Em 2003 um amigo perguntou se eu poderia ajudá-lo na Mil Milhas daquele ano, na qual ele correria em um VW New Beetle turbo. Eu estava afastado das pistas desde 1995, portanto aquele convite foi uma nova picada daquele mosquito de Interlagos.
A preparação de um carro de corrida em equipe amadora é bem conturbada. Sempre sobram ajustes e montagens para terminar no box. É um tal de colocar adesivos, fazer instalação de iluminação noturna para identificar o carro na pista, acabar de montar o tanque de combustível e suas mangueiras, e muito mais. Nessa hora passa a vistoria e descobre-se que tem muito mais para fazer. Para ser bem sincero, já não lembro mais qual foi o resultado daquela corrida. Só lembro da picada do mosquito.
Essa picada ficou coçando o ano de 2003 inteiro. Eu sempre me pegava pensando o que poderia projetar e construir para a Mil Milhas de 2004. Não teria a pretensão de grandes resultados, mas apenas competir, divertir-me e, logicamente, chegar ao final. Esse seria o grande troféu.
Estava trabalhando nos últimos ajustes do projeto 4303, a Montana 2004. Derivada do projeto Corsa, e com suspensão traseira por mola helicoidal. Durante os trabalhos de calibração do sistema de suspensão e direção, notou-se que a Montana era muito boa de curva. Tudo que era feito no acerto da suspensão para trazer mais conforto não comprometia a estabilidade em curvas.
Comecei a ver potencial em fazer um carro de corrida derivado de uma picape. Não seria nada inédito, pois já havia a categoria de Ford Courier, chamada DTM Pick-up. Mas aproveitar o gancho do lançamento da Montana seria algo inovador.
Durante o evento de lançamento da Montana para imprensa fui apresentado aos jornalistas da Revista Motor Show, Ricardo Dílser, hoje assessor de imprensa da FCA/Fiat, e Douglas Mendonça, hoje colunista no AE. Eles já tinham feito projeto de carros de corrida com Fiat e VW, faltava, portanto, um projeto com a GM. A proposta inicial deles era a preparação do Corsa mas eles aceitaram minha proposta e partimos para a fase de planejamento da Montana para a Mil Milhas 2004. Isso era setembro 2003 e a corrida seria dali a 4 meses.
A decisão foi utilizar o máximo possível de componentes originais de carros da linha Chevrolet. A inovação seria um carro FlexFuel (gasolina e álcool) numa prova de longa duração. Seria a primeira vez que isso aconteceria no Brasil e no mundo. O objetivo era utilizar álcool na classificação para conseguir um melhor rendimento e também em fases da corrida onde esse maior desempenho fosse necessário. E utilizar gasolina nas fases da corrida onde pudéssemos ganhar vantagem por ter maior autonomia, atrasando o máximo possível as paradas de boxe para reabastecimento.
Foi decidido montar três carros, afinal a Audi, Toyota, Porsche disputavam as 24 Horas de Le Mans com três carros, portanto a nossa equipe teria que utilizar a mesma estratégia. Outra premissa foi a lista de pilotos. Os carros seriam pilotados por jornalistas com experiência em provas de longa duração. E completando a lista com pilotos amadores do nosso círculo de relacionamento e confiança. Todos deveriam estar imbuídos do mesmo espíirito de competir, divertir e levar os carros até o final da corrida.
Todo esse planejamento foi feito até o final de novembro e o início efetivo dos trabalhos nos carros foi em dezembro de 2003. Faltando 40 dias para a corrida começamos a preparação do primeiro carro.
O primeiro trabalho foi definir rodas e pneus. O objetivo era utilizar pneu slick e a única opção era o 195/50R15 da Michellin utilizado na categoria Copa Clio. O primeiro jogo foi comprado para definir os retrabalhos de molas e para-lamas.
A utilização de roda 15” permitiu utilizar o disco ventilado e pinça de freio dianteiro da Meriva e na traseira foi adotado o eixo de torção com maior rigidez do Astra, com seu conjunto de freio a disco.
Enquanto o carro nº 1 era utilizado para fazer o desenvolvimento do pacote de suspensão, freio e carroceria, o carro nº 2 estava nas mãos dos engenheiros de motor e transmissão para definir o trem de força a ser utilizado. A decisão foi utilizar o motor família I 1.8-l com cabeçote de 16v da Meriva.
