Claro, já tenho idade para que meu hobby mais emocionante seja desejar bom-dia em grupos de WhatsApp às 6 horas da manhã. Mas, não. Sempre escolho arrumar encrencas. Uma das mais recentes, depois de vender minhas três picapes (veja Socorro!!! Minhas picapes me traíram) foi procurar outra picape. Minha vida com os cacos velhos fica muito complicada sem uma caçamba para levar cacarecos. Assim, abri mais um capítulo na minha já longa história que se enquadra na filosofia tibetana com a máxima: “Você vê as pingas que eu tomo, mas não vê os tombos que eu levo”. Depois de um trabalhão para achar um carro que merece ser restaurado, trocar metade dos componentes do veículo e deixá-lo impecável, sempre aparece alguém com a clássica frase: “Você dá uma sorte com carro usado… sempre acha um maravilhoso.” O que é seguido de uma oferta ridícula (“é quase tabela Fipe”), pensando que um caco velho inteiro e saudável se acha na padaria da esquina.
Comecei a procura assuntando o mercado e vendo as Fiat Strada, sempre cabine simples. Aí, aquela divisão teórica dos fabricantes entre os consumidores Work e Play fica evidente na pratica, diferenciando facilmente as picapes que caíram na vida a trabalho e aquelas que se dedicaram ao transporte pessoal e lazer. Praticamente todas as Strada que vi bastava olhar o assoalho da caçamba para ver as marcas dos bujões de gás que transportaram por milhares de lentos quilômetros. Outras, se gritasse “Pamonha de Piracicaba” ou “30 ovo por 15 reau” elas saiam correndo atrás de você.
Além da busca online, fui inclusive no AutoShow, acredito que a maior feira de carros usados do Brasil, em São Paulo, que agora se realiza aos domingos no Expo Center Norte. Com milhares de carros em oferta, o mercado e os preços praticamente desfilam na sua frente.
Nada de achar uma Strada legal. Até encontrei uma picape Fiorino (antecessora da Strada, um Uno com caçamba) bem bonitinha, conservada, com todos os adesivos decorativos que a tornavam uma versão mais interessante. Mas, aquele motor Fiasa 1,5 está fora de cogitação. Mesmo naquela Fiorino já injetada, o que amansou um pouco seu funcionamento, é um contraexemplo daquilo que gosto. Seus pistões não têm curso, têm uma viagem. Traz um ótimo torque e potência em baixa rotação, mas a partir das 3.000 rpm sofre de Parkinson. Até suas obturações tremem. E esse 1,5 bebe mais que o Zeca Pagodinho. Mesmo atraído pela picapinha, desisti. Não estavam nos meus planos comprar e já fazer um swap, uma troca por um motor mais liso e girador.
Resolvi procurar uma picape Corsa, por um motivo simples. Gosto do Corsa, nunca tive um, mas tive vários. Explico: meus dois filhos tiveram vários (hatch duas e quatro portas, wagon) e até comprei um hatch quatro-portas 1,6 para minha sogra, o Pretinho. Ela sempre lacrimejava, com mais de 90 anos, em frente ao Pretinho: “Meu último carro”. E realmente foi. Depois de muito uso, uma multa a 120 km/h em uma pacata avenida paulistana e o seguro ter se recusado a renovar a apólice, fizemos uma longa reunião familiar de “intervenção” com a sogra. O Corsa Pretinho passou para meu filho mais novo, na época um “cupim de ferro, com o compromisso de levar a avó pelo menos umas três vezes por semana onde ela quisesse. O Pretinho era um Corsinha sempre novo: todo mês ganhava um novo capô, ou para-lama, ou porta, devido as manobras da senhora nonagenária. Depois que minha sogra faleceu, o Pretinho continuou na família uns bons anos, aguentando todo tipo de castigo.
Minha melhor e maior experiência com um Corsa foi no final dos anos 1990, quando descobri que a GM pretendia trazer um motor 1,0 Opel (na época o braço alemão da GM), de três cilindros e fazê-lo no Brasil. Fui à Europa a trabalho, minha esposa foi em seguida, e peguei um Corsinha três-cilindros (não lembro se era 1,0 ou 1,2) em Rüsselsheim, a sede alemã da Opel. Rodamos umas duas semanas e milhares de quilômetros. Grudava o Corsinha na traseira de carros maiores nas Autobahnen, pegando vácuo para desespero do alemão à frente que via pelo retrovisor um Corsinha “dentro” de seu porta-malas, e cruzava a 180 km/h (até mais com o vento a favor) como se isso fosse normal. Atravessei os Alpes duas vezes com o pé embaixo e o sem-vergonha do carrinho ainda fazia 16/17 km/litro, branqueando a saída do escape, o que jamais acontece com a “gasolina” brasileira. O motor três-cilindros acabou demorando décadas para chegar por aqui, mas ficaram as lembranças de férias memoráveis com o Opelzinho.
Resolvi: vamos de picape Corsa. Chega de andar no Corsa alheio.
Preço muuiiiito variável
Além de achar essa picapinha gostosa de dirigir, afinal é um Corsa com caçamba, seu porte compacto (comprimento de 4.100 mm) facilita rodar na cidade. O baixo peso, de 950 kg, ajuda na economia de combustível e os 600 kg de carga máxima atendem bem minhas necessidades de levar tralhas. Gosto também do motor (1,6 de 8 válvulas com 92 cv a 5.600 rpm com injeção multiponto), até mais que seu irmão de 16 válvulas, usado no Corsa GSi e na Wagon. Ele tem torque máximo em baixa rotação (13 m·kgf a apenas 2.600 rpm), mas também gosta de girar alto para cruzar rápido. Foi fabricada entre 1995 e 2003 com poucas alterações.
