Sempre que vejo uma Royal Enfield me lembro da Kombi. Era um carro antigo que podia ser comprar 0-km, quando ainda era feita no Brasil. O mesmo ocorre com as Royal, marca que produziu sua primeira moto em 1901 na Inglaterra, mesmo ano da americana Indian.
Assim, agora com 118 anos, a marca foi herdada há décadas pela Índia, onde havia uma subsidiária da marca inglesa. E na ultima década, os indianos descobriram que existe espaço para modelos clássicos no mercado internacional e a Royal se reinventou. Criou uma divisão (e uma linha de montagem) na Índia específica para exportação, com melhor nível de acabamento, fazendo motos em condições de passar em testes de emissões de países mais desenvolvidos. São motos com melhor nível de acabamento e qualidade, em relação às vendidas no mercado indiano, onde a Royal lidera (com 90% de participação) vendendo motos baratas, como versões monocilíndricas de 350 cm³ da tradicional Bullet, algumas até carburadas.
Com isso, a Royal é a fábrica com maior crescimento e maior lucratividade no mundo. E que começou a renovar sua linha, iniciando com a Himalayan 410, uma trail monocilíndrica (veja aqui) lançada no Brasil no ano passado. Agora chegam as Twins 650 em duas versões —- Interceptor e Continental GT — motos estradeiras de dois cilindros, uma releitura atualizada de modelos que dominaram as motos inglesas dos anos 1960 e que até invadiram a indústria japonesa nos anos 1980.
Por isso, a melhor referência nacional é certamente a Honda, já que a sensação ao pilotar as Royal Twin lembra muito uma Honda CB400/450 anabolizada. Até o assobio das correntes internas do motor (do comando de válvulas e da árvore balanceadora) remete às CB nacionalizadas desde 1982.
Chamar de Twin as novas Royal não chega a ser exato, já que nos motores twin os dois pistões sobem e descem juntos (caso das CB 400/450), claro que com tempos alternados: enquanto um está comprimindo o outro está em exaustão, por exemplo. No caso dos motores das Royal há um ângulo de 270º entre os moentes de biela que resulta no movimento separado dos pistões, o que caracteriza um simples bicilíndrico e não um twin, de pistões “gêmeos”.
Segundo o engenheiro inglês Mark Wells — que participou do desenvolvimento destas novas motos e estava no Brasil para seu lançamento — foram testados vários tipos de bicilíndricos, desde os Twins puros até outros com ângulo de 180º entre os moentes de biela. Foi escolhido este com 270º por várias razões, desde o ruído “picotado” nos dois escapes (realmente o som do motor é muito agradável) até pela maior facilidade de ajustar uma árvore contra-rotativa (paralela ao virabrequim) para eliminar as vibrações. O motor trabalha liso e mesmo em muitas horas de pilotagem nenhuma vibração atrapalha a sensibilidade das mãos.
Outro motivo foi o maior fornecimento de torque nessa configuração, segundo Mark, e realmente as Twin são motos para se pilotar em “regime de torque”. Lembra outro velho provérbio, hoje desatualizado, de que “o marketing vende potência para o consumidor usar o torque”,
“Pilotos” e “Jaspions de final de semana”, que gostam de pilotar com o motor gritando em busca da potência máxima, vão se atrapalhar com as novas Royal. A potência é baixa (47 cv a 7.250 rpm), mas o bom torque (de 5,3 m·kgf a 5.250 rpm) já mostra 80% do valor máximo a apenas 2.500 rpm.
Ou seja, basta sair e subindo marchas para aos 40 km/h já estar na sexta e última marcha.E o motor vai subindo tranquilo de rotação. Na estrada, raramente ele “pede marcha”, mesmo em subidas íngremes, o que torna a pilotagem muito agradável e tranquila.
