Caros leitores, continuo confinada em casa. Nestas duas semanas, apenas fui até a porta da cozinha entregar o lixo ao faxineiro do prédio uma única vez — de fato, em casa produzimos pouquíssimos resíduos e mesmo assim o maior saco dos dois que tinha era de recicláveis. Faço compostagem há muitos anos, separo o lixo reciclável e evito ao máximo, de uma forma geral, criar ainda mais lixo por aí. Especialmente levando em consideração todas as porcarias que vejo nas mídias (anti) sociais todo dia. São tipos diferentes, mas lixos os dois.
Para a minha próxima interação com algum ser humano que não seja meu marido capricharei um pouco mais. Estou até começando a pensar em que roupa irei vestir para momento tão importante. Algo que substitua com alguma elegância a camiseta promocional e a calça de ginástica que vestia da última vez. Afinal, é algo raríssimo nestes dias. Brincadeira, é claro, já que tenho passado bastante bem a quarentena. Não tenho traumas com isso, apenas me preocupo com as pessoas que terão problemas financeiros nos próximos meses – basicamente, todos nós. Uns primeiro, outros depois. Tenho algumas teorias sobre quais deveriam ser os atuais e mesmo os próximos passos, mas não vem ao caso aqui. Afinal, vou tentar falar do covid-19 (foto de abertura) de forma marginal já que temos tantas informações que nos bombardeiam o tempo todo. Aqui vamos falar de autoentusiasmo.
Como disse aqui semana passada, sinto saudade do meu carro, que está lá embaixo, na garagem. Esqueci de pegar meu pen drive de músicas que, por uma estranha coincidência, ficou lá quando o normal é que ele esteja comigo, caso saia com o carro do meu marido. Paciência, a maioria das músicas tenho copiadas no computador e ouvi-las-ei (essa foi linda!, deixou minhas ênclises simplisinhas de quase toda semana no chinelo) em algum momento.
Acho até quele nem é do carro propriamente dito que sinto falta, mas da liberdade que ele me dá. Ficar tanto tempo sem pegar estrada é algo novo para mim.
Mas o que me faz lembrar mesmo que estou num isolamento/quarentena vertical, horizontal, diagonal o que raios for que estamos vivendo é olhar pela janela e ver as ruas quase vazia. E digo quase, pois moro num lugar onde tenho visto cada vez mais carros circulando ainda que relativamente poucos pedestres. Sinceramente, o pior é o lindo silêncio ser quebrado por algum imbecil que passa com o som a todo volume ou o escapamento da moto aberto. E sim, já ouvi um cretino passar de motinha buzinando como se estivesse em pleno trânsito num dia de semana quando tinha não mais do que três carros nos 100 metros que alcancei a ver — e um deles na pista contrária. De onde deduzo que motoqueiro besta buzina por puro hábito — nem é mais questão de “segurança” como alegam muitos. É ignorância, mesmo.
Tive um chefe num dos jornais em que trabalhei que dizia que motorista de carro que anda ouvindo música no máximo do volume, daquele jeito que é ouvido a quarteirões de distância, é corno que dorme em cama quente e não sabe por quê. Segundo a teoria dele, o sujeito já dá bandeira que está chegando em casa e permite que o amante da mulher saia antes dele chegar. Ele permeava o comentário com algumas palavras que eu tentei traduzir para uma linguagem mais, digamos, fina. Mas a essência da ideia era essa. E concordo com ele.
Em alguns momentos penso que estamos numa dimensão paralela ou num conto de Gabriel García Márquez ou Jorge Luis Borges. Ou Saramago. E, quem sabe, amanhã quando eu acordar vai estar tudo como era antes. Só que não. Não sou daquelas pessoas que acham que a humanidade vai aprender algo com tudo isto. Sou cética neste quesito especificamente.
No início do isolamento cheguei a pensar que as pessoas aproveitariam o fato de estar mais em casa, em família, para cozinhar juntos, fazer tarefas de casa, alguns até descobririam os mistérios da lavarroupas, essa desconhecida, ou mesmo todos juntos aproveitariam para ver filmes que há tempos estavam na lista de coisas a fazer. Sim, tive esse tipo de ingenuidade. Norinha, sua tola. Mas durou pouco.
