Caro leitor ou leitora,
Este é mais um texto do gaúcho “Formula Finesse”, um dos nossos primeiros leitores, que tem colaborado com AE sob forma de impressões ao dirigir de carros de outras décadas. Sua participação mais recente foi há menos de um mês, dirigindo um Chevrolet Opala Diplomata, e agora é é a vez de um Ford Galaxie LTD 1979. Só que desta feita ele não tinha fotos do carro que dirigiu, mas como o texto é ótimo — tenho certeza de que o leitor ou leitora o apreciará —, resolvi publicá-lo, excepcionalmente, lançando mão de fotos ilustrativas obtidas na internet. O carro era igual ao da foto de abertura.
Boa leitura!
Bob Sharp
Editor-chefe
FLUTANDO DE FORD GALAXIE LTD
Quando queremos salientar o luxo ou o silêncio de um automóvel, normalmente sempre proferimos aquela conhecida frase: “parece um Landau”; manifestação bem própria de nós, entusiastas que já têm certa quilometragem (anos) na carcaça.
E isso não quer dizer que a gente seja grande conhecedor in loco desses grandes carros de origem americana, a gente pode até nunca sequer ter entrado em um, mas ouvimos, lemos ou sentimos — apenas no enxergar — que aquele tremendo carrão deve ser uma nuvem para dirigir ou para brincar de chefe de Estado, no amplo banco de trás.
Mas surgindo a oportunidade, por que não conhecer mais intimamente esse carrão, símbolo de poder e status desde o distante ano de 1967, e que teve seu fim muito lamentado aí pelo final de 1983? Vamos conhecer um pouco a mística desse carro tão importante na figura de um impecável Ford LTD 1979, na belíssima cor bronze Apolo, com caixa manual de três marchas com alavanca na coluna.
Por dentro
A porta do motorista é relativamente curta e pesada, mostrando no primeiro contato que vamos lidar com um verdadeiro colosso automobilístico. Assim que sentamos nele surge uma certa surpresa, por incrível que pareça, o grande Ford não é todo aquele latifúndio que nos convencemos a imaginar, ao menos no sentido horizontal — claro, ele é bem largo e os dois bancos inteiriços não apresentam obstáculos para acomodar três pessoas grandes confortavelmente. Mas o espaço para joelhos e pés (do banco traseiro) não tem nada de exagerado. Apesar das amplas dimensões externas; o carro têm muito capô e porta-malas, seu entre eixos é longo (3.020 mm), mas o espaço para pernas é similar a carros atuais muito menos cotados, os joelhos não ficam longe de roçar no encosto do sofá dianteiro. A forração interna do teto preta “fecha” ainda mais o ambiente; mas isso não é uma crítica, pensem num bunker aconchegante e que te faz desejar não mais sair dali. Imagine-se um astro do rock e peça um espumante gelado, ou o jornal e os relatórios financeiros diários caso queira brincar de capitão da indústria.
No posto do motorista, o felizardo que estiver ali e tiver talhe médio (cerca de 1,80 m), vai se sentir como um bebê no útero materno — não é preciso ajustar nada, o volante de quatro raios “cai as mãos” de forma muito natural, ameaçando roçar de leve as pernas por causa do generoso diâmetro dele, e a alavanca do câmbio manual não exigirá que descole as costas do banco, que apesar da aparência de coisa mole e desajeitada, têm uma espuma densa, consistente, que não te deixa afundar até quase tocar o assoalho.
Duas coisas já antecipam um pouco o espírito do carro antes mesmo de colocá-lo em movimento: a direção de aro fino e a haste da alavanca, igualmente delicada, tudo o que as mãos vão operar são instrumentos que já dão a impressão de leveza, de refinamento, quase um contraponto ao exterior grande e pesado do LTD.
Painel com os mostradores horizontalizados na frente, com um grande hiato entre os marcadores 180 e 210 km/h (para bom entendedor…) e detalhes bem peculiares no acabamento. A ventarola, ou quebra-vento, por exemplo, é movimentada por uma manivela parecida com a que opera os vidros, um pequeno requinte que mostrava exatamente o cuidado e o luxo desse Ford.
Dirigindo
Hora de acionar a chave no meio do painel, ouvir a troada do motor e partir como um príncipe…. O dono do carro o tinha deixado engrenado em terceira marcha, e para o neófito aqui, ficava complicado distinguir a primeira e a terceira do lado de cá do volante. Deixei o carro morrer duas vezes e finalmente fui buscar a primeira, só que — nada anormal nesse tipo de comando de câmbio — consegui travar completamente a alavanca, ela não saía da terceira, não vinha para a primeira e não subia para a posição de segunda, nem em ponto-morto… Envergonhadíssimo e preocupado, desci do carro com a cara no chão e deixei o dono assumir a bronca.
Após alguns segundos de labuta com a alavanca (“Em primeira ele costuma fazer isso”) — ele botou a alavanca em ordem e lá fui eu de novo, de coração na mão esperando não quebrar o carro do amigo.
Mas dali em diante, o filme de terror virou um romance dourado entre eu e o carro, o LTD perdoou-me e começou a aceitar as minhas primeiras trocas: primeirinha esticada, debreada (o pedal é pesado) e a segunda marcha entrando como faca quente na manteiga, a fina alavanca sendo conduzida para frente e para cima, a terceira entrando logo depois puxando delicadamente a haste para baixo. O manejo é bem leve, o braço faz movimentos amplos para cambiar, pausa brevíssima em ponto morto antes de engrenar a próxima marcha e vamos adiante.
