Sei que posso estar pisando em areia movediça, mas como quem me conhece sabe que não sou de fugir de uma boa discussão, vamos lá. Depois de ter contado neste espaço sobre os parcos conhecimentos automobilísticos da família do meu marido, escrevinharei hoje sobre os fartos conhecimentos automobilísticos da minha própria família e, de certa forma, de mim mesma.
Digo areia movediça porque, sabem como é, nem sempre as famílias dos dois lados de um casal se dão bem. No meu caso, felizmente, isso nunca foi problema. Ao contrário, especialmente minha mãe e meus sogros eram muito bons amigos e tinham muitos gostos em comum – especialmente cinema e literatura, assuntos sobre os quais minha mãe e meu sogro conversavam durante intermináveis horas. Era muito legal de ver. O mesmo com os tios do meu marido em relação a mim e a meus pais – aliás, até hoje. E, apesar da distância, minha família na Argentina adora meu marido. As más línguas (diga-se, meu marido), dizem que é porque ele os livrou de mim e ainda me manteve a mais de 2.000 quilômetros de distância… mas o fato é que se gostam muito, sim.
Mas quando se trata de autoentusiasmo, bem, aí minha família consanguínea dá um banho. É meio coincidência, pois meu avô materno gostava muito de carro, assim como meu pai e meu famoso tio César, que é casado com minha tia consanguínea. Ou seja, três pessoas da família, mas que não tem o mesmo sangue nas veias. São parentes por outros motivos que, aliás, nem tem a ver entre si. Meu pai casou com minha mãe porque gostava dela, não porque meu avô gostasse de carros e de motos como ele. E assim nos outros casos. Mas, como diz o sábio ditado, Deus os cria e o vento os amontoa. Acabaram vários deles na mesma família, mas, por ironia e azar do destino, apenas meu pai e meu avô conviveram, pois meu avô infelizmente morreu cedo.
Meu queridíssimo tio César é um autêntico autoentusiasta. Provavelmente uma das pouquíssimas pessoas na face da Terra a quem eu emprestaria meu carro. Dirige que só ele. Dá gosto de ver. Rápido, mas seguro — daqueles que sabem exatamente para onde podem jogar o carro caso alguém ao lado ou à frente faça uma besteira porque sabe exatamente onde estão os outros veículos na rua ou na estrada. E é incrível para estacionar. Coloca o carro num par de manobras onde só cabe ele e sobram uns 10 centímetros no total. Mas aprendeu dirigindo caminhão, numa época em que nem esses veículos tinham tantos recursos como direção hidráulica, câmera, sensor de estacionamento — além de um talento nato. Foi ele que me ensinou a desligar o rádio e abrir as janelas ao chegar a uma travessia de linha férrea — tão comuns na Argentina e, depois descobri, na Europa — para conferir visual e auditivamente se não vem um trem, pois apenas confiar numa cancela, que nem sempre existe, nunca é suficiente.
Meu tio César gosta tanto de carros que teve três Torinos, um atrás do outro e só não teve mais desse modelo porque saiu de linha. Ainda assim, fez questão de comprar um dos últimos zero-quilômetro quando se anunciou que sairiam de linha. O primeiro foi um 380W branco, preparado por uma oficina especializada, meio rebaixado para dar um efeito-solo, com tomadas de ar laterais para ventilar os discos de freio e mais uma parafernália de acessórios. Para tristeza dele, uma noite foi roubado. Até hoje lembra a data exata disso: 25 de agosto de 1972.
Com o dinheiro do seguro comprou outro Torino, um 380 cor de cobre. O 380 tinha somente um carburador e depois, outro 380 vermelho, modelo 1982, um dos últimos antes que saísse de linha. Eu chamo ele, assim como me referia ao meu pai, de “viúvos do Torino”. Desde então, meu tio teve vários outros modelos de carro e os dois últimos foram BMW. Meu pai saiu do Torino para um Maverick.
Este tio veio muitíssimas vezes ao Brasil com minha tia e meus primos — quase sempre de carro e a Santa Catarina, embora algumas vezes tenham esticado até o Rio de Janeiro e, claro, algumas até São Paulo visitar a sobrinha querida que vos escreve.
Numa das idas às praias de Santa Catarina, a bordo de, claro, um Torino, perto de Pantano Grande, RS, a luz do painel se acendeu indicando que o alternador não estava carregando a bateria e meu super tio parou imediatamente num posto de gasolina cheio de caminhões. Perguntou onde havia uma oficina mecânica e indicaram um galpão. Já contei esta história aqui, mas resumi-la-ei para quem não leu à época. Apareceu então um sujeito de havaianas, short e camiseta. Abriu o capô, ligou o motor e concordou com meu tio. Era o alternador e, segundo ele por causa de um rolamento que havia travado dentro do alternador, que elevara a temperatura, esquentado o eixo da bobina e provocado o derretimento da solda de um dos arames da bobina. Na teoria, simples de consertar — depois de esfriar o motor, claro.