Motor, câmbio, suspensão, freio e outros sistemas definidos, porém, faltava uma solução aerodinâmica que desse uma cara de carro de corrida à Montana. Instalou-se o aerofólio da categoria Ford Courier na parte traseira e na parte dianteira o para-choque da Montana Sport com um spoiler (defletor) adicional, dando assim um ar mais esportivo ao veículo. Esse pacote aerodinâmico deu um ganho de 10 km/h na velocidade máxima. A asa traseira foi deixada com ângulo de incidência nulo para evitar maior arrasto aerodinâmica nas retas.
Os carros tinham que ser confiáveis e duráveis, mas também tinham que ser bonitos e bem construídos. Para isso utilizamos todo nosso conhecimento de engenharia para desenhar e construir o interior do carro, incluindo banco, cinto, gaiola, etc. Para a parte elétrica do carro utilizou-se todo conhecimento de dimensionamento de carga para construir um chicote elétrico novo que fosse interligado com o original do veículo e que atendesse às normas de segurança de carros de corrida.
A preparação desses carros foi feita por uma equipe de profissionais (mecânicos e engenheiros) do Campo de Provas da GM, e por camaradagem e confiança do Sr. Pedro Manuchakian (vice-presidente para Engenharia de Produto da GM na época), fizemos a preparação dentro do Campo de Provas. Tínhamos um compromisso de cavalheiros de trabalhar apenas após o horário de expediente e nos finais de semana.
O resultado de todo esse trabalho foi muito bem relatado pelo editor da Revista Panorama, publicação interna da GM, Günther Hamann, que nos deixou prematuramente em março de 2015 e a quem eu faço esta homenagem de publicar seu texto abaixo.
GB
Uma ótima ideia
A equipe Chevrolet Endurance participa das Mil Milhas pela primeira vez e ocupa dois lugares no pódio
Por Günter Hamann para a Revista Panorama
A equipe Montana Chevrolet Endurance número 51 cruzou a linha de chegada, explodiu a alegria no box 17 do autódromo José Carlos Pace (Interlagos), em São Paulo. A comemoração teve um sabor especial para Gerson Borini e Ricardo Dílser, os “pais” da ideia de levar a nova picape da GM para a 32º Mil Milhas, realizada no domingo, 25 de janeiro de 2004.
A prova é uma das mais tradicionais – e árduas – competições do automobilismo brasileiro. Dura mais de 12 horas e atrai equipes internacionais. São 374 voltas (1.609 km) no Autódromo de Interlagos, percorridas por pilotos que se revezam ao volante dos carros a cada três horas, no máximo.
Tudo começou menos de dois meses antes da prova. Numa conversa informal, o jornalista Dllser disse que pensava em correr na Mil Milhas com um Corsa Flex Power. Imediatamente, Borini pensou na Montana: “Além de ter o mesmo motor multicombustível, achei que a picape ia ser uma atração nova, pois é um carro recém-lançado”, lembra Borini.
Desde janeiro, Borini é gerente de Validação de Produto no Campo de Provas da Cruz Alta (CPCA). Antes disso, foi gerente de desenvolvimento de Produto até dezembro e trabalhou no projeto Montana. Levou à GMB a ideia de colocar a picape na prova de Interlagos. A empresa abraçou o projeto e resolveu patrociná-lo: forneceu três picapes e permitiu que alguns funcionários do CPCA trabalhassem nos fins de semana e fora do expediente para preparar os carros. “É um apoio light e a equipe tem outras empresas patrocinando”, afirma Pedro Manuchakian, diretor executivo de Engenharia da GM LAAM.
Na preparação dos carros, foram feitos ajustes nas molas e amortecedores e o eixo traseiro foi trocado pelo do Astra, que é muito semelhante ao original, mas proporciona uma tendência direcional melhor para a competição. ” A Montana de pista não precisa levar o peso que uma Montana de rua pode carregar”, explica Borini. Os freios foram trocados por outros maiores – os da Meriva na frente e os do Astra, atrás – e os carros foram calçados com pneus de competição.
No motor, as modificações foram poucas. Foi colocado um cabeçote de 16 válvulas, que dá mais potência em alta rotação. Como a preparação privilegiou a resistência e não a velocidade, o motor era praticamente um Flexpower de rua. A equipe que preparou os carros conquistou um recorde antes de entrar na pista: em apenas 40 dias, os carros estavam marcando o tempo de classificação em Interlagos.
