Nos últimos dias, dediquei-me, como sempre, a arrumar álbuns de fotos — algo que faço como moto contínuo — e a pôr ordem em outras coisas. Nos intervalos, em meio às celebrações momescas, como faço todos os anos, torci pelos blocos e escolas de samba Acadêmicos da Netflix, Unidos do Telecine, Gaviões do Now e alguns outros semelhantes. Ou seja, vi alguns filmes e seriados pois ultimamente minha paciência para ler livros vai e vem, ainda que sejam aqueles que procurei durante meses e só agora consegui. Tenho lido em intervalos muito curtos e por pouco tempo, sei lá por quê. Distração e falta de concentração em geral são os maiores motivos — algo que em filmes e seriados é menos grave, embora também tenham me acometido. Tanto que várias vezes volto o filme e às vezes meio capítulo inteiro, pois percebo que não prestei a menor atenção e não sei como os personagens chegaram a determinada situação. Mesmo alguns verdadeiros achados, como o espanhol “Pátria” ou o alemão “Babylon Berlin”, que achei sensacionais.
Dei uma olhada muito por alto nas redes (anti) sociais, mas fiquei uns dias sem ver absolutamente nada e sem sinal e sequer senti falta disso. Mas, em algum momento, um ex-colega jornalista postou o cabeçalho de uma lauda da Gazeta Mercantil e várias lembranças me vieram à mente.
Lauda era o papel que se usava em jornais e revistas para escrever os textos, antes de sua publicação, na época da máquina de escrever. Tinham, caprichosamente, 20 linhas de exatos 70 toques (os atuais espaços, os seja, cada vez que a máquina avançava um espaço) e na parte superior havia uns requadros para marcações feitas à mão que identificavam as editorias, os autores, o tamanho da letra e outras peculiaridades. Como tudo era muito, mas muito tecnológico (sic), cada lauda era literalmente colada na outra sobrepondo-se os cabeçalhos, já que eles só tinham serventia na primeira página da matéria. Nas redações mais modernas usava-se cola em bastão, mas durante muito tempo predominaram os vidros bojudos com goma arábica com pincéis que eram enchidos toda noite pelos contínuos, os faz-tudo da época. Combinava com a antigas máquinas de escrever.
Mantenho algum tipo de contato com a maioria dos meus colegas de redação de todos os lugares em que trabalhei – especialmente os de Economia e, claro, indústria automobilística. Algo bastante raro atualmente, éramos os “setoristas”, jornalistas especializados em algum setor específico. Mesmo dentro da Economia havia os setoristas de Banco Central, por exemplo. Ou os setoristas de Indústria Automobilística — e assim por diante. Claro que todo mundo tinha capacidade e a todo momento éramos chamados a fazer outras coisas. Eu, com muitíssima frequência, era chamada a editar Internacional na Gazeta Mercantil, mesmo quando trabalhava em outros setores, porque tinha experiência na área e pelo meu domínio de outros idiomas. Claro que na hora de uma tragédia, como a queda de um avião ou um plano econômico (o que não deixava de ser uma tragédia) todo mundo ia para a rua e para o telefone fazer de tudo, mas, como disse, no dia a dia, havia setorista para cada assunto.
Durante muitos anos fui setorista de indústria automobilística da Gazeta Mercantil, ou seja, dentro de um jornal econômico. Escrevia sobre lançamento de veículos, mercado de caminhões e ônibus e outras coisas, mas do ponto de vista econômico. Meus textos mencionavam pouco sobre, por exemplo, o tipo de suspensão do carro — e isso apenas se fosse algo muito relevante do ponto de vista tecnológico ou econômico, por exemplo — mas focavam em outros aspectos, especialmente de números. Como já disse aqui outras vezes, nós dizíamos que dentro dos setoristas estavam os que eram “da turma da graxa”, caso do Bob Sharp e do Fernando Calmon, por exemplo. E era a eles a quem perguntava sobre questões técnicas e para quem telefonava quando tinha dúvidas ou mesmo quando não entendia patavinas do que era dito durante a entrevista coletiva do anúncio de um produto. Diga-se de passagem, foi assim que nossa amizade começou, há décadas. Ambos sempre cavalheiros, didáticos e pacientes. Eu sempre gostei de mecânica e me esforçava por entender, mas não tinha os conhecimentos deles – nem perto disso. Nem então nem hoje.