O problema era conseguir o rolamento para substituir o que havia travado. Lembrem-se, caros leitores, que era um carro importado numa época em que não havia globalização, as fábricas de carros não tinham os mesmos modelos em vários países e, principalmente, o Torino era um modelo absoluta e genuinamente argentino, desenvolvido lá. Não tinha nem similar no Brasil nem — sem patriotada, embora todos saibam quão fã sou desse carro — em outro país. Sem falar, claro, que era um galpão numa cidadezinha do interior do Rio Grande do Sul há uns 40 anos.
O mecânico, muito decidido, desmontou totalmente o alternador, para desespero do meu tio. O McGyver de chinelos pegou um dos rolamentos e foi até o posto de gasolina e voltou com vários na mão. Testou um por um até que um deles provou ser da medida exata. Foi até o posto e voltou com mais um igual. Montou o alternador, o colocou no Torino e ligou o motor. Tudo perfeito. Quando em 1988 meu tio vendeu esse Torino para comprar um Renault Fuego cupê, o alternador era aquele consertado em Pantano Grande com aqueles mesmos rolamentos, sem nunca mais ter dado algum problema.
Imaginem, caros leitores, meu tio conversando sobre carros com minha sogra, que sequer sabia que carro tinha radiador e precisava de água? Nada mais longe do autoentusiasmo da minha família do que a autoindiferença da família do meu marido.
Menciono os modelos de carro para que vocês tenham uma ideia da intensidade de autoentusiasmo da família. Nela, conversar sobre veículos sempre foi coisa para horas e horas. Sempre lembraram dos detalhes dos modelos que tiveram, das curiosidades, tudo, nos mínimos detalhes. Como escrevi na semana passada, na família do meu marido ninguém nem lembra onde foi deixado o Gordini do acidente nem o que aconteceu com ele. Apenas meu marido é que tem gosto por carros, e isso desde pequeno. Sabe-se lá por que, pois assistia sozinho as corridas de Fórmula 1 aos domingos na televisão, enquanto o resto da família fazia alguma outra coisa. Ninguém incentivou, levou a algum autódromo, nada. Apenas em alguma ocasião deram alguma miniatura de Matchbox assim como deram alguma bola de futebol ou a miniatura da Apollo XI que ele mesmo montou aos 10 anos de idade e que até hoje guarda, intacta. Por sinal, outras duas paixões da cara-metade.
Mas não basta gostar de carro e comprar um bacana. Tem de saber o que fazer quando enguiça, né? O Torino era muito, muito robusto, mas às vezes, como todo item mecânico, dava problema. Uma vez indo de São Paulo para Buenos Aires com o “Toro” meu pai dividia o volante com um amigo e em algum momento mais ou menos no meio do caminho ficaram sem embreagem. Como ambos eram bastante bons motoristas, seguiram enfrente até Buenos Aires, simplesmente sem embreagem. Claro, é possível, mas não é algo para não iniciados. Eu mesma já fiz isso mas em distância muitíssimo menor.
Quando ainda namorava meu marido (época de juntar dinheiro para o casamento, quando qualquer economia era bem-vinda) ele tinha um Fusca que o tempo todo dava problema de partida. Era comum quando saíamos de algum lugar o carro não pegar, então me acostumei a descer até a rua com ele. Namorada de verdade divide os perrengues, então, para que ele não fizesse tudo sozinho, eu aprendi a engatar a segunda, no tranco, enquanto ele empurrava o carro. Mas isso havia se tornado tão comum que ficava muito pesado e então decidimos que os dois empurraríamos o carro e ele, do lado do motorista, pularia para trás do banco para engatar a marcha. Era mais ginástica para ele, mas em compensação ele mesmo fazia menos força do que comigo já dentro do carro. Em minha defesa ressalto que aprendi rapidinho a engatar a marcha, pois morria de pena de ver ele se matando empurrando o carro uma e outra vez quando eu não acertava o câmbio.
Mas gostar de carro para nós nunca foi sinônimo de ser esnobe. Tínhamos os carros que podíamos pagar. Lembro que uma vez fomos a um aniversário de casamento dos pais de um amigo dele no Régine’s, então um dos lugares mais caros e badalados de São Paulo. Pensam que me abalei de chegar de Fiat picapinha, aquela derivada do 147, dois lugares com caçamba, toda arrumada? Arrumada eu, que a ximbiquinha estava bem velhinha e não tinha muito jeito, não… Nem um pouco. Outra pessoa teria ido de táxi ou parado a um quarteirão. Nós não. Paramos bem na porta e entregamos o carro para o manobrista. E lá mesmo o pegamos, diante de todos os que recebiam carros de superluxo. Nunca me envergonhei do que tenho nem do que não tenho – com carros não seria diferente, por mais que goste.
