Como sempre aviso, gosto muito de atender pedidos de leitores. Costumo demorar um pouco, é verdade, mas no geral consigo. Hoje vou abordar uma história muito interessante, solicitada por Hernán Saavedra, um dos meus leitores mais fiéis e certamente um dos mais rápidos. Ele vai de 0 a 100 em poucos segundos e consegue ler minhas postagens apenas são publicadas e, com alguma frequência, comenta.
A ideia é ótima: falar sobre a única mulher que venceu uma corrida ao volante de um carro de Fórmula 1. E não poderia ser mais oportuna, pois daqui a poucos dias, no dia 7 de abril, completam-se 41 anos do feito.
Como devota da Nossa Senhora da Interpretação de Textos que sou, já começo a minha novena para pedir à santa que ilumine àqueles que pouco ou nunca antes frequentaram este espaço. Sei que meus seguidores contumazes, assim como a maioria dos leitores, entenderá o que escrevo, mas como já passei por situações em que isto não aconteceu, lá vou eu rezar a novena milagrosa. Mas, por via das dúvidas, vamos aos disclêimeres:
- Esta coluna não é sobre a primeira mulher a correr na Fórmula 1. Esta é apenas uma coluna sobre um (outro) registro histórico.
- Esta coluna é sobre a única mulher a ganhar uma corrida dirigindo um carro de Fórmula 1 até agora. Isto pode mudar a qualquer momento. Esta é apenas uma coluna sobre um registro histórico.
- Esta coluna não é sobre quem dirige melhor, homem, mulher, trans, cis, L, G, B, T, Q, ou +. Esta é apenas uma coluna sobre um registro histórico.
- Esta coluna não é sobre presença de mulheres na Fórmula 1, se são poucas, muitas ou por quê. Esta é apenas uma coluna sobre um registro histórico.
- Nenhuma mulher foi subestimada, ferida em sua dignidade ou de qualquer outra maneira para a pesquisa e redação deste texto. Esta é apenas uma coluna sobre um registro histórico.
Certamente faltarão disclêimeres e pode ser que ainda encontre por aí alguma pedra no meu caminho, mas vamos ao registro histórico, pouco conhecido do público em geral e que vale pelo fato e pelas circunstâncias em que ocorreu.
Lá pelos idos de 1980, exatamente no dia 7 de abril, a piloto sul-africana Desiré Wilson ganhou uma corrida no circuito de Brands Hatch, numa etapa da versão britânica da F-1, a British Aurora. Durante décadas, além de algumas provas que não contavam pontos para os campeonatos de pilotos nem o de construtores, a Fórmula 1 teve edições regionais, paralelas ao Mundial. De 1960 a 1986 houve algumas na África do Sul e entre 1978 e 1980 e, posteriormente, em 1982, ocorreram algumas provas na Inglaterra.
Aqui vale a observação: os carros não eram exatamente aqueles usados nas provas que contavam pontos — geralmente, corria-se com algum modelo mais antigo, mas, ainda assim, eram carros de Fórmula 1. Entre os modelos que competiram nessas provas houve alguns Lotus, como os 72 e 72D, que chegaram a ganhar o título de 1972 e o vice-campeonato de 1973, ambos com Emerson Fittipaldi ao volante. A Williams também usou carros como o FW07, que havia dado à escuderia o título de construtores de 1980, com seu piloto, o australiano Alan Jones, sagrando-se campeão mundial, e no ano seguinte conquistando novamente o título de construtores. Foi nesse mesmo ano que Nelson Piquet (Brabham BT49C) ganhou seu primeiro título mundial. Competiram nessas provas o Brabham-Repco BT20, que havia vencido os campeonatos de 1966 e 1967 com Jack Brabham e Denny Hulme na condução dos veículos. Também se apresentou o McLaren M23, vencedor de título de 1974 e o vice de 1975, ambos com Emerson Fittipaldi. Desiré venceu em Brands Hatch ao volante de um Wolf WR4. Por coincidência (ou não) o também sul-africano Jody Scheckter havia vencido três provas da temporada de 1977 da F-1 e terminando aquele ano como vice-campeão com aquele carro.
