Neste final de ano estive em contacto com vários colecionadores, especialmente de clássicos da Volkswagen do Brasil, e tive a oportunidade de ver Santanas e também alguns Versailles, filhos da junção da Ford e Volkswagen sob uma holding chamada Autolatina, na qual a Volkswagen do Brasil participava com 51% e a Ford Brasil, com 49%..
Na época estes eram os carros mais luxuosos produzidos no Brasil. O projeto “Oak and Spruce” (carvalho e pinheiro em inglês) visava fazer o melhor uso dos produtos das duas marcas.
Como já comentei por aqui, a Autolatina foi um tempo extremamente criativo para nós do Design, pois além das versões “badge design”, como a do Volkswagen Apollo, onde só podíamos criar peças novas para substituir as com o logo Ford, como rodas e calotas, botão da buzina, materiais de revestimentos, etc, desenvolvemos novos “chapéus”, assim chamados novas carrocerias completas, ao todo pelo que eu me lembre seis novas carrocerias: Santana 2p, Santana 4p, Quantum 4p, Versailles 2p, Versailles 4p, e Royale 2p!
No caso do Santana/ Versailles, o conteúdo do programa era muito interessante e praticamente só fomos obrigados a usar as portas como peças visíveis do antigo Santana, pois todo o resto do “chapéu” (carroceria) eram completamente novas e a maioria das peças, diferentes entre si, inclusive, painel de instrumentos, revestimentos de portas, revestimentos de bancos, etc.
Enfim, um belíssimo projeto com grande conteúdo, feito em condições completamente inusitadas, ja que os produtos foram realizados em conjunto por dois estúdios diversos (VW e Ford), liderado e executado por profissionais brasileiros, e no caso do Santana e Versailles, finalizado em Wolfsburg, na Alemanha, cidade da matriz da Volkswagen.
Na realidade eu estava mais concentrado no projeto Logus e Pointer, que foram desenvolvidos ao mesmo tempo, só que neste caso, eu liderei um grupo de modeladores americanos, nos estúdios da Ghia Design na cidade de Turim, Itália.
O Santana e Versailles, estava sob a liderança do nosso chefe brasileiro, o Sr. Guenter Hix, e com o Gérson Barone um dos lideres de estúdio na época.
Porém participei de várias fases do desenvolvimento do Santana, inclusive preparando as apresentações dos modelos para as aprovações, que foram 100% feitas em Wolfsburg, com mão de obra brasileira.
Neste projeto, a Volkswagen tinha o “mando” no desenvolvimento e também na produção, já que os modelos da Ford, Versalhes e Royale, foram produzidos lado a lado aos Santana e Quantum, na fábrica Anchieta, em São Bernardo do Campo.
Os dois modelos, Santana e Versalhes, foram desenvolvidos em paralelo na Alemanha, já que várias decisões tinham que ser tomadas e executavas ao mesmo tempo para os dois modelos.
O modelo da VW, foi feito dentro do Design Center, na fábrica em Wolfsburg, e o modelo Ford foi feito na Volke, também em Wolfsburg, uma companhia que trabalha como terceiro na área de Design para a Volkswagen da Alemanha.
Na época, a Volke era um grande sobrado, adaptado de última hora para alguns projetos paralelos, fora da fábrica e da rigidez e de olhares de estranhos, quando o Designer-chefe queria um pouco de privacidade para desenvolver alguns projetos sem interferência direta da engenharia ou outros membros do Board da VWAG.
O modelo na realidade foi feito em um “quarto” deste sobrado, espaço pequeno para um projeto de automóveis, mas, era o que tínhamos no momento.
Claro que periodicamente tirávamos o modelo para revisão de design com a diretoria e aí, no salão de apresentações da VWAG tínhamos o espaço necessário para fazer as observações e modificações, olhando o modelo com a distância correta, e corrigindo eventuais problemas não vistos dentro da sala de trabalho.
A distância para observação do modelo é um fatores mais importantes e imprescindível para o bom andamento de um modelo de design escala 1:1.
O Santana original tinha uma arquitetura de design bastante convencional, sendo que um dos elementos mais discutidos e criticados na época de aprovação do produto era justamente a linha inferior da área envidraçada, que chamamos de “belt line”, linha de cintura
Para criar um pouco de dinâmica e controvérsia no modelo, o chefe do exterior design, Sr. Karenbruck, definiu está linha não alinhada com a principal linha de caráter lateral (que vai do farol dianteiro à lanterna traseira).
