Minha última coluna mostrou como as novas tecnologias estão prestes a mudar o design dos carros como nunca vimos nos últimos 100 anos. Alguns leitores, no entanto, não concordaram: como isso é possível se os automóveis que vemos nas ruas estão cada vez mais parecidos entre si?
Eles estão certos — assim como o artigo também. Afinal, a indústria automobilística estar às vésperas de uma grande revolução estética não anula o fato de que a esmagadora maioria dos veículos que habitam nossas cidades ainda compartilham da mesmice visual que nos cansamos de ver.
Saiba que a culpa não é da falta de criatividade dos projetistas, pelo menos não da maneira que todos imaginam. Designers de automóveis são obrigados a trabalhar com tantas restrições que muitas vezes são mais executores de ordens do que livres criadores.
Para ser mais preciso, há quatro razões que acabam direcionando o estilo de um novo carro para a vala comum da monotonia estética.
Pressão aerodinâmica
Certa vez o designer Ian Callum (ex-Jaguar) disse que se você medisse a traseira de todos os sedãs num estacionamento descobriria que a diferença entre eles não seria mais que 1 polegada (2,5 cm). “Os carros hoje são projetados em túnel de vento, por isso não variam muito”, explicou.
A partir dos anos 1970, com a crise do petróleo, os fabricantes passaram a se preocupar em criar formas mais aerodinâmicas. Primeiro pressionados pelo desejo dos consumidores por veículos mais econômicos, depois pelas leis antipoluição cada vez mais rígidas.
Com isso, os para-brisas ficaram mais inclinados, os tetos mais baixos, os porta-malas mais altos e as carrocerias mais lisas, sem apêndices ou volumes que não fossem funcionais. A beleza começou a ficar em segundo plano.
Segurança em primeiro lugar
Não bastasse a ditadura do túnel de vento, há ainda as exigências técnicas de segurança, seja para se adequar à legislação vigente, seja para almejar as cinco estrelas nos testes de colisão, que servem como publicidade extra na hora da venda.
A fim de suportar impactos laterais, as portas estão mais altas e mais espessas, para acomodar reforços internos. O risco de atropelamento elevou a altura dos capôs, enquanto a área dos vidros encolheu e as colunas ficaram mais largas, para resistir melhor às capotagens. A elegância dos Dodge Dart e Chevrolet Opala sem as colunas centrais dos anos 1970 seria impensável nos dias de hoje.
Porém não acaba por aí. Os projetistas precisam desenhar uma carroceria que se enquadre nas regras de TODOS os países do mundo nos quais o modelo será vendido. Alguns mercados exigem faróis colocados em determinada altura, outros regulam a disposição das luzes na traseira. Cada nova lei que surge em um mercado precisa ser incorporada ao desenvolvimento do próximo projeto. Com o tempo, essa padronização global tornou-se uma camisa de força para os designers.
O fantasma dos custos
Quando o fabricante inicia o desenvolvimento de um novo automóvel, seu orçamento já nasce comprometido porque, antes de agradar ao público que vai comprá-lo, ele deve se adequar ao país que vai vendê-lo.
Todas essas exigências legais de que falamos acima acrescentadas à necessidade de incorporar equipamentos que se tornaram uma obrigação mercadológica (ar-condicionado, câmbio automático, central multimídia, etc.) deixam pouca margem para abusar nos custos.
Como consequência, fabricantes buscam desesperadamente compartilhar o máximo de componentes entre diferentes modelos da sua linha: plataforma, motores, painéis, peças de carroceria ou faróis. Vale até dividir seu projeto com a concorrência, como fizeram com as picapes Mercedes Classe X, Renault Alaskan e Nissan Frontier. Tudo em prol da redução do custo de desenvolvimento. Portanto, não deveria ser surpresa vermos carros de marcas diferentes cada vez mais parecidos entre si.
Como os novos projetos são bilionários e o risco de errar no design pode enterrar suas vendas por ao menos quatro anos (ciclo de desenvolvimento normal de um carro), as grandes empresas preferem não arriscar. Elas vão para a zona de conforto, com desenhos que podem não empolgar, porém não oferecem o perigo de desagradar muita gente. Ou seja, a mediocridade é premiada na maior parte do tempo.
É importante ressaltar que quem tem o poder de aprovação final do desenho de um novo automóvel é o chefe da companhia, não o designer. Lembre-se disso antes de culpar o estilista por um carro sem graça exposto na loja.
É óbvio que modelos de nicho, como esportivos e luxuosos, têm espaço (e orçamento) para ousar mais. Até porque sua margem de lucro é bem maior e seu público é menor e mais homogêneo — não há aqui a gigantesca diversidade de gostos e necessidades a que as marcas generalistas precisam atender.
Tendência ao modismo
Até agora mostramos que os designers não têm culpa em boa parte do que é criado nas fábricas. Mas chegamos a um motivo no qual a responsabilidade é toda deles: estou falando do seu ímpeto de seguir tendências. E já é assim há muito tempo.
Nos anos 50, sob influência de Hollywood, os foguetes e aviões militares estavam na moda, e a indústria automobilística aproveitou-se disso. Talvez o expoente máximo dessa corrente estilística seja o Cadillac 1959 (foto de abertura): sua traseira (chamada rabo-de-peixe) exibe duas enormes asas, as lanternas remetem a mísseis e o para-choque simula motores do foguete.
Essa mania de seguir estilos de sucesso não mudou até hoje. Entre a década de 1970 e 1980, vieram carrocerias mais quadradas e ângulos mais retos. Nos anos 2010, a primeira geração do Land Rover Evoque deu origem a uma legião de seguidores, que copiaram seus faróis afilados, tetos rebaixados e colunas pintadas de preto. Até o mercado brasileiro criou seus modismos, quando os aventureiros urbanos dominaram a cena nos anos 2000 com seus quebra-matos e estepes pendurados na traseira.
Nem vou explicar aqui em detalhes a praga da “family face”, recurso de marketing para fazer todos os carros de uma empresa terem a mesma cara. Os executivos dizem que é para criar uma identidade visual única e fazer o grande público reconhecer melhor o fabricante. Mas algumas marcas abusaram tanto do artifício que criaram apenas clones em tamanhos diferentes.
Some-se a tudo isso uma característica interessante dos designers: eles pertencem a um clube exclusivo e muito particular. Eles frequentam as mesmas escolas de arte, trocam informações entre si, visitam os mesmos salões de automóvel (ao menos antes da pandemia) e viajam o mundo atrás de novas referências visuais em áreas como moda, arquitetura e até produtos eletrônicos.
Se pensarmos bem, com tantas restrições de segurança, aerodinâmica, custos e tendências, é quase um milagre que algumas marcas ainda consigam lançar carros com um desenho de encher os olhos.
ZC