É claro que não havia apenas carros vencedores de títulos, mas vários ganharam muitas provas, como o Melchester Tyrrell 008 , que chegou em primeiro lugar em Mônaco em 1978 com Patrick Depailler e outros que não ganharam prova alguma, mas que tem seu valor histórico, como alguns modelos da Ensign, Cooper e da brasileira Fittipaldi.
Para quem não reconhece o nome de Desiré Wilson, ela nunca chegou a ser realmente famosa na Fórmula 1, mas não era totalmente inexperiente. Havia começado a correr na antiga F-Vee sul-africana aos 19 anos e, logo em sua primeira temporada, ficou em quarto lugar. Nada mau, não? Em 1974 ficou em segundo e em 1975 e 1976 foi campeã. Da F-Vee foi disputar os campeonatos britânico e holandês de F-2000 e alcançou um terceiro lugar na temporada.
Em 1980, já na Fórmula 1, Desiré correu em 6 das 12 provas do campeonato Aurora de F-1. Além de vencer em Brands Hatch, como visto acima, chegou ao segundo lugar em Thruxton, e ao terceiro em Mallory Park. Em 1979, a sul-africana havia subido quatro vezes no pódio e marcara pontos em 9 das 15 etapas daquela temporada.
A vitória em Brands Hatch credenciou Desiré a disputar o GP da Inglaterra da F-1 mundial, em julho daquele mesmo ano, mas não teve um bom desempenho — não se classificou para largar — ao volante de um Williams FW07, correndo por uma equipe satélite. Ironicamente, a prova foi vencida pelo australiano Alan Jones com um Williams da equipe oficial, o FW07B, que era uma evolução do carro usado por Desiré.
A sul-africana já tinha a velocidade no DNA. O pai dela, Charles Randall, corria de moto e chegou a ser campeão sul-africano na modalidade. Ela conta que aos cinco anos ganhou do pai o primeiro carro de corrida. O relato consta do seu livro “Driven by Desire”, sem versão em português e que, numa tradução livre seria algo assim como “Dirigida pelo desejo”, com trocadilho entre “desejo” (desire, em inglês e Desiré, desejado, em francês. E vai aí mais uma observação: geralmente o nome Desirée é grafado assim, com dois “e” no final, pois é feminino em francês. Mas não consegui descobrir por que o dela é sem o acento no primeiro “e” e sem o outro “e”).
Se na Fórmula 1 a sul-africana não alcançou tantos títulos ou fama, o mesmo não se pode dizer de outras categorias. Ainda em 1980, Desiré se saiu muitíssimo bem no Mundial de Endurance, antecessor do WEC atual. Correndo ao lado do experiente piloto de provas de longa duração, o francês Alain de Cadenet, Desiré venceu a prova 1000 Quilômetros de Monza e a 6 Horas de Silverstone (foto 4). Eles disputaram as provas com um Lola LM preparado especialmente pelo próprio Cadenet. Deixaram para trás nomes bem mais conhecidos do público em geral, como Vittorio Brambilla, Michelle Alboreto, Henri Pescarolo, Riccardo Patrese, e Eddie Cheever — todos pilotos que disputaram campeonatos de Fórmula 1 com bastante expressividade.
Desiré também disputou provas na Fórmula Indy, porém sem números significativos — seu melhor resultado foi um décimo lugar em Cleveland. Embora tivesse declarado o sonho de correr a 500 Milhas de Indianápolis, não passou na pré-classificação da edição de 1983. Ok, nem ela nem outros 19 pilotos que ficaram de fora do grid de largada naquele ano… Pois é, as 500 Milhas são para poucos.
Mudando de assunto: para quem como eu estava com síndrome de abstinência, a corrida de F-1 no Bahrein, domingo, foi sensacional — prova de que disputa pode ser emocionante sem que haja acidentes sérios ou mesmo espetaculares. Ultrapassagens lindas, disputas de carro lado a lado… teve de tudo. Gostei também da nova emissora, que valorizou a categoria (e a Fórmula 2 também) com várias inserções sobre o assunto ao longo das últimas semanas e várias horas de entrevistas, comentários e imagens excelentes no dia da prova — especialmente antes da largada. Estava cansada de ver apenas a corrida e, assim como os verdadeiros fãs da categoria, queria mais. Agora estamos como na maioria dos países em que se transmite F-1. Aleluia!
NG