Bom, caros leitores, sou obrigada a continuar na sessão nostalgia da tevê. Agora peço encarecidamente: “Me tira o tubo!”.
Depois de passar por Vale a pena ver de novo e Eu só queria entender, agora é outro personagem de bem antigamente que me vem à lembrança — aquele que o Jô Soares interpretava no humorístico Viva o Gordo. Era um militar que havia ficado alguns anos inconsciente e acordava num hospital, ligado a alguns aparelhos, e conversava com algumas visitas que lhe contavam o que acontecia nos tempos (então) atuais. Quando ele não entendia as mudanças pelas quais o País havia passado, pedia: me tira o tubo! Algo assim como “deste jeito não vale a pena viver”. Ressalvo que ele era um general linha dura e eu não sou nada disso, mas o princípio continua o mesmo e estou começando a ficar igual: do jeito como as coisas estão, prefiro algum estado de inconsciência do que a estúpida realidade.
Depois de ver um estapafúrdio rodízio implementado na cidade de São Paulo durante uma semana — que, para surpresa de absolutamente ninguém, não funcionou — agora teremos feriados de junho, julho e novembro em pleno maio. Detalhe: apenas na capital e em algumas cidades do interior mas, claro, não todas porque senão ficaria fácil, né?
A ideia, novamente, é evitar o deslocamento de pessoas nestes dias de pandemia. Vejam bem: para evitar que as pessoas saiam de casa inventam um feriado de seis (6!) dias. Alguém acha que vai dar certo?
Como diria o filósofo futebolístico Garrincha, já combinaram com os russos? Parênteses: adoro essa história. Diz a lenda que antes de um jogo da seleção brasileira, lá por 1958, o técnico Vicente Feola teria reunido a equipe e mostrado numa lousa como seria o esquema do jogo contra a então União Soviética. No meio de campo, Nilson Santos, Zito e Didi trocariam passes curtos para atrair a atenção dos russos. Vavá puxaria a marcação da defesa deles caindo para o lado esquerdo do campo. Depois da troca de passes no meio do campo, a bola seria lançada por Nilton Santos nas costas do marcador de Garrincha. Garrincha venceria seu marcador na corrida e com a bola dominada iria até à área do adversário, sempre pela direita, e ao chegar à linha de fundo cruzaria a bola na direção da marca de pênalti; Mazzola viria de frente em grande velocidade já sabendo onde a bola seria lançada faria o gol. Garrincha então teria perguntado: Tá legal, seu Feola… mas o senhor já combinou tudo isso com os russos?.
É bem isso. Acredito que as autoridades estejam perdidas com este vírus e ficam tentando uma coisa e outra… vá que uma dá certo? Pessoalmente, preferiria que brincassem de administrar uma cidade com jogos tipo Sim City em vez de com uma metrópole de verdade. Ou até usassem o Banco Imobiliário. Poderiam comprar, vender, alugar ou, no limite, explodir uma cidade inteira sem que os habitantes de verdade, ou seja, todos nós, fôssemos afetados negativamente pelas medidas pândegas que são tomadas.
Claro que não vou minimizar a importância do vírus — tanto é que independentemente do que dizem uns e outros ainda estou trancadinha em casa. E vou continuar, mas como fazem pessoas que trabalham em empresas com escritórios em outros Estados? Ou mesmo em outras cidades? Alguém já pensou que o fato de ser “feriado” numa cidade (e misturaram os municipais com os nacionais) não fará com que outra cidade pare de trabalhar? Sem falar que uma empresa precisa se planejar e, para isso, precisa de tempo. Como manter depósitos abertos num feriado? Dependendo da atividade é “só” (modo irônico ativado) pagar hora extra, usar banco de horas e detonar com o planejamento individual dos seus funcionários, que podem ter marcado curso online ou apenas pensavam tirar o dia para descansar ou fazer algo dentro de casa.
Nos momentos mais críticos vejo um enorme descasamento entre o que as autoridades pensam que é o mundo real e o que ele é de verdade. Lembro também quando anos atrás se tentou passar os feriados para sextas e segundas-feiras. As razões econômicas fazem sentido, mas, novamente, faltou combinar com os russos. Começamos com alguns, mas logo a Igreja Católica disse que não aceitava as mudanças e voltamos tudo ao que era antes. Agora acho que teremos este feriadão mezzo mozzarella mezzo calabresa e talvez outros nas próximas datas que, por óbvio, não poderão ser respeitados.
.Voltamos então a Garrincha e acrescento agora o nome pomposo do que decorre deste exemplo, a Teoria dos Jogos — que é o estudo das tomadas de decisões entre indivíduos quando o resultado de cada um depende das decisões dos outros, numa interdependência similar a um jogo. Para fazer uma estratégia tem de se prever todas as reações possíveis dos adversários. Por isso o tal rodízio por placas pares e impares não funcionou. Apesar de todos os alertas, as autoridades não consideraram todas as variáveis, mas apenas os cenários que quiseram.
Como repórter, sempre fui muito incisiva. Chata, mesmo. Aguerrida, embora sempre educada — porque é da minha natureza, mas também porque dá mais resultado do que ser grosseira. Desde que fui para a área corporativa dei muito “media training”, o treinamento de porta-vozes. Basicamente, é preparar um executivo para lidar com a imprensa em entrevistas: como responder, como desviar das cascas de banana, quais as mensagens que a empresa quer aproveitar a oportunidade para transmitir, etc. Como trabalhei muitos anos “do outro lado”, conheço perfeitamente todos os truques e sempre preparei pessoas para o pior cenário. Nunca, até hoje, me dei mal fazendo isso. Ao contrário, muitas vezes aconteceu o contrário e no final o executivo geralmente me pergunta: “mas era só isso? Fácil, né?”.