Eu mesma passei poucas (poucas mesmo) e boas com carros. Além da troca de pneu que tive que intimar a cara-metade para que viesse me ajudar, teve outras. Coisa normal para quem sempre dirigiu muito e, durante décadas, sozinha ao volante. Hoje muitas vezes estou acompanhadas, mas antes 99% do tempo era eu e mim mesma.
Sempre achei indispensável saber o mínimo sobre tudo. Seja mecânica de carro, cozinhar, manutenção — exceto eletricidade, que tenho verdadeiro trauma e só sei teoria que não aplico à prática de jeito nenhum. O máximo que faço é trocar lâmpada e dei graças a Deus quando surgiram as de LED, pois nem reator substituo. Meu carro tem os famosos cabos para ligar na bateria descarregada e puxar energia de outro carro e dar partida, mas… pergunta se eu faço. Nananinanão. Provavelmente, se estivesse sozinha no deserto do Rally Dakar, talvez. Fora isso, de jeito nenhum. Sei que é besteira, e sei onde devo ligar cada extremidade. Mas, e o medo estúpido e irracional de tomar choque? Minha mãe sempre me ensinou a saber de tudo — inclusive aquilo que eu achava que não precisaria fazer, porque alguém faria por mim. Sabem de uma coisa, nem sempre alguém faz e, melhor ainda, dá uma sensação ótima ser totalmente independente. Mas eletricidade, só na teoria.
Uma vez, indo para uma entrevista na então Autolatina, saí da Gazeta Mercantil com meu carro pois era sexta-feira e de lá já iria embora para minha casa. Tinha a chance de escrever a matéria na sala de imprensa deles e chegar mais cedo em casa, que era bem mais perto do que voltar tudo até a redação. Mas… no cruzamento de duas importantes avenidas, meu carro não quis sair na hora que o sinal abriu. Av. Ibirapuera com República do Líbano. Sexta-feira, lá pelas 18h30. Pisei na embreagem e nada. O pedal foi até o fundo, soltinho, soltinho. Nem voltava (foto ilustrativa ao lado). Tentei engatar direto a segunda marcha apenas para sair do cruzamento e encostar em algum lugar, mas nada. Mesmo eu, que fazia isso com facilidade, não consegui sei lá por que. Abre sinal, fecha sinal e nada. Nem tentei muito e logo desisti. Liguei o pisca-alerta, coloquei o triângulo e comecei a buscar alguém que me ajudasse a empurrar o carro para encostar num lugar menos incômodo para todos. Felizmente, uns dois sujeitos ajudaram e paramos o carro numa travessa bem perto. Abri o capô e confirmei minha teoria: estava rompido o cabo da embreagem. Nada a fazer naquela hora, não podia me atrasar ainda mais, tranquei o carro, peguei um táxi e fui para a entrevista. Escrevi o texto, mandei para a redação e fui embora para casa. Falei com o marido e expliquei o ocorrido.
Na manhã seguinte, fomos a uma loja de autopeças e compramos o cabo. Chegando ao local do estacionamento, quis trocar sozinha o cabo. Como contei semana passada, sou metida a Mulher Maravilha, né? Levei bem uns 40 minutos e quebrei umas duas unhas, acho. Meu marido teria trocado em 15, provavelmente, e não teria quebrado nenhuma unha, mas, qual seria a graça? E se ele não estivesse para me ajudar? Felizmente, era um Gol arrefecido a ar e não era difícil. Por via das dúvidas, na segunda levei no meu mecânico de confiança para checar se eu não havia esticado demais o cabo. Segundo ele, estava perfeito. Eba! Achei que seria melhor trocar meu primeiro cabo de embreagem com supervisão, mas sozinha, do que ele fazer isso e eu nunca saber o que teria de fazer caso acontecesse novamente.