Sua maior limitação está no comprimento da caçamba (pouco mais de 1,50 m com o protetor de caçamba), o que complica para levar motos maiores, obrigando a deixar a tampa semiaberta ou aberta. E a placa de licença fica exatamente na tampa e precisa ser visível por lei.
Outros pontos positivos estão em ser um projeto brasileiro (baseado no Corsa, nos bons tempos que a GM trazia para cá as criações alemãs) e contar com dois consultores muito exclusivos. Morram de inveja pessoal mal relacionado: para ajudar na restauração, contei com o amigo Gerson Borini, que participou do projeto da picapinha quando estava na GM, e também do Bob Sharp, outro que também estava na GM naquela época.
Pois bem. Os preços eram muito malucos, nem sempre diretamente relacionados com o estado da Corsinha: variavam de R$ 8 a 18/20 mil, com picos de até R$ 30 mil. Cheguei a ver uma que pediam R$ 32 mil, acho que era uma 2002, e pelo estado realmente valeria isso. Claro que o Tio Velho Chato já achou um monte de coisas para fazer, mas o maior empecilho era um certo excesso de equipamentos, vários deles um pouco over (bregas mesmo) para o meu gosto.
Não se assuste com esta variação de valores: se você compra um usadinho por R$ 10 mil, liso e “bom de lata” que vale um investimento, e tem de fazer o motor e a pintura, já gasta mais que o preço pago pelo carro. E nunca é só isso: sempre tem muito mais fazer, pois a manutenção foi negligenciada ou mal feita em algum período da vida do carrinho. Depois de ver muito lixo fotogênico (lindo na foto e fezes ao vivo) achei uma Corsinha GL 1998, muito simpática nas fotos e em Tatuí, pouco mais de três quilômetros da oficina do amigo Renato, claro que o seu destino inicial. Juro que ela até sorriu para mim nas fotos, com aquela cara de cachorro que quer seu sanduíche e com uma expressão de “me tira dessa fria”.
Aí entra a ªLei do Karma” do budismo ou hinduísmo: “Se você é maluco, o que mais vai encontrar na vida são malucos”. Liguei para o vendedor que disse que a picapinha estava parada há quatro anos e praticamente vendida para um amigo. “OK, se não der certo, me liga que vou ver a encrenca”. Continuei vendo picapes à beira de um merecido ferro-velho onde, além de serem ecologicamente recicladas, ainda vão ajudar muitas irmãs sobreviventes a continuarem rodando com uma certa dignidade. Muito prego que você já bateu já foi um teto de Opala e muito parafuso apertado no passado foi um para-lama de Fusca. Graças aos ferros-velhos.
Só achava porcaria, lasanhas no seu sentido original (devido ao seu excesso de massa) e seu peso devia continuar o mesmo: perderam muito pedaços pela vida, mas ganharam peso devido as dezenas de latas de massa plástica mal escondidas por uma pintura porca.
Vale um parênteses: durante a procura ia me informando mais sobre a picapinha. Eram dois carros em termos de custo. Da frente até o final das portas é um Corsa, com peças fáceis e baratas. Da porta para trás é um carro de luxo, com componentes bem caros e difíceis de achar. Dois exemplos: o para-choque dianteiro é Corsa e por R$ 100 já se acha um paralelinho novo bem legal. Já o para-choque traseiro é exclusivo da picape e só se encontra usado e remendado a partir de R$ 1.500. O mesmo ocorre com os frisos dos para-lamas: dianteiros paralelos novos por R$ 80. Já os frisos traseiros do para-lama, exclusivos da picape, custam cerca de R$ 500 cada e ainda por cima usados. A tampa da caçamba então, melhor tirar e guardar.
Depois de mais de um mês, me ligam: “Você não vem ver a picapinha?”. “Até vou, mas… quem é você? Era o dono da Corsinha de Tatuí. Como as fotos da picapinha 1998 eram meio misteriosas, só detalhes, o melhor era ver ao vivo.
Chego lá, a picape jogada em um canto da garagem ganhava um banho rápido mensal, mas a bicicleta velha, ração de cachorro e vassouras na caçamba comprovavam os quatro anos parada.
“Acho que vai um pouco de trabalho para funcionar, mas ela pegava fácil”. “Você trocou a bateria? ”. “Não acho que é só dar uma carga”. Gente, aquela bateria já tinha recebido a extrema unção há anos. Abri a tampa do tanque e vinha aquele cheiro de plástico velho, denunciando que a pouca gasolina já tinha evaporado antes do Temer assumir a presidência. Chacoalhava o carrinho e não vinha nenhum barulho de liquido do tanque. Pneus com umas 5/6 libras, barrigudos.
O vendedor coçou a cabeça, me olhou… “volta amanhã”. Vou carregar a bateria, arrumar gasolina e encher os pneus com o compressorzinho elétrico (aquele que se liga no acendedor de cigarros ou tomada 12 V)
“Volto”. E juro que a Corsinha, “lisa de lata” embaixo da sujeira e abandono, piscou para mim pelo seu farol embaçado. Acho que a procura terminou.
JS