Pois é, com mais jornalistas despreparados, isso é cada vez mais comum. Mesmo assim, continuo sendo crica e nos ensaios faço as perguntas mais chatas e cabeludas e, claro, ensino como se sair bem delas. Anos atrás, com executivos alemães de uma empresa de higiene e beleza, formamos um grupo de uns quatro jornalistas para simular uma entrevista. Um dos executivos depois do almoço voltou e disse, apontando o dedo para mim: “Com ela não quero mais treinar, não. Ela é muito dura!.” Rimos bastante e, claro, ele me deixou participar da “entrevista”. Quando o grupo foi para a entrevista de verdade, todos se saíram muito bem e meu quase-inimigo virou meu fã, pois disse que achou muito fácil lidar com outros jornalistas depois de ter lidado comigo. Hehehehe. Simples, sempre penso em todos os cenários possíveis. E sou essencialmente pessimista achando que os outros não vão fazer o que tudo indica que farão. Como dizem os norte-americanos, “shit happens”. Ou seja, “m… acontece”. Mas se o gestor está preparado, já sabe como reagir.
Aliás, planejamento é a base de tudo. Os países mais evoluídos gastam muito tempo pensando a construção de uma estrada, seu traçado, o material que será utilizado, quais as melhores técnicas para atravessar montanhas (túnel ou desvio pela encosta?, por exemplo). Com tudo checado, conferido e devidamente ensaiado, a construção em si é rápida e certamente a manutenção será muito mais simples. No Brasil estamos sempre refazendo coisas por falta de simulações adequadas. Por que não se estima a quantidade de acessos a uma rodovia na época do planejamento, ainda que não sejam feitos (porque podem não ser necessários todos no curto prazo), mas constrói-se a estrada e se deixa previsto para o futuro?
Já mencionei aqui que vi uma entrevista de um secretário ou ministro escandinavo (infelizmente não guardei o nome e não acho a entrevista) que dizia que toda vez que se planeja uma estrada pela média de fluxo de veículos teremos, metade do tempo, congestionamentos. É isso. Temos que parar de fazer as coisas de afogadilho e prever o máximo de cenários possíveis. É para isso que escolhemos (ou deveríamos) escolher nossos líderes, para que tracem estratégias de longo prazo, que antevejam as variáveis. Afinal, eles têm uma quantidade gigantesca de assessores e informações que nós, simples mortais e leigos, não temos. Então, por que não utilizam esses recursos?
O mesmo parece ter acontecido com os acidentes. No início do isolamento/quarentena/oquefor a Prefeitura de São Paulo justificou uma série de medidas alegando que devemos deixar os leitos de hospitais livres para os pacientes de Covid-19. OK. O que aconteceu? No Estado de São Paulo, em todo o mês de abril houve um aumento de mortes de ciclistas (mais 3%) e motociclistas (mais 5,5%) quando comparado com o mesmo mês do ano passado — algo de se esperar com tanto entregador amador e gente fazendo bico de entregador sem ter habilitação ou veículo em condições para tanto (e nenhuma fiscalização para coibir isto).
Novamente, faltou planejamento e combinar com os russos. Se as pessoas devem ficar em casa, mas entregas em domicílio estão liberadas (e é óbvio que aumentariam), por que ninguém pensou em aumentar a fiscalização sobre os entregadores, de forma a que não houvesse tantos acidentes? Ah, tem horas que acho que preferia um Garrincha como “gestor” do que muitas das pessoas que temos aí. Pelo menos a simplicidade dele obrigaria os executivos a analisarem outros cenários, não?
Outros números tiveram algumas reduções, mas nada proporcional ao que as autoridades esperavam. Em abril deste ano a quantidade de mortes no trânsito também no Estado de São Paulo diminuiu 24% em abril em comparação com o mesmo mês do ano passado, com 340 mortes ante 402 em 2019. Pessoalmente, acho pouco para as taxas de isolamento que têm sido divulgadas pelo governo do Estado, que nos piores momentos chegam a 47%. No Estado, a maior redução nas mortes foi entre pedestres: queda de 43% (puxado especialmente pela redução do número de idosos e de crianças até 17 anos nas ruas). Também houve redução nas mortes em acidentes de automóveis, mas de somente 17%.
Quando se projetam vários cenários, inclusive os piores ainda que pouco prováveis, a qualquer contratempo já se tem alternativas. Mas não, no Brasil vamos às cegas, esperando o que vai acontecer e torcendo. Afinal, “Deus é brasileiro” — odeio essa frase e o que ela encerra de desculpas para não se planejar corretamente.
Mudando de assunto: acabei de reler meu texto e achei um pouco deprê. Talvez parte da minha ranhetice tenha a ver com os seguidos boicotes que tenho sofrido para atravessar este isolamento sem tantas privações. Como pandemia e isolamento interminável pouco são bobagens, minha televisão grande pifou. Comecei o isolamento sem minha cafeteira de espresso que havia quebrado e que foi devolvida por um solícito entregador depois de uns intermináveis dias já na vigência da quarentena. Agora estou limitada a duas tevês bem menores e a internet vai e vem e me deixa na mão com frequência. Sem café por vários dias, internet de vez em quando e agora sem tevê? Me tira o tubo!
NG