Outra vez, quando tinha um Fiat Uno, quebrei a correia dentada. Assim, do nada. Entrei na hora num posto de gasolina na Av. Moreira Guimarães. E liguei para a seguradora. O socorro veio rapidamente e confirmou minha impressão, mas dessa vez não pude fazer nada. Aliás, até hoje não saberia trocar uma correia dentada — mas só de saber o que era e de ter parado imediatamente já fiquei feliz. Claro que nos dois casos eram carros de mecânica simples. Hoje ficaria muito mais difícil eu mesma consertar algo nos meus possantes…
Trocar, mas trocar mesmo pneu, poucas vezes precisei . Não sou feminista, mas passo mais longe ainda de ser dondoca. Na maioria das vezes enquanto estava eu mesma começando a fazer a operação, parou alguém e me ajudou — todas as vezes homens, sem que eu pedisse. Bem, uma vez eu precisei pedir ajuda, aquela do meu marido. Estava eu na Av. Rubem Berta, lá pelas 23h30 indo para minha casa com minha mãe quando, do nada, furei um pneu do meu Gol num lugar onde aconteciam coisas estranhíssimas. Para mim era uma espécie de Triângulo das Bermudas. Meu pneu era sem câmara e, do nada, murchou completamente. Depois quando levei ao borracheiro não encontramos nada – nem furo, prego, rasgo, nadinha. Nesse mesmo lugar (perto do Tribunal de Contas do Município), tive problemas elétricos umas duas vezes que, minutos depois de parar no acostamento se consertaram sozinhos e, em todos os casos, com carros diferentes.
Bom, voltando ao pneu do Gol. Encosto o máximo que posso do lado direito, ligo o pisca-alerta e vou para o porta-malas. Tiro o triângulo, ferramentas e macaco e minha mãe desce para me ajudar. Agradeci, mas pedi para ficar fora do carro, o mais protegida possível pois o lugar era de trânsito intenso e a Mulher Maravilha aqui achou que daria conta (minha mãe sabia trocar pneu e trocara várias vezes ao longo da vida). E aí começou a saga dos parafusos apertados com parafusadeira em concessionária. Nada das porcarias se soltarem. Para piorar, minha chave era daquele tipo em “L”. Nunca mais quis. Prefiro mil vezes a chave em cruz porque pelo menos consigo subir nela e fazer mais força. Felizmente, depois de sei lá quantos minutos, para uma Saveiro com dois rapazes bem, bem musculosos e se oferecem para me ajudar. Desistiram de tentar usar minha chave porque não conseguiram tirar os parafusos e pegaram uma em cruz no próprio porta-malas. Um deles teve de subir e pular nela para conseguir soltar os parafusos. Só assim para soltar os maledettos. Aí agradeci e falei que daí em diante eu seguia, mas não quiseram e gentilmente terminaram de fazer a troca e nem caixinha aceitaram. No dia seguinte fui ao borracheiro perto de casa e mandei tirar todos os parafusos das outras rodas e apertar na chave. E eu mesma peguei minha chave de roda e fui soltando um por um. Se eu mesma não conseguisse, mandava afrouxar.
Outra vez tomei uma fechada num dos acessos da 23 de Maio. Perto do meio dia, a caminho do jornal, claro. Dia de sol, tranquilo, mas a criatura a minha frente esqueceu que queria entrar na 23 de Maio e resolveu cortar a minha frente para fazer isso e me jogou contra a guia que se projetava em triângulo. Claro, o meio-fio mordeu meu pneu e rasgou. Na hora, pneu sem câmara, fiquei parada no mesmo lugar. Mesma coisa de sempre. Ligo o pisca-alerta, destravo o porta-malas e na hora que saio de trás do meu carro com as ferramentas na mão dou de cara com um sujeito de camisa azul claro que havia parado o carro à frente do meu e já estava com a chave de roda e o macaco na mão (não os meus, que ainda estavam na minha mão), se ajoelhando diante do meu pneu. E eu estava saindo da frente do meu próprio porta-malas. Seria The Flash? Eu, claro, fui dar um boa-tarde, agradecer e oferecer ajuda. O cara era motorista profissional, me viu e resolveu ajudar. Trocou meu pneu em tempo de pit stop de Fórmula 1. Juro. Nunca vi uma troca tão, mas tão rápida. Novamente, não quis caixinha e se contentou com meu sorriso e me eterna gratidão.
Mudando de assunto: campeões de Fórmula 1, além de bons, têm de ter sorte. Muitos grandes talentos ficaram pelo caminho e outros bons, mas não fantásticos, contaram com a estrela para conseguirem o título. Hamilton realmente parece ter as duas coisas do seu lado. Um enorme talento e uma sorte idem. O pneu não apenas estourou bem depois, em termos de circuito, do que o do Bottas, como o Verstappen havia parado – se os pneus do holandês tivessem aguentado, ele certamente teria ultrapassado o inglês. É muita sorte misturada com muito talento, claro. E, cá entre nós, que pixotada do Pérez, hein? Passear no México e na Itália, dois dos lugares mais atingidos pelo covid-19 e ficar postando fotos sem máscara? É dar muita sopa para o azar e motivos para que nem seguradora pague, né? Pena que não conseguimos ver o Hulkenberg que, acho, poderia ter feito um bom papel. Vamos ver neste próximo final de semana. Quem sabe.
NG