Se você perguntasse no fim do século 19 qual é o carro mais rápido do mundo, ficaria surpreso em saber que era um elétrico. Em 1899, o francês La Jamais Contente foi o primeiro automóvel a quebrar a barreira dos 100 km/h (atingiu 105,88 km/h).
A vida é irônica, pois mais de 100 anos depois os veículos elétricos tornaram-se o centro de uma grande polêmica: hoje eles são considerados máquinas sem graça, entediantes e distantes do conceito de direção esportiva, segundo boa parte dos apaixonados por carro.
Então como será o futuro na era da mobilidade elétrica para marcas que construíram sua reputação sobre a ideia de esportividade e prazer de dirigir? Afinal, o discurso de apoio ao veículo elétrico sempre foi baseado na racionalidade: uso urbano, curtas distâncias, locais com boa estrutura de recarga. Como fica quando o foco desse automóvel passa a ser exclusivamente emocional?
Empresas como Porsche, BMW, Audi e Aston Martin já caíram de cabeça nesse desafio. O exemplo mais importante é o Taycan (foto de abertura), idealizado para ser um Porsche 911 ligado na tomada. A rigor, ele é único na sua categoria. Não, o Tesla S não é seu rival direto porque são propostas diferentes. No Tesla, o alto desempenho é consequência do projeto; no Taycan, é o ponto de partida.
O futuro da Porsche em jogo
O êxito do Taycan será decisivo para o futuro da Porsche. Se der errado, ele pode fechar as portas para todas os fabricantes que vendem algum nível de esportividade. Como a Europa (maior mercado dessas marcas) se prepara para banir o motor a combustão entre 2030 e 2040, a falta de aceitação de esportivos elétricos poderia condenar esse nicho de mercado.
A Porsche se esforçou bastante para mostrar que sua essência está toda lá. O cupê 100% elétrico tem desempenho para deixar até piloto de Fórmula 1 sem ar na versão mais nervosa. Seus dois motores com potência combinada de até 761 cv podem levá-lo de 0 a 100 km/h em 2,8 segundos, mesmo pesando 2.295 kg.
Os primeiros sinais indicam que a aposta deu certo. A previsão de produção mundial do Taycan no primeiro ano era de 20.000 unidades, mas os pedidos foram tantos que já passou para 40.000. Em plena pandemia, ele foi o Porsche mais vendido da Europa, à frente até dos suves Macan e Cayenne.
No Brasil, as coisas também vão bem: o número de interessados foi tão grande que é suficiente para dar conta da produção destinada ao nosso mercado nos próximos 12 meses. É surpreendente para um modelo que custa de R$ 589.000 a R$ 979.000.
Boa notícia para todos
A BMW deveria ficar feliz com a notícia. Entre as três alemãs premium, é a que tem a imagem mais ligada ao prazer ao volante. Seu teste de fogo começa no fim de 2021, quando estreia o primeiro de uma nova família de carros que nascerão 100% elétricos, o iX.
Trata-se de um suve com porte de X5, mas que é rápido, muito rápido. Seus dois motores com 500 cv podem levar suas 2,5 toneladas (estimadas) de 0 a 100 km/h em apenas 5 segundos. Atenção à enorme grade frontal: ela não é funcional (é toda fechada), mas está lá apenas para se parecer com a do novo M3, o ícone esportivo da BMW.
Aston Martin e Audi também entraram na dança. O primeiro veículo 100% elétrico da Aston atende pelo nome de Rapide E, depois de trocar o tradicional V-2 6.0 de 552 cv por um conjunto elétrico de 612 cv. Em 2021, estreia o Audi e-tron GT, que usará a plataforma do Taycan e terá versões de até 700 cv.
Outros mais virão com o tempo, porém a dúvida é a mesma para todos: eles conseguem oferecer o prazer e a emoção de um legítimo esportivo movido por um empolgante motor a gasolina?
Se julgarmos pelos números, não há dúvida. Eles entregam o mesmo nível de potência, muito mais torque e tempos de aceleração que não deixam dúvidas que podem rivalizar e até superar seus pares viciados em petróleo.
Na dirigibilidade, também não há controvérsia. É um comportamento diferente ao volante, porém o nível de adrenalina sobe na mesma proporção em que desce o acelerador. O piloto Rubinho Barrichello chegou a comparar seu teste no Taycan com a experiência nos tempos de Fórmula 1. Acelerações brutais, retomadas imediatas, respostas rápidas a qualquer comando.
Mas algumas coisas ainda estão faltando. A principal é o ronco explosivo dos cilindros que inebria mesmo quem está do lado de fora, apenas vendo encantado a passagem de um monstro gritando alto pela rua. Isso é parte fundamental da magia de acelerar um esportivo, assim como sentir a vibração do motor e do escapamento ressoando dentro da cabine, sendo retransmitida para nosso corpo pelo banco e volante.
Em um elétrico também fazem falta o freio motor (o sistema de freio regenerativo até tenta simulá-lo) e a possibilidade de reduzir as marchas em uma condução mais agressiva – apesar que, na prática, a maioria dos motoristas deixa o trabalho para o câmbio automático, que hoje equipa todos os esportivos.
Até Ferrari vai entrar na onda
Entre prós e contras, precisamos dar tempo para a nova safra de elétricos mostrar nos próximos anos se é capaz de rivalizar com a antiga tecnologia. Antes que alguém diga que um esportivo elétrico é uma heresia, é bom lembrar que esse movimento é tão irreversível que até a Ferrari vai embarcar nessa.
Recentemente vazou um registro de patente revelando que a empresa planeja um supercarro de dois lugares e quatro motores elétricos (um em cada roda) a partir de 2025. Até o próprio diretor comercial, Enrico Galliera, já reconheceu que, assim que a tecnologia de baterias estiver mais avançada, a Ferrari produzirá um elétrico digno da reputação da marca.
Assim, tudo indica que a Porsche está à frente de uma nova tendência. O que é realmente irônico, já que o primeiro carro produzido pelo fundador Ferdinand Porsche era um modelo elétrico, o P1, no distante ano de 1898.
ZC