Sempre gostei de democracia. Concordo com Winston Churchill que disse que “democracia é a pior forma de governo — exceto todos as outras”. Eu também ainda não identifiquei um regime melhor. Mas, claro, o ser humano é ser humano e acaba torcendo quase tudo.
Democracia pressupõe eleições. E eleições no Brasil são sinônimo de político adotando comportamento de nave Enterprise — indo onde nenhum homem jamais esteve. Eles vão aos bairros que até então só conheciam de ouvir falar, comem pastel que detestam, tomam cafezinho morno, enfim, um show de horrores de candidatos. Mas os que já estão nos cargos não ficam atrás em barbaridades. Na verdade, muitas vezes fazem até mesmo pior, pois têm a caneta e a chave do cofre na mão. É um período marcado por uma enxurrada de obras, em sua maioria malfeitas, sem planejamento e com a durabilidade de, não raro, um segundo turno eleitoral. Asfalto que se esfarela em alguns meses, buracos tão mal cobertos que reaparecem em algumas semanas… a lista é enorme.
Tudo o que segue se refere a São Paulo, mas é aplicável a qualquer cidade brasileira, uma vez que trânsito no Brasil não é realmente levado a sério, pois não é possível tantos absurdos e incoerências.
Recentemente passei pela Av. Rebouças, em São Paulo. A via une a avenida Paulista à marginal do rio Pinheiros, tem um volume considerável de linhas de ônibus, carros e, como toda a cidade, motos e um total de 4,1 quilômetros. Pois bem, conseguiram piorar o que já era uma muvuca dos infernos. Há anos existe uma faixa de ônibus do lado esquerdo e agora estão terminando de pintar uma ciclofaixa do lado direito, deixando com duas faixas estreitíssimas toda a via, que deve comportar carros de passeio, caminhões (sim, o trânsito deles é permitido e eles precisam circular por lá, de fato), motos e qualquer outra coisa que não seja ônibus ou bicicleta
Além dos ônibus que muitas vezes saem do corredor exclusivo para ultrapassar outro que esteja parado para subida ou descida de passageiros. A ciclofaixa da Rebouças tem 3,4 quilômetros de extensão.
O pior é que há anos há uma ciclofaixa na primeira rua paralela à avenida Rebouças, na rua Artur de Azevedo, modernizada e pintada recentemente. E, do outro lado da Rebouças, a apenas alguns metros, outras ruas paralelas tem ciclofaixa, como a rua da Consolação e a Bela Cintra, ambas até o cruzamento com a Av. Brasil. Ou seja, bastaria pedalar um quarteirão para usar uma ciclovia já existente. Ou dois para usar a outra.
Mas nada é tão ruim que não possa piorar quando falamos de engenharia (?) de trânsito no Brasil. Como dizem as boas normas de trânsito, não se coloca o modal mais frágil do lado de onde são feitas as conversões e os acessos – neste caso, a pista direita. O motivo é simples: carros, caminhões e motos (todos menos frágeis do que as “magrelas”) acabarão intersectando a pista por onde transitam os ciclistas. Geralmente, a cada 100 metros, mais ou menos. Na minha Buenos Aires natal, todas as ciclofaixas e ciclovias são do lado esquerdo do leito carroçável. Mas não é só lá que isso acontece. O mesmo se vê em cidades como Berkeley, Boston, Chicago, Eugene, Madison, Minneapolis, Naples, Nova York, Portland, Sacramento, San Francisco, Seattle e Washington, DC, apenas para ficar em exemplos nos Estados Unidos.
Há várias razões para isto, além da já mencionada, mas só uma já ganha de todas as outras: o ciclista fica mais visível para o motorista, que está a sua direita e sem possibilidade de ficar num ponto cego. Apenas isso já seria motivo suficiente para fazer a cicloqualquercoisa do lado esquerdo. É claro que na Rebouças já fizeram o corredor desse lado, o que complica muito as coisas mas, novamente, é pura falta de planejamento. Ou, por óbvio, não construir ciclofaixa naquela avenida e sim em outro lugar – embora, como já disse, haja ciclofaixa nas ruas paralelas, dos dois lados da avenida.
Mas, assim como aqueles anúncios do “ligue já”, não é só isso. As duas pistas que ficaram disponíveis (sic) para todos os outros modais tem largura insuficiente para que um carro médio transite com um mínimo de segurança. A própria ciclofaixa tem largura muitíssimo inferior ao mínimo considerado seguro, que é de 1,20 metro. Tem trechos que mal chega a 1 metro. E, claro, ninguém tem a menor condição de ficar distante lateralmente de um ciclista, por óbvio. Ou seja, nos obrigam a infringir o Código de Trânsito Brasileiro, no seu artigo Art. 201 que diz que é infração deixar de guardar a distância lateral de 1,5 metro ao passar ou ultrapassar bicicleta:
Infração – média;
Penalidade – multa
Pois bem. Qual seria a alternativa para cumprir esta norma do CTB? Apenas mudar de faixa. E aí digo: quem já andou na Rebouças ou olhou no Google Maps como ela é percebe em segundos que isto é absolutamente impossível. Sem falar nos táxis que entram e saem da faixa de ônibus, as motos que passam pelo corredor entre as faixas… Algo assim como querer que o veículo levite ao ultrapassar uma bicicleta. Tão fácil uma coisa quanto outra.
