O pavor de qualquer jornalista é a falta de inspiração. Antigamente, quando se usavam máquinas de escrever e folhas com laudas que tinham marcação de linhas (20 por página) e “toques” (as letras e os espaços, eram 70 por linha) era a conhecida síndrome da lauda em branco.
Olhar para o computador e ver aquele espaço todo a ser preenchido, mas não ter ideia de como, era o trauma de qualquer jornalista. Tenho cá para mim que isso acabou quando se extinguiram os pruridos sobre qualidade de texto e informação. Duvido que a maioria dos que perpetram textos por aí tenham essa patologia. Hoje serve escrever qualquer coisa. Se não for verdade, depois podemos, ou não, publicar uma correção. Tenho visto barbaridades em títulos e coisas simplesmente incompreensíveis — nos últimos dias li algo cujo título era “A web está tentando decidir qual com o que a casa de Justin Bieber parece”. Assim, direto do Gúgol Translêitor, sem sequer uma revisãozinha que faça com que algo fizesse o mínimo sentido… “Qual com o que”, o quê? Teve também o “John Taylor, do Duran Duran, revela melhor e alerta: mantenham-se seguro”. Incompreensível e ignorando totalmente a concordância verbal.
Pessoalmente, até hoje nunca tive esse problema. Ao contrário. É respirar fundo, olhar para a tela do computador e já pensar em algo. Gosto de organizar todas as ideias mentalmente primeiro e aí é começar a escrever, tudo de uma vez. Sempre foi algo fácil para mim. Mas agora há uma outra pandemia: a da falta de assunto. O que não está relacionado ao covid-19 parece que nem acontece.
Nesta terça-feira pela primeira vez em sei lá quantos dias soube que houve um acidente de carro na minha cidade. Entendo que com menos gente circulando, menos acidentes há de haver, mas cadê aqueles repórteres que faziam plantão nas marginais Pinheiros e Tietê para “flagrar” excessos de velocidade e acidentes? Estão todos cumprindo isolamento em casa? Não, né?. É que como tudo no Jornalismo, o covid-19 ocupou completamente o espaço do noticiário e, assim como o conto “A roupa nova do imperador”, se ninguém diz ao rei que ele não veste roupa alguma, mas na verdade está nu, é como se ele estivesse vestido.
Tenho diversos assuntos em andamento para escrever — vários deles a pedido de alguns leitores. Mas não consigo informações nem acho mesmo notícias fresquinhas em lugar algum para dar mais consistência aos textos. Só vírus. Nem em sites internacionais, de jornais internacionais, há outros temas. Exceto, é claro, aqueles superimportantes como a nova casa do Justin Bieber (se é que consegui decifrar a matéria). É só láivi de Fulano, láivi de Beltrano… agora todo mundo virou epidemiologisa e expert em pandemias. Sinceramente, não tenho paciência para ver subcelebridade dar palpite sobre isolamento vertical ou horizontal ou sobre qual medicamento é mais indicado — gente que em sua maiorias pingaria colírio no nariz, tamanho o conhecimento médico que tem.
Já pensaram, caros leitores, se por algum motivo entrássemos em outra dimensão paralela relacionada a carros e todo mundo saísse por aí gravando vídeos sobre o tema? Penso algo como a situação atual, de repente, que pega todo mundo desprevenido. Tenho até nome para este fenômeno: carvid-19.
Já imaginaram funkeira discorrer durante cinco minutos sobre a conveniência de se usar molas helicoidais em lugar de molas de lâminas? Dupla sertaneja fazer show na web para arrecadar gasolina, óleo de motor e pneus? Queria ver entrevista coletiva diária do presidente da Anfavea para dar os números, dia a dia, de produção de carros. Ele seria perguntado por jornalistas sobre a conveniência ou não de importar carros da China? Ou sobre qual o melhor tipo de suspensão?
Diariamente seríamos informados sobre a disponibilidade de estoques de amortecedores, bancos, caixas de câmbio e outros itens, em cada fábrica, cidade por cidade, marca por marca, bem como sobre a previsão de importação de itens como retrovisores ou barras de direção. Aliás, como é que nunca soubemos disso? Onde é que nós todos estávamos quando estas peças eram produzidas e estocadas por aí? E sim, há muita ironia neste comentário.