A linha inferior das janelas tinha uma distância irregular em relação a linha principal de caráter e ainda, do meu ponto de vista (e de muitos outros Designers) sendo a distância menor na parte traseira da linha, quando a lógica pede para que a distância aumente conforme vai para a traseira.
Estas linhas estavam todas nas portas e portanto herdamos as linhas laterais com este “defeito”.
Se tivéssemos a oportunidade de construir novas portas poderíamos ter resolvido este problema, assim como ter criado um tema de design novo em relação ao modelo antigo.
Como as portas eram “carry over”, ou as mesmas do modelo original e também as mesmas para os dois modelos, elas praticamente ditaram o desenho lateral dos carros.
Além disso, nós fizemos versões 2 e 4 portas, o que significava 8 laterais novas (2 Santana, 2 Versailles, 2 Quantum, 2 Royale, uma das peças mais complicadas e caras do carro.
Para-lamas e capô eram peças novas porém a mesma para os dois modelos.
Também, o trabalho da diferenciação entre os interiores, com materiais de revestimento e cores internas peculiares para cada modelo foi bastante importante.
Aí tínhamos grandes discussões, pois o feeling de um automóvel da Ford era muito diferente de um Volkswagen, por definição técnica.
As espumas de bancos, por exemplo, na Ford eram bem mais macias, e na Volkswagen bem mais rígidas.
Os tecidos também mais quentes, de pelos cortados para a Ford e teares mais baixos e ásperos para a VW.
Cores internas diferenciadas, pois o cinza da Ford era mais “quente” e o da Volkswagen mais “frio”
Paleta de cores externas diferenciadas entre marcas, porém os branco, preto, prata, comuns para os dois.
Me lembro muito bem que a área de Design, com os dois grupos vivendo juntos, e meio que apertados, pois o estúdio não tinha sido planejado para tanta gente, mas sempre com muita harmonia e ajuda de ambos os times.
Claro que lutávamos independentemente por muitas questões conceituais e de conteúdo porém sempre com muita classe e respeito.
Os dois grupos aprenderam muito com a experiência, e o resultado final não foi ruim.
Muito pelo contrário, levando em conta o desafio que tínhamos pela frente e o pouquíssimo recurso para os trabalhos, pôde-se dizer que nosso trabalho se tornou um padrão para diferenciação de marcas com um mesmo conteúdo comum.
A Volkswagen acabou adotando práticas administrativas vindas da Ford, que para falar a verdade, era mais organizado administrativa e financeiramente falando.
A Volkswagen sempre com a técnica em primeiro lugar e a Ford, com o financeiro na frente.
Apanhamos bastante com os para-choques dos modelos, porque antes destes modelos, no Santana original, o para-choque ainda não era integrado à carroceria do carro.
O para-choque era uma peça anexa, que era montado “sobre” a carroceria. Portanto não havia problemas com a dilatação dos diferentes materiais. (plástico e metal), porque mesmo que o para-choque crescesse 10 mm com o calor, por não está fixado a nenhuma linha da carroceria não existia problema visual.
Como os para-choques são peças muito compridas, quase 2 metros, a questão da dilatação é muito grande.
O resultado é que mesmo com todas tentativas e cálculos, ainda muito toscos, pois não tínhamos o completo domínio do plástico de engenharia para exterior do carro, os problemas de “matching” entre carroceria e para-choques eram muito grandes.
Nos dias de hoje seria simplesmente inaceitável este tipo de problema visual, mas na época conseguimos dissimular as diferenças e os carros foram vendidos assim mesmo.
Hoje já temos um domínio muito avançado sobre os plásticos de engenharia e conforme sua composição podemos reduzir drasticamente os problemas de dilatação de materiais diferentes.
Outro grande feito do Santana brasileiro é que ele foi o carro da Volkswagen que abriu as portas do maior mercado do mundo para a Volkswagen: a China.
Nossas versões alongadas foram produzidas em alta escala na China e foi um carro de grande sucesso, usado principalmente como carro particular de transporte ou táxi.
Enfim, o projeto Oak and Spruce, assim chamado dentro da Autolatina, foi um dos mais completos e desbravadores projetos executados por uma equipe de profissionais de Design de automóveis brasileiros.
A joint venture entre a Volkswagen e a Ford, sob uma holding de de nome Autolatina durou de 1987 a 1994.
LV