Hoje, domingo 24 de maio de 2020, seria a data da realização da 104ª edição da 500 Milhas de Indianápolis, uma das corridas de automóveis mais antigas e icônicas do planeta — e longas, 804,5 quilômetros. Contudo, devido à pandemia global do Covid-19, assim como outros vários eventos esportivos e automobilísticos, a principal corrida do calendário americano foi adiada, com a nova data prevista para o dia 23 de agosto p.v. Pela primeira vez na história, Indy 500 não será realizada no último fim de semana de maio.
Assim sendo, a data de hoje me pareceu oportuna para compartilhar algumas histórias autoentusiastas vividas naquela cidade, conhecida como a Capital Mundial do Automobilismo. No entanto, para isso é necessário voltar um pouco no tempo.
Posso arriscar que muitos leitores, assim como eu, nascidos entre os anos 1960 e 1970, passaram boa parte da infância e adolescência garimpando informações sobre as corridas internacionais em jornais e revistas. Naquela época era relativamente difícil encontrar informações e registros sobre as diferentes categorias do automobilismo. Cada parágrafo das poucas reportagens que chegavam às nossas mãos eram supervalorizadas. As imagens então, nem se fala! Eram preciosidades que alimentavam a nossa imaginação e nos faziam sonhar com o romantismo das corridas e o estilo de vida dos pilotos.
Abre esta matéria o carro vencedor da primeira 500 Milhas de Indianápolis, em 30 de maio de 1911, o Marmon Wasp piiotado por Ray Harroun, que cruzou a linha de chegada após 6 horas e 42 minutos, média de 120,015 km/h. Era a primeira vez na história do automóvel vez que um carro tinha espelho retrovisor, solução que Harroun encontrou ao decidir ir no carro sozinho e dispensar a ajuda do mecânico — que todos levavam — para o observar o trânsito na pista à retaguarda. O Marmon Wasp 1911 tinha motor de seis cilindros em linha de 7,3 litros, 111 cv a 2.200 rpm e pesava 1.271 kg.
Por outro lado, filmes como “Grand Prix”, de John Frankenheimer (1966), “500 Milhas”, de James Goldstone (1969), ou “24 Horas de Le Mans”, de John Sturges e Lee H. Katzin (1971), nos imergiam nas pistas e nos levavam aos santuários da velocidade. Era quase possível sentir o cheiro de combustível e dos pneus superaquecidos. Sem dúvida, essas vivências contribuíram para fomentar a nossa paixão pelo automobilismo e, principalmente, pelas míticas corridas que constituem a chamada “Tríplice Coroa do Automobilismo”. Desta forma, Mônaco, Le Mans e Indianápolis, sem dúvida, significam para nós autoentusisatas muito além de meras cidades. São na verdade “territórios sagrados”! A terra santa, onde nós, os mortais e apaixonados pela velocidade e esportes a motor desejamos visitar ao menos uma vez na vida.
Infelizmente, ainda não consegui conhecer Mônaco e Le Mans, mas, por outro lado, a cidade de Indianápolis e o lendário complexo do Indianapolis Motor Speedway (IMS) se tornaram mais familiares para mim do que um dia eu poderia imaginar.
Primeira vez
A minha primeira viagem aos Estados Unidos foi em 2004, aos 35 anos de idade. O motivo dessa viagem foi apresentar um trabalho de pesquisa que eu havia desenvolvido na Universidade de Sorocaba. Aquela também foi a minha primeira oportunidade de me apresentar em um Congresso Internacional. Lembro-me que ainda em 2003, quando estava no laboratório da Universidade decidindo com outro professor e amigo sobre a possibilidade de submeter o nosso estudo para apresentação em um evento internacional, e me veio a ideia do Annual Meeting of American College of Sports Medicine (ACSM).
Acessamos o website do ACSM e descobrimos que a edição de 2004 seria em Indianápolis! De fato, embora o IMS seja sem dúvida a principal atração da capital do estado de Indiana, Indianápolis também é uma cidade privilegiada pela ótima infraestrutura para realização de eventos em geral, dotada de um excelente Centro de Convenções, vasta rede hoteleira e várias atrações turísticas. É comum durante o ano a realização, na cidade, de vários congressos internacionais das mais diversas áreas conhecimento, incluindo as áreas Medicina Esportiva, Ciências do Esporte e até mesmo de Esportes a Motor.
Inclusive, a sede do American College of Sports Medicine (ACSM), uma das mais importantes organizações do mundo no âmbito Medicina do Esporte, situa-se no White River State Park, um dos cartões postais de Indianápolis.
Porém, embora a sede do ACSM seja em Indianápolis, não necessariamente em todos os anos o Congresso é realizado lá, pois existe um revezamento entre algumas capitais dos EUA para sediar o evento. Portanto, naquele momento o Universo parecia conspirar ao meu favor: não poderia ser mais apropriado conhecer a “Capital Mundial do Automobilismo” em um evento do ACSM, considerado a referência absoluta da minha área profissional.