E, claro, haveria questionamentos da imprensa sobre o porquê de algumas autoridades usarem um determinado modelo de carro e não outro. Imaginem, caros leitores, a polêmica sobre permitir ou não o aumento de álcool na gasolina? Não, por favor, nem de brincadeira, Norinha. Apaga antes que alguém ache essa uma boa idéia… Mas nestes tempos de perguntas absurdas, vale tudo. Poucas coisas ainda me surpreendem e a capacidade humana de ser intelectualmente limitado não é uma delas.
Os canais de televisão dedicariam todo seu tempo a discorrer sobre carros. Já imagino algumas pessoas com bons conhecimentos técnicos dando entrevista – sim, os primeiros nomes que me ocorrem são todos daqui do AE. Pensei no Bob Sharp dando entrevistas remotas com a clássica e óbvia biblioteca do fundo. Aliás, diverti-me vendo um frasco de descongestionante nasal em gotas quando um ex-presidente do Banco Central deu entrevista. No caso do Bob, imagino que além de livros haveria também revistas de automobilismo e talvez algumas miniaturas ou fotos bacanas dividindo a estante.
O Alexander Gromow poderia dar seus depoimentos sobre a conveniência de se resgatar o Fusca em tempos sombrios e incertos. Afinal, a mecânica do carro é valente e aguentaria qualquer dimensão paralela em que vivêssemos. Ao fundo, imagino além de muito material de consulta, fotos do “Rosinha”, o valente Fusca 1955 modelo 1956, que merece toda o carinho do nosso colega.
O Wagner Gonzalez falaria diante de uma estante cheia de fotos de pilotos famosos, revistas de automobilismo e, claro, livros sobre vinho e culinária.
O Fernando Calmon, sempre didático, deve ter uma estante recheada de revistas e, suspeito, manuais de carros. Acho até que algumas fora de ordem – mas poucas. Aliás, cadê o Inmetro e a ABNT para regulamentar a impressão das lombadas de livros quando mais precisamos disso? De quem foi a ideia de imprimir os nomes ora para um lado, ora para o outro?.Aí, quando assistimos a uma entrevista somos obrigados a ficar entortando a cabeça para um lado e para o outro como pardais ensandecidos para tentar ler os nomes… affe! Impressão de nomes de livros é um total despautério neste país. Onde iremos parar?
Aliás, para quem não tem uma estante bacana para servir de pano de fundo existe, literalmente, uma de pano de fundo. Encontrei uma estante de tecido Juro!.Seus problemas acabaram. Ligue já!
Muitas seriam as fontes confiáveis que poderiam ser ouvidas nessas horas. Há diversos outros nomes de colegas deste espaço, mas não sei quais poderiam ser os entrevistados na linha cavaleiros do apocalipse. Mas certamente meus colegas jornalistas têm uma longa lista deles entre seus contatos. Ah, se têm!
Já prevejo mapamúndis interativos sobre onde está cada unidade da indústria automobilística e cada centro de distribuição no mundo. A cada dia mudariam de tons que seriam atualizadas em tempo real (foto de abertura) e pderíamos acompanhar, e surtar, cada vez que um depósito tivesse menos do que 3.487.542 baterias veiculares. Ou 987.523 volantes.
Imagino também os gráficos de curvas sobre produção de carros no Brasil, na Itália, na Espanha e nos Estados Unidos. Dia a dia, em cores diferentes e períodos definidos, por exemplo, a partir do carro número 1 milhão. E, claro, teorias sobre como achatar, elevar ou manter planas essas curvas.
Alguns sites fariam as listas de filmes recomendados para ver nestes momentos. Pessoalmente já fiz aqui uma lista mais ampla, mas certamente assistiria a 24 Horas de Le Mans, Rush, Bullitt, Mad Max (o primeiro, tá?), Encurralado, Operação França, Drive. Para as crianças a série Carros e Se meu Fusca falasse. Para os momentos mais introspectivos, uma lista de livros. Não poderia faltar Christine (de Stephen King) e biografias como a de Enzo Ferrari. Músicas? Road to Hell (Cris Rea), quase todas de Jamiroquai… tem lista para tudo e eu mesma já abordei esses temas aqui, falando de músicas, .
Viram, caros leitores? É fácil fazer uma pauta, uma agenda de notícias. Basta mudar o tema que todo o resto já está pronto e é, basicamente, igual.
Mudando de assunto: Hoje também vou de foto para este espaço. Em tempos de resignação e “polianismo” gostei da ideia, embora não tenha gostado do amassado…
NG