Já os 47 cv só apareceram para justificar uma tradição inglesa das bicilíndricas da Triumph dos anos 1970 (quando foi interrompida sua fabricação), de ter velocidade final de 100 milhas por hora. E realmente as Twin 650 atuais parecem chegar a 160 km/h.
Nos 500 quilômetros de test drive (com direito a muita chuva e neblina), a primeira moto avaliada, com apenas 600 km rodados, “encalhava” logo após os 150 km/h. Porém, na volta de Paraty, RJ para São José dos Campos (SP), peguei outra Interceptor já com mais de 12.000 km rodados e ela passava dos 160 km/h de velocímetro, com fôlego para realmente alcançar 160 km/h reais.
Claro que principalmente na Interceptor, com seu guidão alto e pilotagem com costas eretas, a partir de 130 km/h a vida se complica. A pressão do ar no peito do piloto exige muito esforço no guidão, obrigando a se abaixar. Acima dos 150 km/h surge alguma oscilação lateral controlável, provavelmente devido à falta de aerodinâmica do conjunto moto/motociclista.
Já na Continental GT, que difere da Interceptor apenas pelo desenho do tanque, banco em dois níveis e guidão menor e mais baixo, velocidades mais elevadas são mais agradáveis, facilitando apoiar o corpo inclinado no “vento”, com esforço bem menor dos braços. O 0 a 100 km/h é bem coerente com a proposta da moto, feito em 6,5 segundos.
Mas nas duas motos a melhor pilotagem fica para cruzeiros até 120/130 km/h, e as Twins estão bem projetadas para isso.
As suspensões bem convencionais (garfo simples na dianteira com bengalas de 43 mm é bem firme (até batendo um pouco em buracos maiores) e a traseira usa dois amortecedores com reservatórios de gás externos, com cinco regulagens de pressão da mola. Os pneus foram desenvolvidos especialmente pela Pirelli usando o desenho do Phantom em aro 18, tanto na frente como na traseira. Foram escolhidos aros de mesmo diâmetro para as duas rodas para manter o visual clássico. Curiosamente, são pneus sem câmara, usados com câmara devido aos aros com raios. Serão complicados para reposição, já que há pouca oferta de pneus para aro 18.
Agarram bem pista seca, mas não tem tanta aderência em pista molhada, por ter um desenho um pouco antigo. Mas, mesmo na chuva, são pneus que “avisam” antes de desgarrar, basta ficar atento e aliviar a mão. Mesmo assim, as Twin transmitem confiança em curvas rápidas, sendo obedientes e dóceis em mudanças de trajetória, sem balanços indesejáveis quando bastante inclinadas.
Freio muito eficientes, com dois discos ventilados, feitos pela Bybre, subsidiaria indiana da renomada Brembo italiana. ABS nas duas rodas, para quem gosta de apertar o manete de freio como se fosse um salva-vidas do Titanic. Não há controle de tração, até desejável pela descarga de torque em baixa rotação, principalmente em pisos molhadas e marchas baixas.
O motor se destaca no conjunto pela sua suavidade de funcionamento e aparente confiabilidade. A modernidade do projeto fica para as quatro válvulas por cilindro, comando único no cabeçote acionado por corrente e pela injeção eletrônica. Os ingleses/indianos conseguiram estabilizar sua temperatura de funcionamento (necessário para baixa emissão com injeção de combustível) sem usar arrefecimento liquido. Há apenas troca de calor pelas aletas dos cilindros e por um enorme radiador de óleo frontal. Exatamente por isso, o cárter abriga 3,9 litros de óleo sintético.
Há certo excesso de dimensionamento em alguns componentes, parecendo que a Royal usa coeficiente de segurança da engenharia civil. Algo como “o eixo deve ter 10 mm, bota logo 15 mm para garantir”. Isso resultou em um motor que transmite confiança e robustez, mas as motos ficaram pesadas (202 kg na Interceptor e 198 kg na GT). Não se sente este peso todo em rodagem normal ou estrada, mas isto exige adaptação em baixíssima velocidade e manobras de estacionamento. Mas, justificam o slogan de “Made like a gun” (feita como um revolver) da Royal Enfield.
