Semana passada comentei aqui sobre carros elétricos numa situação em que não eram para nada recomendáveis pela falta de potência e de lugar para passageiros e expliquei como há veículos adequados para cada uso. Novamente, digo: há carro para todos os gostos e todas as ocasiões e acho que sempre devemos explorar novas tecnologias – em todos os campos de nossa vida. Não sou contra carro elétrico per se, assim como não sou contra nenhum tecnologia. Há duas semanas passei o final de semana inteiro assistindo o canal da Nasa vendo o lançamento e a chegada da Falcon Nove à base. Acho sensacional desenvolvimentos em geral.
Não sou e nunca fui contra a tecnologia embora seja meio lerda em descobrir como usar um novo celular ou mesmo um computador comparada com outras pessoas, mas por total falta de habilidade da minha parte, pois com outros aparelhos sou muito rápida, como com um carro. Aliás, sempre se disse que a Fórmula 1 é um laboratório de desenvolvimento. Há muitíssimos exemplos de excelentes itens que foram criados nas pistas de corridas e depois incorporados aos carros de passeio. E, como meus leitores mais antigos já sabem, minha educação montessoriana me obriga, acho que toda oportunidade é boa para aprender algo. Por isso fiquei tão empolgada com os resultados da Shell Eco-Marathon. Em especial porque foram alcançados por uma meninada toda por volta dos 20 anos. Já pensaram projetar um carro desde o zero, aos 20 anos de idade? E pilotá-lo?
Ando meio desanimada com a juventude quando leio as coisas que muitos dessas criaturas escrevem — um português para lá de pobre, conteúdo idem, totalmente carente de ideias e sem coerência nenhuma. Não tenho muitas expectativas em como estará o mundo nas mãos desta geração semianalfabeta daqui a alguns anos. Por isso conversar com a piloto que ganhou o desafio na categoria carro elétrico me deixou tão feliz e com tanta esperança em pelo menos alguns jovens. A equipe vencedora nessa categoria foi a MecMack, da Engenharia da Universidade Presbiteriana Mackenzie). Eles venceram com o resultado de 259,3 km/kW·h.
Gabi Ackermann tem 20 anos e no ano passado foi a primeira colocada no Shell Eco-Marathon 2019 e que, por causa da Covid-19, foi cancelada este ano em suas duas etapas — tanto a de abril quanto a de setembro próximo — uma pena. Ela é simpática, inteligente e, nem precisaria, linda. Ela tem uma genuína empolgação pelo que faz que é tão contagiante que me fez ter esperança pelo menos em alguns jovens. Constatar que há, sim, grupos inteligentes e engajados em causas realmente interessantes e que resultarão em coisas proveitosas me deixou muito feliz. Então, com o coração mais leve, vamos ao tema de hoje.
A competição Shel Eco-Marathon é muito tradicional — começou em 1939 nos Estados Unidos nos laboratórios de pesquisa da Shell de lá, como uma aposta entre os cientistas da empresa. Competição mesmo, como é hoje, apenas desde 1985, quando foi para 20 outros países e atraiu não apenas jovens cientistas, mas também jovens engenheiros. Compreende quatro categorias: veículos movidos a energia elétrica, álcool, gasolina e uma nova: “conceito urbano”.
São, claro, protótipos que devem ser produzidos desde o zero e é aí que está o charme. Ganha o veículo que vencer a mesma distância gastando menos combustível dentro de sua categoria. Tem certos parâmetros: a velocidade média deve ser de 25 km/h para todas as categorias, o tempo é igual para todos e varia em função da pista, mas não há uma velocidade máxima. Na pista, estão todos juntos, protótipos elétricos, a gasolina, a álcool e os urbanos. Ultrapassagens, claro, são permitidas, mas deve-se buzinar primeiro (achei esse detalhe deveras engraçado).
Cada veículo tem direito a dar várias voltas durante vários dias e isso varia dependendo da pista. Mas se velocidade não é a parte mais emocionante da corrida, a tomada de curvas, as ultrapassagens, são — além, de, é claro, todo o desenvolvimento do veículo. Há dois pilotos por carro, mais um funciona como “reserva”. Na prova do ano passado houve até capotagem da equipe argentina.
Já pensaram fazer um carro desde o zero? Aos 20 anos? São moleques universitários que têm que criar praticamente tudo, como o controlador, a placa que vai ligada no motor, etc. “O motor do tipo sem escovas é comprado, e estamos tentando instalá-lo no cubo de roda, até então não tínhamos conseguido fazer a mudança sem queimá-lo,” disse a Gaby. Por sinal, para a competição de 2021 a equipe MecMack está mudando o cubo de roda… No caso do protótipo elétrico, eles podem usar baterias mas como não há no mercado uma que aguente o tranco, eles juntaram várias baterias de íons de lítio, com cabos mesmo, e as fecharam com plástico termorretrátil e… voilà! Eis uma bateria para um protótipo de carro que dura cerca de três horas.