Foi marcante e incrível conhecer a cidade que respira automobilismo! Já no aeroporto, que me pareceu relativamente pequeno e aconchegante (a visita foi anterior à grande reforma de 2007), sentia-se o clima de velocidade nas lojas decoradas com vários motivos da Indy 500 e até com réplicas de carros de Fórmula Indy, ruas enfeitadas com bandeiras da Indy 500 e toalhas com estampas imitando bandeira quadriculada adornavam as mesas do café da manhã do hotel onde eu estava hospedado.
Ainda nas primeiras horas naquela cidade passei por uma experiência autoentusiasta inusitada: a de ser passageiro de uma limusine! Como o hotel em que eu me hospedaria era na região do aeroporto, por apenas 5 dólares foi possível dividir a “viagem” com mais sete passageiros e chegar ao hotel em grande estilo.
Foram poucos, mas muito intensos, os dias que passei em Indianápolis naquele ano. Infelizmente não consegui sincronizar a data daquela viagem com a 500 Milhas, realizada na semana anterior. Contudo, consegui visitar o complexo do Indianapolis Motor Speedway.
Como era minha primeira viagem internacional, fiquei com receio de alugar um carro e utilizei o transporte público para me locomover. Foi assim que conheci um simpático motorista de ônibus chamado Marvin, um típico cidadão americano, apaixonado por corridas de carros e fã dos pilotos brasileiros como Émerson Fittipaldi, Gil de Ferran, Hélio Castroneves e Tony Kanaan, entre outros grandes talentos. E ele me passou todas as dicas de como chegar ao IMS e me contou algo que eu não tinha ideia: era possível passear pelo Oval num micro-ônibus! Aquilo me deixou muito empolgado.
Ao chegar ao IMS perdi o fôlego, eu não imaginava a grandeza daquele lugar. A imponente fonte logo na entrada do Museu do autódromo é algo arrebatador, bem como as esculturas dos carros expostas no belo jardim. O museu me reservou grandes emoções. Por apenas 10 dólares foi possível ver todos os carros vencedores da lendária corrida, desde o primeiro vencedor de 1911, que fizeram história no circuito.
Além dos monopostos de F-Indy ainda estavam expostos muito outros carros de corrida de várias categorias, inclusive alguns pace cars e no Hall da Fama os troféus, quadros e placas. Curiosamente o único exemplar da Fórmula 1 exposto no Museu era o Stewart Grand Prix
Também foi possível assistir no local um documentário sobre a história do circuito, comprar lembranças bem legais na loja oficial e sentar em uma réplica de F-Indy para uma foto histórica.
Porém, o tour pela pista foi o momento mais emocionante. Sentir-se dentro do Oval (na verdade um retângulo) é incrível. Também foi interessante observar os trabalhos de preparação dos boxes para o GP de F-1 dos Estados Unidos que seria realizado naqueles próximos dias.
Após o passeio, pela pista, permaneci por aproximadamente uma hora no circuito vazio, estava tudo em silêncio. Fiquei só, observando as arquibancadas e as curvas daquele autódromo histórico, sentido toda a energia daquele solo sagrado.
Retornos
Retornei à Capital do Automobilismo em 2008 para mais uma apresentação no ACSM. Desta vez permaneci por um tempo maior em Indianápolis, e como já estava mais confiante com o idioma, aluguei um Hyundai Sonata 2,4 e com ele pude conhecer um pouco melhor a cidade. De fato, além de curtir o IMS novamente, foi possível conhecer o belo zoológico, explorar melhor a região central como o imponente Monument Circle e outros memoriais, a Biblioteca Central, o Indiana State Museum Center, entre outros lugares legais.
Embora as datas dos Congressos do ACSM sempre fossem estrategicamente agendadas próximas à 500 Milhas de Indianápolis, infelizmente, por compromissos na Universidade onde eu trabalhava, assim como em 2004 não foi possível viajar uma semana antes para assistir a uma das três maiores corridas do planeta.
Porém, em 2013, a história foi diferente e não deixei escapar a oportunidade! Eu e a família conseguimos nos organizar para embarcar para os EUA uma semana antes do Congresso do ACSM, e mesmo com nossa filha, na época, com apenas um ano de idade, não nos intimidamos e compramos os ingressos para assistir a 500 Milhas de Indianápolis. Não poderia mais perder a oportunidade de assistir aquela corrida por nada.
Além de toda a emoção da corrida em si, é admirável a competência de organização dos americanos no sentido de proporcionar uma experiência única na vida de quem vai assistir a 500 Milhas. A começar pela compra dos ingressos, em que optamos pelo “pacote família”, ou seja, por apenas US$100 estavam incluídos quatro ingressos (dois adultos e duas crianças), quatro lanches, quatro refrigerantes e o estacionamento.