O que percebo, no entanto, é que ninguém que já não ia foi para o fogão. No primeiro dia vi conhecidos meus correrem para o telefone para pedir até mesmo sanduíches. Ninguém aproveitou o tempo livre para baixar uma receita daquelas que não tem erro, tipo as da Rita Lobo, facílimas, com poucos ingredientes e mínima sujeira. Outros que, sem empregada todos os dias (por conta do isolamento social do “fique em casa” geral) chamaram Ubers para levar roupa suja e ir buscá-la já passada na casa da empregada. Uma versão sui generis do romiófici. Ninguém pensou em descobrir onde fica a tábua de passar na própria casa.
E em vez de usar o tempo que não se perde mais no trânsito vendo filmes em família ou lendo livros, foram encher de bobagens as redes sociais. No caso do WhatsApp, então… tenho desligado o aplicativo por várias horas todos os dias e até saí de alguns grupos. Eu reformularia aquela frase que diz que mente desocupada é a oficina do diabo. É a oficina das besteiras nos grupos de WhatsApp. Pelo amor de Deus! E na hora que ligo o aplicativo, tem lá 250-300 mensagens. Às vezes mais. E quase nenhuma presta para alguma coisa.
Por falar em reformular frases, olhar pela janela me fez lembrar a frase do Joãzinho Trinta. “O povo gosta de luxo. Quem gosta de miséria é intelectual”. Em tempos de total, semi, vertical ou horizontal confinamento, quem depende de transporte público na periferia continua ansiando por um carro, uma moto pelo menos. Claro que transporte individual (carro ou moto, especificamente) dá uma liberdade que o ônibus não proporcionará nunca. Por isso que mesmo em cidades com excelente transporte público como Paris, as pessoas continuam comprando cada vez mais carros, apesar das altas taxações e das dificuldades que alguns governantes criam.
Sim, quando digo isso e mostro os números, como fiz aqui faz algum tempo sempre aparece alguém que diz “ah, mas meu sobrinho não tem carro nem quer ter”. OK, ainda que seja verdade são sempre casos isolados que têm pouco respaldo nos números. E gostaria de falar com o tal sobrinho e perguntar se ele tivesse acesso a um carro sempre à disposição se ele continuaria preferindo pegar o metrô apinhado de gente ou esperar para entrar num ônibus e ir em pé. Muitas vezes essas pessoas não tem carro no próprio nome mas usam com frequência o dos pais ou irmãos. Ou chamam um Uber que é, sim, transporte privado e individual. Não vejo pessoal voltar da balada de busão, não.
No caso da periferia, então, é ainda mais desejado o transporte individual. Provavelmente porque eles, sim, andem todos os dias em ônibus e metrôs cheios e prefiram juntar dinheiro para comprar, pelo menos, uma moto. É muito romântico andar de metrô em Nova York fora do horário de pico entre o Central Park e a Times Square para passear. Nem tanto assim no final do dia para chegar até o Queens ou mesmo Staten Island. E nem falo de chegar de transporte coletivo até New Jersey…
Não, não acredito que quando tudo isto terminar a humanidade mude muito. Mesmo quando descobrirem vacinas e curas para este vírus. E digo isso porque se não mudam durante a pandemia, logo, não vejo porque mudariam depois. Ao contrário, é irônico ver gente que defende o isolamento total pedir entrega disto e daquilo várias vezes por semana. Entregues como? De moto ou carro, geralmente por aquelas pessoas que trabalham por aplicativo. Os mesmos que criticaram a entrada desses sistemas por “precarizarem o trabalho” são os que agora se utilizam deles. Não conheço ninguém que tenha encomendado uma pizza e mandado um táxi buscá-la. Meio incoerente, não?
Por isso não acredito no fim ou mesmo na redução do uso do transporte individual. Nem mesmo depois de ver tantos carros e motos parados nas garagens por algum tempo. Provavelmente muitos pensarão o contrário. “Se eu tivesse um carro, poderia ir ao supermercado sem medo de contágio no ônibus ou num carro de estranhos”.
Mas sei lá como serão as próximas semanas. Pode ser que esteja enganada — e espero está-lo quanto a não tirarmos nenhuma lição positiva de tudo isto. Se não, vocês poderão achar que alucinei no confinamento.
Mudando de assunto: não dá para evitar o covid-19, mas podemos rir um pouco.
NG