17 e 20 horas dependendo do dígito final da placa. Começou em outubro de 1997 com o objetivo — desculpa? — de reduzir congestionamentos quando a frota da cidade era de 3 milhões de veículos e hoje é bem mais que o dobro disso. Fora que era experimental, os meses de julho e janeiro estavam fora do rodízio, mas a exceção não durou, e de “experimental” passou a 22 anos, servindo apenas para perturbar a vida dos munícipes e — claro — engordar os cofres da prefeitura com as mais de 1,5 milhão de multas por ano. Os prefeitos que se seguiram ao “inventor” desse rodízio, Celso Pitta, simplesmente o mantiveram.
Esse rodízio foi precedido de outro, de natureza ambiental, e estadual, abrangendo a região metropolitana de São Paulo, nos meses frios (maio a setembro). Pelo mesmo critério de último dígito da placa, era proibido circular das 7:00 às 20h00. Foram feitos três, de 1996 a 1998, o último ainda complementado pelo rodízio municipal.
– Sou contra as restrições de circulação em determinados locais — como as ruas do Centro Velho de São Paulo na última sexta-feira de cada mês e agora em dezembro todos os dias de segunda a sábado. Trabalhei durante muitos e muitos anos no Centrão e frequento a região, pois conheço bem o comércio, onde tem cada tipo de produto…me sinto em casa. Bem, numa casa bem, bem muvuquenta… mas, fala sério, como querem que se façam compras na 25 de Março sem que se possa chegar minimamente perto de carro? Detalhe: passa lá, por dia, mais de 1 milhão de pessoas. E o que dizer da própria 25 de Março, onde os camelôs tomam as calçadas e “empurram” os pedestres para o meio da rua? Qual foi a solução da Prefeitura? Impedir a circulação de carros (!) em vez de fiscalizar isso — nem 5% dos que estão lá tem autorização para vender seus produtos e também não foram feitos os prometidos bolsões para que esse tipo de comércio se instale. Quem vai para lá é para fazer compras em grande volume, muitos inclusive o fazem para revender. E aí, faz o quê? Carrega os pacotes gigantes e pesados e anda até o metrô ou alguns quarteirões até o ponto de ônibus? Como? Nem táxi ou Uber podem chegar perto, pois várias ruas do entorno também foram impedidas aos carros e até mesmo as rotas dos ônibus foram desviadas. Nem vou tocar no assunto da moda: inclusão. Não há a menor chance de alguém com qualquer tipo de deficiência, por mais leve que seja, ou mesmo alguém de idade ir a estes lugares. Pessoa de idade? Sem a menor chance de ir, pois se cansar tem de continuar andando até chegar a um transporte público. É pior do que o que fizeram com a Av. Paulista, pois até mesmo o entorno foi interditado. Aliás, fechar a Paulista não fez com que fosse melhorado em nada o lazer de quem mora na região – não foi construída nenhuma praça, nenhum equipamento de lazer, nadinha.
Concretamente, entre janeiro e agosto deste ano a Prefeitura diz que houve uma redução de 86% no número de mortes de motociclistas em acidentes de trânsito na marginal Pinheiros, no sentido Castello Branco, em comparação com o mesmo período em 2018. Levantamento da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) apontou que, entre janeiro e agosto de 2019, houve o registro de uma morte na via citada. Já no mesmo período de 2018 foram registrados 7 óbitos. Segundo os dados da CET, em 2018 foram registrados 77 acidentes no local, contra 55 ocorrências em 2019.
Balanço Marginal Pinheiros sentido Castello Branco:
Janeiro a agosto de 2018
77 acidentes
88 vítimas
7 óbitos
Janeiro a agosto de 2019
55 acidentes
63 vítimas
1 óbito
Quando a proibição de circulação para a marginal Pinheiros foi anunciada, muitos especialistas disseram que a medida seria um tiro no pé e que aumentariam os acidentes. O principal argumento era bem óbvio e razoável: misturando motos com carros e muitas saídas para ruas perpendiculares, aumentaria o número de colisões e acidentes em geral.