Outro destaque foi em relação ao deslocamento até oautódromo, que apesar do trânsito pesado as sinalizações eram perfeitas e fluxo dos carros era ótimo considerando o tamanho do evento e quantidade de carros nas ruas. Ao chegar ao IMS foi impressionante o número de pessoas presentes e a novamente exemplar organização para os deslocamentos e acessos ao autódromo, bem como o respeito ao público, principalmente as mulheres e crianças. Uma vez nas arquibancadas, todas as atrações que antecedem a largada foram inesquecíveis e empolgantes. Também impressionou ouvir a multidão gritando “USA!” enquanto se dirigia às arquibancadas.Realmente o espírito nacionalista é marcante entre os americanos e provavelmente a excitação para assistir à corrida exacerbava os ânimos dos apaixonados por seus país.
Nossos assentos estavam localizados no Setor da curva 3 e na primeira volta, quando os carros realmente passaram em velocidade plena na nossa frente, tivemos a impressão que tudo iria desmoronar!
A prova estava muito disputada com três brasileiros no grid: Hélio Castroneves, Tony Kanaan e Bia Figueiredo. Era interessante ver tantas crianças, jovens, homens, mulheres, pessoas com deficiências e idosos vibrando durante a corrida. Realmente eles amam a Fórmula Indy e a cultura do automobilismo é notável. O ronco dos motores e o cheiro de combustível não incomodaram a minha pequena, que estava curtindo tranquilamente a prova e até dormiu em alguns momentos de tão à vontade que estava.
Destaque, também, para a acessibilidade e quantidade de locais para alimentação, áreas de conveniência e banheiros, estes inclusive com trocadores para as crianças. Sensacionais, os telões e o sistema de áudio para a narração que nos permitiram acompanhar detalhadamente toda a corrida.
Mas o melhor foi a final eletrizante com a disputa do Tony Kanaan (KV Rancing Technology) e Carlos Muñoz (Andretti Autosport), com o brasileiro levando a melhor! Parecia um sonho, assistir a lendária 500 Milhas de Indianápolis e comemorar a vitória de um piloto brasileiro nas arquibancadas daquele circuito histórico! Nunca esquecerei aquele dia.
Alguns dias depois voltamos para visitar novamente o complexo do IMS e mais uma vez visitar o Museu, comprar na loja oficial algumas recordações e evidentemente fazer pela terceira vez um tour pela pista.
Ao final da visita, fomos registrar o momento único com algumas fotos, porém a grandiosa fonte que fica bem em frente à entrada do Museu já estava desligada, pois já passava de 17 horas, horário de encerramento das atividades do IMS. Mesmo sem os jatos de água, quando estávamos registrando aquele momento em frente ao principal cartão postal do Museu, um funcionário se aproximou de nós e perguntou de onde éramos. A princípio pensei que ele iria pedir para irmos embora por conta do horário. Mas num ato de sensibilidade ímpar o educado rapaz pediu pelo rádio pata os funcionários ligarem os jatos de água da fonte. E ainda se prontificou para tirar uma foto da minha família com nossa câmera fotográfica.
Realmente, eu não sabia como agradecer aquele rapaz pela gentileza. Ao final nos despedimos e ele ainda nos brindou com uma ótima frase: ”Desejamos que todos os nossos visitantes levem uma linda imagem do IMS e dos EUA.” Aquilo me deixou feliz e triste. Feliz por tanta consideração que recebemos de um estranho e triste por imaginar que uma situação como aquela que acabáramos de passar nunca aconteceria em nosso país.
Aproveitamos os dias que nos restaram para conhecer mais lugares interessantes em Indianápolis como o Victory Field (estádio de beisebol), o monumental Lucas Oil Stadium (a casa do Indianapolis Colts, equipe de futebol americano da cidade), The Children’s Museum Indianapolis (imperdível para levar as crianças) e fazer algumas compras no Outlet Premium em Edinburgh (apenas 40 minutos distante de Indianápolis). O Impala LTZ V-6 que alugamos nessa viagem em 2013 também nos deixou saudade.
Mais uma vez
E finalmente, após cinco anos, em 2018 voltamos novamente a Indianápolis, uma cidade que na minha infância parecia tão inatingível e agora era tão familiar. Novamente o objetivo foi participar de um congresso na área das Ciências do Esporte e Medicina Esportiva. Desta vez o evento foi no mês de julho e a 500 Milhas já havia se realizado em maio. No entanto, mesmo assim, fomos visitar novamente o IMS e sentir aquela atmosfera mágica e que sempre oferece algo novo para conhecer.
Aproveitei também essa viagem a Indianápolis para conhecer a Pit Fit Training um Centro de Treinamento físico especializado em preparação de pilotos de automobilismo. Naquela visita, Indianapolis me reservou ainda mais uma surpresa, que foi encontrar Tony Kanaan, que estava treinando na academia Pit Fit Training no momento da minha visita. Inacreditável ter conhecido uma das lendas do automobilismo. Ele ficou surpreso quando lhe contei que há cinco anos eu havia assistido das arquibancadas do IMS seu triunfo na 500 Milhas
Finalizo essa história na expectativa de que no próximo dia 23 de agosto, daqui a três meses, seja o da oitava vitória brasileira no lendário autódromo! Vamos aguardar!
Marcelo Conte
Jundiaí – SP