Semana passada subi toda a Rebouças atrás de um caminhão com caçamba que não tinha como não andar no meio das duas pistas. Mesmo carros de passeio mais largos tem dificuldade em circular e nem menciono as motos, que só podem circular por aí, pois tanto a ciclofaixa, quanto a faixa de ônibus estão vedados para elas. Circulei por lá um dia de semana às 22h00 e enfrentei um enorme congestionamento pois o caminhão à minha frente não era o único a ocupar toda a largura do leito carroçável. Havia mais um, alguns quarteirões adiante e ambos afunilavam o trânsito.
Encontrei um total de sete ciclistas entre meu percurso de ida e o de volta pelos 3,3 quilômetros que percorri da via — quatro deles eram entregadores. E, como sói acontecer, e por aquelas razões insondáveis, dois deles andaram por pouco mais de um quilômetro na pista destinada aos carros e não pela ciclofaixa, ao ladinho de onde eles transitavam (fotos acima muito desfocadas, pois foram tiradas no banco do carona e com o belíssimo asfalto que parece de rali). Eles não pedalavam pela ciclofaixa da Artur de Azevedo, nem pela ciclofaixa da rua da Consolação, nem mesmo pela ciclofaixa da Rebouças, mas exatamente no meio dos carros na Rebouças. Durante o trecho que acompanhei, subiram na calçada para cruzar um sinal fechado e em outro simplesmente seguiram pedalando como se houvesse luz verde para eles. É mole? Sempre vejo cicloativista dizer que é para construir ciclovias, que os usuários “virão”. Minha dúvida é se isso se aplica a pistas de pouso para naves espaciais também. Pelo mesmo princípio, se fizermos isso poderemos ter uma invasão marciana, venusiana ou de outra galáxia, né? (claro que o liguei o modo irônico). Mas voltando à Rebouças, parece que às vezes eles vêm, sim, mas não usam a pista que deveriam — o que também derruba a teoria, pois bastaria manter as ruas e avenidas como estão que os ciclistas aumentariam do mesmo jeito.
Outra coisa que me incomoda profundamente é a falta de honestidade. Em todas as divulgações do projeto a avenida Rebouças está praticamente vazia. Fotos, certamente tratadas de forma digital, e desenhos, mostram uma via onde quase se poderia jogar dominó no leito carroçável. Nas décadas em que moro em São Paulo nunca, nunquinha, vi esse cenário. Nem mesmo nas fotos feitas por drones e helicópteros no início da pandemia mostravam esse cenário de sonhos. Se não fosse assim, não haveria como a velocidade média no corredor Eusébio Matoso, Rebouças e Consolação ser atualmente de 8,2 km/h à tarde, segundo dados da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET). É simplesmente a avenida mais lenta de toda a cidade, mas imagino que daqui a algum tempo cairá ainda mais graças à ciclofaixa. Como a CET mantém câmeras no local e podem ser vistas em tempo real na internet, me dei ao trabalho de acompanhar estes dias (http://cameras.cetsp.com.br/View/Cam.aspx) . Incrível a mais do que ínfima quantidade de ciclistas que transitam por lá, mesmo no cruzamento da Rebouças com a Av. Pedroso de Moraes, que vem de uma longa e em feita ciclovia no canteiro central da via. E chama a atenção a quantidade de câmeras que não funcionam.
Algo muito parecido aconteceu na Av. Roberto Marinho. Era para ser uma via larga, mas que se afunila para somente uma pista em suas duas extremidades. Há anos se arrastam as obras do monotrilho que deveria passar por cima da via mas ocupa uma ou até duas pistas em cada sentido com tapumes e restos de uma obra interminável. Mesmo assim, alguém teve a brilhante ideia de pintar uma ciclofaixa por lá. Serão 5 quilômetros numa avenida onde as obras se arrastam há anos e pouco mudou desde o inicio das obras. (foto de abertura)
Como já disse, gosto de democracia e defendo esse regime, mas no Brasil, período pré–eleitoral é um inferno. Um festival de sandices, bobagens e aberrações ao qual nos submetemos de dois em dois anos, em escalas diferentes. Infelizmente, muitos se esquecem e dois anos depois (ou quatro, dependendo do cargo para o qual a pessoa se candidata) votam no mesmo que fez todas essas besteiras. Uma pena.
Mudando de assunto: depois de algumas corridas de Fórmula 1 este ano em circuitos não tradicionais da modalidade, peço encarecidamente às autoridades automobilísticas que esqueçam o desenhista de pistas Hermann Tilke. Ficou mais do que óbvio que os traçados dele são horrorosos. Não é a F-1 que ficou chata, as pistas criadas por ele é que são. Por favor, dispensem totalmente este sujeito, contratem o português Ricardo Pina, que desenhou Portimão, (ou outras pessoas) e peçam que eles reformulem essas aberrações que vínhamos chamando de circuitos. A F-1 só tem a ganhar com isso.
NG