Durante muito tempo as entrevistas coletivas da indústria automobilística eram disputadas pelos jornalistas (foto abertura). Muito bem organizadas, em lugares bons, geralmente acompanhadas de almoço, com fartas informações (os tais “press kits”, as pastas com dados, números, fotos), quase sempre vários diretores à disposição para perguntas de todo tipo… Os assessores de imprensa eram também dos melhores. Ou seja, facilitavam muito a vida de um jornalista (foto de abertura)
Não apenas as entrevistas coletivas. Mesmo as chamadas entrevistas exclusivas valiam a pena. Quando eu ia à sala onde se organizava a saída dos motoristas ou se entregavam os vouchers para os táxis para os repórteres e dizia que tinha entrevista na Scania, na então longínqua São Bernardo do Campo, os motoristas do jornal disputavam entre si quem me levaria. É que eram famosos os restaurantes para os funcionários da empresa. Eu mesma fazia questão de almoçar lá e os motoristas do jornal ficavam felicíssimos. Nunca, em sei lá quantos anos, tive que ir à Scania de táxi. Já a outros lugares…
O anônimo
A Anfavea fazia almoços mensais em que anunciava seus números. Eram muitíssimo aguardados por toda a imprensa. Sempre em restaurantes muito bons (não necessariamente de superluxo) e na véspera publicava-se uma notinha nos jornais com o horário e o endereço. Nessas coletivas, especialmente nas da Anfavea, comparecíamos sempre os mesmos setoristas. E sempre um sinhozinho que ia com um terno e uma gravata que já haviam visto tempos melhores, mas que tinham uma certa galhardia e que carregava uma pasta da qual nunca tirou nada. Não lembro do nome dele e sinceramente não sei se o soube alguma vez. Nenhum colega o conhecia, assim como nenhum assessor de imprensa. Na verdade, todos sabíamos que ele não era jornalista e nunca fora. Ele sempre chegava, assinava alguma coisa no livro de presença, pegava respeitosamente o press kit e permanecia muito discretamente até o final. Nunca perguntava nada, comportava-se muito bem, não exagerava na bebida — enfim, saía tão discretamente quanto havia chegado. Mas sempre longe de todos, como se realmente não quisesse se enturmar.
Era tratado com muitíssimo respeito por todos. E todos fingíamos que era um colega. Ele acenava para cada um de nós quando chegava e nós devolvíamos o aceno. O mesmo faziam os executivos, que provavelmente participavam da cena, pois era uma época em que conheciam a cada um de nós pelo nome.
Toda vez que uma coletiva de um fabricante era anunciada num jornal e não era muito longe do centro ou da Av. Paulista, aparecia o sinhozinho. Uma vez, faltou a uma da Anfavea. Esperamos por ele o almoço inteiro e nada. Na hora da sobremesa já estávamos tentando descobrir como fazer para saber o que teria acontecido com ele. Pensamos em fazer uma força-tarefa. Estaria doente? Se sim, precisaria de alguma coisa? Nem o nome sabíamos… deu um certo remorso. Uma semana depois, em outra entrevista, lá estava ele. Respiramos aliviados mas, mesmo assim, preferimos continuar acenando e agindo como se fosse um colega conhecido. Achamos que seria mais digno. Até hoje acho que a decisão foi a melhor e a menos constrangedora para ele.
Em algum momento, nós setoristas e ele seguimos caminhos diferentes. Infelizmente, não sei se hoje haveria espaço para uma pessoa assim. Receio que seria tratado como bicão ou penetra e certamente exigiriam identificação e crachá do jornal ou site. Para nós, era apenas um sinhozinho talvez solitário, talvez sem tantas posses, talvez alguém que tivera uma boa educação, pois se comportava impecavelmente à mesa, mas não podia mais frequentar esses lugares. Não sei. Mas fico feliz por ele ter podido frequentar, ainda que esporadicamente, lugares assim e ter sido tão respeitado por todos. Se a vida não lhe sorriu tanto, pelo menos nós sim.
Mudando de assunto: Parecem memes, mas são notícias verídicas e não há nada de errado com os títulos. No Brasil, a realidade supera a ficção, fácil, fácil.