Caro leitor ou leitora,
Ainda sob o choque do falecimento de José Luiz Vieira ontem, lembrei-me de que quando o AE completou o primeiro ano de vida 24/08/2009), o convidamos para escrever sobre autoentusiasmo e ele prontamente nos atendeu. Abaixo está o que publicamos naquele dia.
A foto de abertura registra outro momento importante com o JLV, quando ele nos convidou para conhecermos a magnífica coleção de seu amigo Og Pozzoli. Lá fomos eu, o Bob e o Juvenal Jorge. Um dia inesquecível.
Aproveite o conhecimento do JLV!
Paulo Keller
Editor-geral
O ENTUSIASMO
Por José Luiz Vieira
Quando eu tinha meus três, quatro anos de idade, costumava sentar na cama girando uma bandeja como se fosse um volante de direção e imitando barulhos de ônibus, fazendo de conta que estava parando para receber passageiros, minha mãe entre eles. Dona Eurydice tinha de ficar sentada atrás de mim por tempos absurdamente longos. Aos oito anos, deixava meu pai na dúvida se eu estava sendo sincero ou não, ao dizer qual era a marca e o ano dos carros que passavam em frente de casa, na Vila Clementino.
Não tínhamos carro naquela época, meu pai não sabia dirigir e não se interessava por automóveis, mas um dia meu tio Mário, que tinha um Buick 1940 a gasogênio e um Lincoln Zephyr V-12 a gasolina (racionadíssima) que saía uma vez por mês só para não ficar permanentemente parado, garantiu a meu pai que eu ia ser motorista.
Como esquecer aquele Zephyr verde, de estofamento caramelo e imenso rádio a válvulas no centro do painel? Como esquecer a primeira vez que o dirigi, com imensos trancos de embreagem na primeira marcha? Como esquecer depois dele um Chevrolet 1941 de câmbio a vácuo, um Ford 1936 conversível, um Mercury 1942 sem para-choques cromados, um Opel Käpitan 1937 e finalmente um Buick 1941 cupê Super de dupla carburação?
Com o fim da guerra e a volta da gasolina, dirigir com um certo medo um Ford Prefect, alto e estreitíssimo, que parecia que ia tombar em qualquer curva um pouco mais rápida, um Chevrolet 1946 da repartição em que meu pai trabalhava e que seu motorista saia comigo para ajudar a me treinar ao volante, depois um Mercury 1948 e um Buick Super do mesmo ano. Finalmente, um Buick Roadmaster Dynaflow, com que rodei bem mais de 20 mil quilômetros.
Daí para diante, em muitos países, tive a imensa sorte de não parar mais de dirigir carros velhos (às vezes são ótimos), antigos (museus, coleções), usados e novos, alguns deles mulas de engenharia que somente seriam lançados bem mais tarde (e que aí, sim, seriam ótimos). Sem dúvida, a vida tem sido deliciosa — em boa parte por causa deles.
Entusiasmo, como tantas outras faces da psique de cada um, não se explica — sente-se. Ter entusiasmo pelo automóvel não é nada estranho — acontece com quase qualquer jovem, muito antes mesmo dele ter idade para dirigir. Manter esse entusiasmo, pela vida afora, pelo carro ou por qualquer outra coisa, já não é assim tão comum, mas quem o faz leva uma enorme vantagem sobre aqueles que, ao se tornarem maiores de idade, maduros, interessados apenas em ‘coisas mais sérias’, perdem esta beleza de muleta psicológica.
JLV