A Montana nº 50 foi conduzida por Gerson Borini, Reinaldo Carvalho da GMB, Fernando Rebelatto, ex-funcionário do CPCA, e pelo piloto Carlos Cunha, todos unidos pelo sangue de mesmo tipo, O+. A Montana nº 51 foi “tocada” pelos jornalistas Ricardo Dílser e Eduardo Bernasconi, pelo engenheiro da GMB José Ricardo Fiaminghi e pelo piloto Alvino Pereira Jr. (que curiosamente, trabalha numa concessionária Volkswagen). Os pilotos da Montana nº 52 foram Sérgio Quintanilha, Douglas Mendonça, Gabriel Marazzi e Eduardo Pincigher, todos jornalistas.
A equipe Chevrolet Endurance foi formada por 35 pessoas da GMB (do CPCA ou Engenharia Experimental) e da Nilma Racing, empresa especializada em preparação de carros e suporte de equipe para competições. Havia até quem já passara pela Fórmula 1: André Luiz Oliveira da Costa, de 20 anos, que frequenta Interlagos desde os dez anos de idade. “Vi o Senna correr aqui”, lembra Costa. Em 2001 ele fez um “free lance” no Grande Prêmio de Fórmula 1, na extinta equipe Arrows, onde operou a placa de pit stop (aquela que sinaliza ao piloto enquanto ele está no box).
Se as posições de largada foram frustrantes, na corrida as Montanas mostraram que o equilíbrio do conjunto fala mais alto. As três picapes alinharam no fim do grid, uma atrás da outra: a 51 em 59º, a 52 em 61º e a 50 em último, 63º lugar. Os competidores estavam divididos em quatro categorias, conforme as características dos veículos: Categoria I – protótipo FIA até 2000 cm³, protótipo nacional acima de 2001 cm³ e carros Grã Turismo até 2000 cm³; Categoria IV – Turismo força livre até 2000 cm³.
Aos sete minutos de domingo, data do 450º aniversário de São Paulo, foi dada a largada. À 1h48, ecoou um grito no box 17: “Estamos em primeiro!” Era Gerson Borini, que trazia a liderança da categoria IV. A partir daí, a boa ideia transformou-se num show. Depois de 3h59 de corrida, a 51 já era 20ª na colocação geral. Dois carros a separavam da Montana 50, que estava em quarto lugar na sua categoria, seguida pela Montana 52.
Ao amanhecer, a 51 já ocupava a 16ª posição na classificação geral, com seis voltas de vantagem sobre o segundo colocado na sua categoria, o Gol numeral 19. “É um carro muito bom. É equilibrado, seguro, freia muito bem, é fácil de guiar e tem ‘muito chão’. É muito bom de curva”, disse o piloto Alvino.
Na volta 139, às 5h45, ocorreu o inesperado: a Montana 50 estava fora da corrida, devido a um vazamento de óleo do motor provocado pela ruptura de um retentor. Às 7h33, foi a vez da 51 chegar rebocada ao box. Havia simplesmente “apagado” na pista. Os mecânicos trocaram a bomba de combustível e o carro voltou ainda no primeiro lugar da categoria, que tinha o Gol 19 em segundo e a Montana 52 em terceiro. Após 9 horas de corrida, a 51 chegou a ocupar o 12º lugar na geral. Às 10h11, mais um golpe: um novo “apagão” fez a 51 ser rebocada novamente. Na volta à prova, perdeu a liderança, ficando quatro voltas atrás do Gol 19. “Tirando” dez segundos por volta em relação ao líder da categoria, a 51 estava apenas uma volta atrás da 19 quando o Dodge Viper GTS-R, com mais de 400 cv, pilotado pelos italianos Stefano Zonca, Angelo Lancellotti e Fabrizio Gollin, recebeu a bandeirada, exatamente 12 horas e um minuto após a largada.
A Chevrolet Montana liderou a categoria IV a maior parte da prova, mas não levou o primeiro lugar. Ainda assim, foi um feito inesquecível. Na sua primeira participação em uma competição, as picapes – quase originais de fábrica e preparadas em apenas 40 dias – garantiram dois lugares no pódio, com a 51 em segundo lugar e a 52 em terceiro. Na classificação geral, chegaram em 14º e 16º respectivamente, à frente de carros mais velozes, como BMW, Omega e da única Ferrari que participou da corrida. Considerando-se que o Gol 19, que chegou à frente das Montanas, é bicampeão no Campeonato Brasileiro de Endurance, o mérito é ainda maior.
Segundo Pedro Manuchakian, esse resultado terá reflexos positivos na comercialização da picape: “Mostramos que a Montana é um veículo de fábrica, normal de produção, que concorre, no desempenho e na resistência, com carros de competição importados e transformados”, comemora.