Outro ponto positivo está na simplicidade da mecânica, seguindo o velho lema de engenharia de que “o que não tem, não quebra”. A Royal parece confiar na qualidade do produto, que mereceu novos maquinários na fábrica para maior qualidade, tanto que a garantia é de três anos.
O visual é um colírio para quem já está cheio de ver motos que parecem que saíram de mangás (os quadrinhos de super-herois japoneses). Um simples farol circular (eficiente com seu refletor multifacetado) já me alegra por ver uma “moto com cara de moto”. Principalmente na roadster Interceptor, com seu tanque em forma de gota, o visual é particularmente de bom gosto, mais ainda na versão com tanque cromado. Já a Continental GT traz um tanque mais afilado para justificar sua classificação de Café Racer e combinar com os dois semiguidões baixos, apoiados diretamente nas bengalas.
Claro, há pecadilhos e um pecadão. O pecadão fica para o banco, abaixo da critica. Mesmo na Interceptor com banco mais alto e plano, há apenas cerca de 5 cm de espuma dura. Depois de pilotar apenas uns 10 quilômetros já vem a sensação de estar sentado em uma tábua. Desconforto total que me fez ter inveja de coleguinhas jornalistas mais bundudos. Os bunda-magra como eu se sentiam em uma sessão de tortura. Na GT é pior, já que a pouca espuma é mais baixa devido ao banco em degrau. Desnecessário, já que a altura do banco ao solo é de apenas 80 cm, permitindo uma espuma bem mais generosa e ergonômica. Claro que na grande lista de acessórios de fábrica já consta um “banco conforto”, que certamente será um best seller. E os fabricantes de bancos costumizados agradecem, pois terão muitos novos clientes.
Os pecadilhos ficam para alguns poucos detalhes como um painel pobre, que merecia redesenho. Os números são pequenos, exigindo tirar muita atenção da estrada para boa leitura. E o pequeno painel digital no velocímetro tem apenas marcador de gasolina e hodômetro parcial e total. Merecia pelo menos um relógio, fundamental em viagem. Acho que custaria apenas U$1 a mais. Seria desejável também um indicador de médias de consumo, também muito útil em viagens. Grosso modo, chutaria um consumo de 20/25 km/litro nos 500 quilômetros de test drive, podendo chegar mais perto de 30 km/litro com velocidade mais constante e algum cuidado com economia. Na cidade, deve ficar em torno de 15/18 km/litro devido ao peso elevado.
Outro pecadilho do painel é um pouco crônico nas Royal, já que em uma das motos avaliadas houve infiltração de água nos mostradores, algo que já ocorre em outros modelos da marca indiana. A vedação precisa ser revista.
Também o pedal de freio traseiro merecia modificação, já usa um pino com borracha semelhante ao do câmbio. Apesar de funcional, transmite certa fragilidade que não combina com o restante da moto. Um “pedal com cara de pedal para pisar” seria desejável.
No restante, as Twin convidam para a estrada e a vontade é continuar pilotando mesmo depois de chegar ao destino, não fosse o banco hostil.
A Royal continua otimista vendendo bem em um mercado mundial high tech. Exatamente a busca frenética por inovações e “mágicas eletrônicas parece abrir espaço para a simplicidade. O presidente-executivo global da marca, Vinod Dasari, também veio para o lançamento brasileiro, confessando a intenção de produzir na Zona Franca de Manaus para diminuir custos e aumentar vendas, tendo maior lucratividade em uma operação que vai bem, obrigado.
Começando em 2019 com apenas uma revenda em São Paulo — hoje seis — conseguiram alcançar 1% do mercado de motos de média cilindrada, vendendo cerca de 1.000 unidades. Até março terão 10 revendas no Brasil, em capitais e grandes cidades, mirando vender cinco vezes mais, algo como 5.000 unidades/ano em médio prazo. Um objetivo bastante realista, considerando o grande número de fanboys que a marca conquistou em tão pouco tempo de Brasil.