O problema, ainda que a notícia pareça boa, é que não se sabe o que teria contribuído para esse resultado — logo, não há como saber se se deve manter essa medida ou mudá-la. Posso certamente apontar várias inconsistências e por isso não chego a comemorar, embora ache que sempre devemos buscar diminuir todo tipo de acidente, fatal ou não. Mas vamos fazer isso com lógica e consistência, né?
Em primeiro lugar, a proibição de circulação de motos nas pistas expressas da marginal Pinheiros, inicialmente apenas no sentido Castello Branco — por que raios só num sentido? —, entrou em vigor no final de maio deste ano. Acho o tempo transcorrido pouco para estabelecer tendências ou mesmo cravar resultados e, pior ainda, comemorar redução “de janeiro a agosto” (portanto, 8 meses) quando houve somente 3 meses de interdição, chega a ser má fé. Poderia levar um pouco mais a sério essa estatística se ela analisasse apenas o período de restrição e num período mais longo. Eu queria ver um recorte mês a mês, pelo menos. Só que não. Os dados foram divulgados em bloco.
Como sempre, tenho também minhas restrições ao uso destas estatísticas e principalmente à contextualização. Não acho que apenas desviar as motos para outra pista seja a razão para a redução dos acidentes. Deveriam ser divulgados números sobre quantidade de motos que circulam pela marginal, por exemplo. Já tivemos períodos em que os acidentes caíram apenas porque havia menos veículos em circulação.
Faltou, também, uma comparação com volume de acidentes nas pistas locais e nas expressas, mas, claro, com proporção entre veículos. Nada de soltar números absolutos, tipo “na pista expressa houve X acidentes com motos e na local Y”. Quero saber em relação ao total de motos que circulam em cada pista. Assim teríamos uma pista (desculpem o trocadilho, não resisti) de se é mais perigosa a pista expressa ou a local. Ainda assim, esse valor não poderia nunca ser o único a ser considerado. Mas ajudaria a ter uma luz sobre o problema.
Faltam também outras informações, como volume de ônibus e caminhões. Com as seguidas reduções no número de linhas de ônibus na cidade, bem como na quantidade de coletivos circulando por dia, não estranharia que algumas tivessem simplesmente deixado de rodar pela marginal. Logo, ainda que houvesse mais motos, menos ônibus nas pistas reduziriam a chance de acidentes, da mesma foram que o fariam menos qualquer coisa – motos, pedestres, carros de passageiros, etc.
A CET disse, à época da proibição e em reuniões com sindicatos de motoqueiros e diversos outros representantes da sociedade, que após análise dos dados de acidentes com vítimas e o crescente número de mortes envolvendo motociclistas nas marginais (15%, de 2017 para 2018), foram feitos vários estudos e identificados os riscos da convivência da motocicleta com veículos de grande porte e com a alta velocidade permitida nessa via. Das mortes ocorridas na marginal Pinheiros entre 2017 e 2018, 65% foram registradas na pista expressa e 20% constam como “sem informação”. Isso me parece muito óbvio, pois motociclistas e motoqueiros preferem a pista expressa não apenas porque podem andar mais rápido, mas também porque evitam as constantes freadas e entradas e saídas de carros tão comuns nas pistas locais, com todas suas ruas perpendiculares. E, como assim, 20% “sem informação”?
As mortes, ainda segundo a CET, se concentram nas sextas-feiras e sábados, durante a madrugada. Enquanto na cidade o número de motos que se envolvem em acidente é de 40%, nas marginais esse total é de 70%. Novamente, faltou contextualizar, pois não sabemos a qual porcentagem de motos sobre o total de veículos correspondem as motos.
A CET apresentou dados que mostram redução de 30% no número de acidentes com vítima e de 20% nas fatalidades na marginal Tietê com a adoção da proibição. O representante do sindicato dos motociclistas disse, na época, que esse número não poderia ser usado como base para previsões na marginal Pinheiros pois nela não circulam tantos veículos de grande porte como na Marginal Tietê, e sim, automóveis de passeio. Parece óbvio, não? Não tenho números precisos, mas com as observações de campo (e de granja), o DataNora diz que na marginal Tietê a proibição de circulação de motos na pista expressa é bastante desrespeitada, o que deturpa qualquer conclusão.