Pegamos a estrada e o Landau começou a mostrar toda sua pompa e glória ao longo de várias dezenas de quilômetros, fui me acostumando ao carro e deixando ele se acostumar comigo (como diria JLV da saudosa Motor 3), o fluxo de potência que vinha do grande motor de oito cilindros era constante e sem interrupções, os pistões pareciam revestidos de veludo tal a maciez na operação, a energia gerada era enviada para o diferencial lá atrás em absoluto silêncio e com total ausência de vibrações, claro que o motor se fazia ouvir ao esticá-lo um pouco mais, mas o seu funcionamento global era irrepreensível para um carro tão “velho”.
E assim o 5-litros (4.942 cm³) até pode estar amordaçado por uma carburação razoavelmente pobre e por mais de 1.750 kg de massa (quando totalmente vazio) — mas ele responde com autoridade quando se pressiona o pedal com vontade, seguir o fluxo normal em rodovias de topografia acidentada não são desafios reais para o carro, ele consegue ganhar velocidade em longas subidas e vai no ritmo de carros bem mais jovens e leves. Tanto no posto do motorista como no do carona, a gente percebe retomadas sólidas de velocidade, toda aquela massa ganhando vida quando o pedal era bem apertado, os seus 135 cv líquidos (199 cv brutos) parecem estar todos ali. A gente precisa lembrar que seu estilo clássico e suas dimensões titânicas não eram obstáculos para algumas demonstrações atléticas no seu tempo: ele dava mais de 160 km/h reais na pequena pista da Quatro Rodas (mais de 171 km/h na Motor 3) — e nas melhores medições, pouco mais de 12 segundos eram consumidos até 100 km/h. Ou seja, em linha reta andava até mais que os Passat TS da época, e ficava pouco atrás do Opala automático de seis cilindros.
Não passei dos 120 km/h por respeito aos mais velhos, mas ele tinha ímpeto para ir bem além, acredito que 160 km/h indicados são facilmente alcançados em qualquer boa reta, mesmo após de décadas de serviço desse V-8. Mas velocidade nunca foi a sua proposta, no entanto, é bom saber que o grande motor não é apenas civilidade e alto consumo, mas força tangível também. Coloque a terceira marcha e esqueça da vida — por várias vezes atrás de uma fila de carros, a velocidade caia dramaticamente, quando a mão “pensava” em buscar a segunda, o pé já tinha pedido potência ao motor, e este voltava a empurrar o carro sem hesitações ou falhas na carburação, que só protestava um pouco quando se tirava o pé do acelerador rápido em ritmos um pouco mais fortes.
Nas retas, subidas e descidas tudo bem então, mas e nas curvas, como é maneabilidade de um carro desse tamanho e peso? Bem, nessa seara não há novidades, a suspensão cede ao peso do carro, a carroceria inclina, mas a adesão dos pneus ao asfalto continua incorruptível, quanto mais fechada a curva de serra, mais o Landau tende a se apoiar nos pisantes. Naturalmente que não puxei 70/80% do limite do carro nessas condições, eu não gostaria de ter um caroneiro homem escorregando para o meu lado nas curvas, e abusar de um LTD em traçado sinuoso é algo meio sem sentido, antinatural.
Calçamento e lombadas na cidade são solenemente ignorados, seu molejo macio das molas helicoidais nos isola dos pisos ruins, mas é preciso diminuir bem a velocidade em obstáculos viários um pouco mais altos, ele pode encostar a ponta do “spoiler” ou assoalho nessas pragas, seu peso elevado contribui para isso.
Mas o “problema” não é sua suspensão, na verdade, sua hipermacia e aliviada direção hidráulica é o que mais exige atenção em condução rodoviária. Imagine uma direção elétrica atual na cidade, é leve. não é? Agora pense nela pelo menos uma vez e meia mais solta, desprovida de qualquer atrito, e a transplante para velocidades de estrada comandando agora um carro enorme, que ocupa toda a sua faixa de rodagem. No começo, nem pense em espirrar quando estiver ao volante, não faça movimentos bruscos, deixe as mãos na direção e vá tateando a fina sensibilidade dela, o que ela te diz sobre os pneus da frente do carro. É quase uma experiência exótica, como se não existisse ligação física com o eixo da frente, mas isso significa folga como uma Kombi? Não, de modo algum, não existe folga, apenas hipersensibilidade no toque. No girar da peça a frente do carro vai sempre te obedecer, você precisa só ser um motorista tranquilo e não displicente para a condução não sair quadrada, com o carro reagindo de forma errática por excesso de comando na direção.
Naturalmente que com tempo e quilometragem, a leveza excessiva da direção deixa de exigir atenção especial, a cautela vai sendo substituída por franca satisfação. É apenas questão de costume, e se acostumar com coisa boa é bem fácil.
Se você ajustar sua sensibilidade com a do carro, não vai querer dirigir outra coisa por um bom tempo, ele parece que vai “perdendo tamanho”, ficando cada vez mais dócil e delicado apesar das grandes dimensões, e até dentro da cidade; mão esquerda virando o volante zero-esforço e a direita manipulando o câmbio com a elegância e o costume de um maestro operando sua batuta.
Esqueci algo? Ah, acho que não, o LTD é uma experiência inesquecível, carrão à moda antiga, gostoso de guiar e que te torna um motorista mais relaxado (menos estressado) e civilizado, ele te isola do sujo e barulhento mundo exterior como seu público alvo assim o exigia tantas décadas atrás, e certamente é uma das melhores coisas sobre rodas que já foram fabricadas por aqui.
Formula Finesse
Bento Gonçalves – RS