Curioso foi constatar o grande número de coleguinhas jornalistas que se tornaram proprietários de algum modelo da Royal, mesmo tendo a oportunidade de testar motos de todas as marcas e de ultima geração. Elas alcançam os objetivos pretendidos pelo projetista Mark, de serem fun to drive e conseguirem “tirar um sorriso do piloto”. Pena que este sorriso não se estende as partes baixas do motociclista devido ao banco.
E para vender bem, os preços são novamente uma atração, começando com R$ 24.990 para as Interceptor com pintura lisa e mais simples, e chegando aos R$ 27.990 para as GT com decoração mais sofisticada. A Interceptor com tanque cromado sairá por R$ 26.990, sendo o topo da linha da roadster. Mas, as diferenças são apenas para a decoração, já que mecânica, quadro e suspensão são sempre as mesmos.
Outro fato que merece destaque fica para o centro de design e projetos que os indianos da Royal abriram na Inglaterra, dando emprego aos ex-colonizadores. Claro que é uma jogada de marketing para manter a marca “inglesa”, mas não deixa de ter certo sabor de vingança para os ex-colonizados. Realmente os ingleses merecem a cerveja quente que tomam.
JS
(Atualizada em 30/01/20 às 9:25, correção do número de revendas)
FICHA TÉCNICA ROYAL ENFIELD 650 | ||
Interceptor | Continental GT | |
MOTOR | ||
Tipo | 2 cilindros, 4 tempos, comando de válvulas no cabeçote, 4 válvulas por cilindro, árvore contrarrotativa de balanceamento, arrefecido a ar dinâmico, injeção no duto | |
Diâmetro x curso (mm) | 78 x 67,8 | |
Cilindrada (cm³) | 648 | |
Potência (cv/rpm) | 47/7.250 | |
Torque (m·kgf/rpm) | 5,3/5.250 | |
Taxa de compressão (:1) | 9,5 | |
Sistema de ignição | Ignição eletrônica digital | |
Lubrificação | Forçada, cárter úmido, radiador de óleo | |
Partida do motor | Elétrica | |
SISTEMA ELÉTRICO | ||
Tensão (V) | 12 | |
Bateria (A·h) | 12 | |
TRANSMISSÃO | ||
Embreagem | Multidisco em banho de óleo, deslizante | |
Câmbio | 6 marchas | |
FREIOS | ||
Dianteiro (Ø mm) | Disco flutuante/320 | |
Traseiro (Ø mm) | Disco/240 | |
Controle | ABS de dois canais | |
PNEUS | ||
Dianteiro | 100/90-18 (Pirelli Phantom) | |
Traseiro | 130/70-18 (Pirelli Phantom) | |
CHASSI | ||
Tipo | Berço duplo em aço | |
Suspensão dianteira | Garfo telescópico de Ø 41 mm, curso 110 mm | |
Suspensão traseira | Duas molas-amortecedor, curso 88 mm | |
Comprimento (mm) | 2.122 | |
Largura (mm) | 789 | |
Altura total (mm) | 1.165 | |
Altura do assento (mm) | 804 | |
Distância entre eixos (mm) | 1.400 | |
Distância mínima do solo (mm) | 174 | |
PESO E CAPACIDADE | ||
Peso em ordem de marcha (kg) | 202 | 198 |
Tanque de combustível (L) | 13,7 | |
Equipamento elétrico básico | Velocímetro analógico, conta-giros digital, hodômetro total e parcial, medidor de nível de combustível, farol halógeno | |
Cavalete central | • | – |
DESEMPENHO | ||
Aceleração 0-100 km/h (s) | 6,5 | |
Velocidade máxima (km/h | 147 |