De acordo com a pesquisa Origem e Destino de 2017, a participação das motos na mobilidade da cidade cresceu 42% nos últimos dez anos, muito acima do aumento de viagens no período, que foi de 9%. O uso de motocicletas já vinha aumentando, mas tem crescido ainda mais com a entrada no mercado das empresas de aplicativos digitais de entrega rápida. De acordo com os dados do Sindimotosp, dos 200 mil motociclistas de São Paulo entre 30 e 40 mil são motofretistas trabalhando com aplicativos. Segundo a CET, a concentração das mortes de motofretistas ocorre entre 1 h e 2 h da manhã e um pico significativo entre 20 h e 22 h. Do total de acidentes fatais, 42% envolvem auto e moto (a maioria por colisão lateral), 18% por colisão com veículos de grande porte e 24% moto sozinha (choque). Ainda, 15% dos motociclistas mortos em 2018 eram motofretistas, com ensino médio e faixa etária entre 18 e 31 anos. E aí há um número interessante: aos 18 anos o jovem não poderia ser motofretista, por determinação federal. Mas, claro, os aplicativos não fazem essa restrição ao aceitarem entregadores. Mais uma vez, no Brasil a vida real ignora qualquer lei e derruba qualquer estudo que possa redundar em alguma medida séria. Se nem a base de dados é confiável, pois não podemos deduzir nada se a lei não é seguida e não temos estatísticas sobre as violações, como adotaremos medidas de qualquer tipo? E, ainda, como saberemos se os resultados, positivos ou negativos, se devem à medida adotada ou ao solstício de verão em Marte? Uma coisa tem tanta chance de ser a causa quanto a outra.
Como disse, prefiro esperar mais um pouco para ver estes dados no médio e longo prazo. Novamente, acho que deve-se, sempre, procurar um trânsito mais seguro, mas se erramos no diagnóstico erraremos no tratamento.
Mudando de assunto: voltei dos Bálcãs com um joelho em frangalhos. Como não tenho nada visivelmente estragado, quebrado ou inchado, o ortopedista me pediu uma ressonância. Fui ao hospital para realizar o exame, preenchi o questionário de praxe e enquanto acertavam o aparelho e me acomodavam na mesa, fiquei conversando com a enfermeira e o biomédico sobre por que estava aí prestes a entrar num tubo e ser bombardeada com radiação durante 20 minutos. Expliquei que havia forçado muito o joelho ao andar de 15 a 20 quilômetros por dia durante mais de duas semanas, especialmente subindo e descendo muralhas e andando por parques naturais e montanhas. E aí veio a pergunta óbvia: “Onde você foi?”. Eu respondi: “Vocês não vão acreditar. Estive na Bósnia, Macedônia do Norte, Albânia…”. E aí a surpresa: “É claro que eu acredito. Eu leio sua coluna. Vi sobre seus problemas com os espelhos nos hotéis… ”. Uau! O Alexandre Higino é um verdadeiro autoentusiasta. Acompanha o site há mais de quatro anos, adora os textos e testes do Bob Sharp e diz que é o melhor site para este tipo de informação. Me deu vários exemplos de textos que já havia lido. Já fiz muitas ressonâncias e não tenho maiores problemas, mas não curto especialmente entrar nessas máquinas, especialmente as que são de campo fechado. Mas este exame foi o que fiz mais feliz, contente de trabalhar com gente tão boa como meus colegas de AE e de encontrar leitores que dizem que fazemos diferença. Nem percebi o tempo passar.
NG
A coluna “Visão feminina” é de exclusiva responsabilidade de sua autora.
Nota: Excepcionalmente, esta coluna foi publicada terça-feira. A próxima volta ao dia da semana habitual, quarta-feira.