Como consumo é a chave para ganhar a prova, qualquer peso a menos é fundamental. O pessoal do Mackenzie criou uma espécie de para-brisa que também é usado para fazer toda a vedação do carro — com PET, sim, aquele mesmo de garrafa de refrigerante. Muito mais leve que vidro, plástico, acrílico, resistente e que dá boa transparência, segundo Gabi. Ideia dos estudantes do Mackenzie que provavelmente na edição de 2021 já será copiada pelos concorrentes.
Enquanto a maioria dos competidores usa um velocímetro de bicicleta, a turma do MecMack desenvolveu um aplicativo de celular. Assim, o piloto corre com um telefone à sua frente que lhe permite ver não apenas a velocidade, mas também o tempo, os gráficos de consumo e mais um monte de dados que, claro, a cerca de 25 km/h podem ser consultados sem problema — pelo menos enquanto não for proibido olhar o celular enquanto se dirige nessas pistas. Novamente, ideia de um rapaz de 20-21 anos. Provavelmente na competição de 2021 todos usarão a mesma ideia, ainda que desenvolvam seus próprios aplicativos.
O design do veículo foi todo feito por um estudante de Desenho Gráfico do Mackenzie que atualmente é estagiário na Volkswagen. Os outros participantes do grupo são estudantes de Engenharia Mecânica ou Elétrica com a orientação de um professor e o apoio da Universidade Mackenzie. Todas as peças são produzidas dentro do laboratório da universidade, inclusive usinadas pelos próprios estudantes.
Claro que a mecânica do protótipo é simples. Não tem suspensão nem portas (o veículo abre por cima) mas, mesmo assim, as normas de segurança exigem que o piloto consiga sair em, no máximo, 10 segundos. O cinto é de 5 pontos e há teste de elevação do piloto com ele afivelado para confirmar que a retenção é segura. O capacete é de moto, luva e macacão são antichamas e a sapatilha é comum. Tem retrovisor e buzina e o freio é, também, de bicicleta — dianteiro e traseiro, por exigência do regulamento e com teste de descida.
E como é que uma estudante de Engenharia Civil vira piloto de protótipo de carros? Destino é destino. Uma amiga de um amigo de Gabi a abordou na faculdade, inicialmente por ela ser bem magrinha (condição básica para pilotar um carro de apenas 24 kg que deve consumir o mínimo possível). Então, a primeira pergunta foi: você tem CNH? “Sim”. Aí começaram outras perguntas para saber se ela tinha alguma familiaridade com carros, uma entrevista e uma espécie de prova. Sim, Gabi havia corrido de kart entre 2012 e 2013 nos circuitos de Aldeia da Serra e da Granja Vianna até que um pequeno acidente fez com que machucasse um braço e a mãe a proibisse de continuar. Pronto! A equipe MecMack havia achado a candidata ideal. Gabi foi se envolvendo com o projeto e gostou tanto que mudou para Engenharia Mecânica. E a empolgação foi tanta que nem a mãe conseguiu impedir a nova carreira.
De fato, dirigir um protótipo desses tem certas semelhanças com um kart. O volante tem que ser “trazido” de volta como num kart. As curvas são feitas de forma parecida, embora em velocidade mais baixa. A diferença principal está no envolvimento em todo o projeto e o “feeling” do piloto em como melhorar a performance com poucos recursos.
Pessoalmente, adorei fazer esta entrevista. Numa outra escala, me fez reviver os tempos românticos da Fórmula 1 quando muitos dos pilotos se envolviam totalmente no projeto e nos acertos do carro e, de quebra, me deu esperança numa geração que me frustra diariamente quando leio postagens idiotas e cheias de erros de ortografia e de conceitos nas mídias (anti) sociais de uma geração que de dá desânimo. A Gabi Ackermann e sua equipe deixaram minha semana muito mais cheia de esperanças.
Mudando de assunto: por uma incrível coincidência, estive em Araçoiaba da Serra este final de semana. Fazia tempo que não ia para lá. Não consegui descobrir se foi derrubada a cláusula estapafúrdia do prefeito que instituía mão e contramão para pedestres nas calçadas como parte das medidas de “desconfinamento” que mencionei aqui semana passada. O que vi foi gente andando nos dois sentidos e eu mesma devo ter cumprido em algum momento e descumprido em outro a tal medida, caso esteja em vigor, pois fui até uma quitanda e andei um quarteirão, ora de um lado da rua, ora do outro. Não por nada, não, apenas porque esqueci o raio do decreto. Só lembrei dele no dia seguinte…
NG
(Atualizado em 10/06/20 às 12h15)
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