Cá estou eu mais uma vez atendendo ao pedido de um leitor — e mais uma vez, com enorme prazer. Desta vez, o Cristiano sugeriu um ótimo assunto — na verdade, não sei como não lembrei dele antes, logo eu…
Depois de ter discorrido neste espaço sobre a Fórmula 1 sul-africana (ainda que não com tantos detalhes) e a britânica chegou a vez de falar de uma categoria autenticamente sul-americana. É fato que a Argentina não sedia um grande prêmio de F-1 desde 1998 (embora tenha havido muitas outras interrupções desde o primeiro GP, em 1953, o que faz com que tenham sido disputados somente 21 provas lá) e não tem um piloto no grid desde 2001, com Gastón Mazzacane, que terminou o campeonato com zero ponto. Campeão argentino? O último foi Juan Manuel Fangio, no longínquo 1957, ainda que tenha sido cinco vezes. Vitória? A última foi de Carlos Reutemann, em 1981, em Zolder. Mas isso não arrefeceu nem um pouco o autoentusiasmo dos meus patrícios. Ao contrário, é um dos países onde o automobilismo (e o motociclismo, diga-se de passagem) tem maior quantidade de adeptos.
Bem, vamos lá, então. Entre 1963 e 1979 a Argentina, de fato, sediou o campeonato de Fórmula 1 Argentina, conhecido como Fórmula 1 Mecánica Argentina, embora tenha havido algumas interrupções, como nos anos 1965 e 1975 quando não houve campeonato. Podiam competir carros monoposto nacionais com motores de 3 a 4 litros. Estavam homologados modelos Chevrolet 230 (3,8 litros e 250 (4,1 litros), Ford 221 (3,6 litros), Dodge Slant-Six 225 (3,7 litros) e Tornado Interceptor 3,8-litros (pessoalmente adoro esse nome. Tem um quê de Mad Max, não?). O estilo, claro, era o da F-1 e o regulamento estava baseado no dos campeonatos de Fórmula Livre e da Fuerza Limitada, assim como os da F-1 sul-africana e da F-1 britânica.
E aqui vai minha primeira digressão, para não variar: na Fórmula Livre e na Fuerza Limitada argentinas correram grandes nomes do automobilismo argentino como Juan Manuel Fangio e José Froilán González, ambos também pilotos da Fórmula 1.
Como sói acontecer, o campeonato nacional acabou por questão de custos — os carros ficaram muito caros e os circuitos, no país todo, obrigavam a caros deslocamentos de toda a equipe. Assim, na prática, a F-1 Argentina virou a Fórmula 2 Nacional, consideravelmente menos dispendiosa devido a modelos mais, digamos, simples.
Em 1985 a categoria F-1 Mecánica Argentina foi relançada e até hoje continua sendo disputada, mas apenas regionalmente, sob as regras da Asociación Mecánica Argentina Fórmula 1. Mesmo assim, houve interrupções por problemas de todo tipo e não houve campeonato nos anos de 1991, 1992, 1993, 2002, 2004, 2997, 2008 e 2009. As provas ocorreram somente em circuitos na província de Buenos Aires com protótipos tipo F-1, mas sempre com mecânica total e exclusivamente argentina. São carros que lembram bastante os modelos de F-1 da década de 1980 e usam motores de 6 cilindros e até 4 litros.
Provavelmente o nome mais conhecido na categoria tenha sido o do piloto Orlando Sotro — não apenas por ter sido seis vezes campeão da categoria, mas especialmente por ter conseguido seu último título em 2011, quando tinha — sim, é isso mesmo — 80 anos de idade. Ele correu até 2013 e morreu em 2014, com mais de 50 anos de carreira e o título de piloto mais velho do automobilismo mundial em qualquer categoria. Não por nada o apelido dele era “El abuelo” (o avô)( foto 2). Outra peculiaridade de Sotro era que não raramente ele desenhava e fabricava integralmente os próprios carros com os quais corria, como foi o caso do Ford Falcon com que competiu em 1966. Seu primeiro título foi alcançado aos 55 anos. O segundo aos 63 anos e todos os outros foram, por óbvio, quando ele era ainda mais velho. Seu último título, em 2011, foi alcançado com um protótipo desenhado e dirigido por ele. Seu filho Walter correu nos disputados campeonatos de Turismo Carretera e Turismo Carretera Pista e seu neto Leonel Sotro foi campeão, em 2011, de Turismo Carretera Pista e disputa a categoria Turismo Carretera desde 2012.
Como fã que sou do Torino (paixão já declarada neste espaço em várias colunas, como nesta oportunidade), quero destacar que o campeonato de F-1 Mecánica Argentina de 1990 foi vencido por Hugo Caviglia com um carro chassis Berta e motor, claro, Torino — mas a maior parte das vezes o motor vencedor foi um Ford e o chassi um Sotro, produzido pelo próprio piloto. Mais exatamente, entre 1985 e 2011, foram 8 vitórias do chassi Sotro e 15 do motor Ford.
Entre os pilotos que disputaram a F-1 argentina, os nomes mais conhecidos são de argentinos famosos lá mesmo, em outras categorias. Muitos várias vezes consagrados na venerada Turismo Carretera (TC), a mais importante categoria do país vizinho e equivalente à Stock Car brasileira.
E vamos então a mais um momento cultural: o nome da categoria vem de “turismo” (os carros usados são de turismo) e os locais onde inicialmente eram disputadas as provas (“carreteras”, estradas e caminhos, geralmente de terra que depois de muitos acidentes foram substituídos por estradas asfaltadas e atualmente as provas são realizadas apenas em autódromos).
Um dos nomes internacionalmente conhecidos, além dos de Fangio e González, é o de Eduardo Copello, campeão da F-1 Argentina de 1968. Copello foi um dos pilotos da “Missão Argentina”, aquele grupo histórico que participou das 84 horas de Nürburgring em 1969 com um IKA Torino 380W. Copello esteve ao volante do carro número 3, cuja condução dividiu com Alberto Rodríguez Larreta, o Larry, e Óscar Mauricio Franco, o Cacho. Eles chegaram em quatro lugar numa prova duríssima, que contei neste espaço. Copello dá nome ao autódromo de San Juan, sua província natal.
O campeão de 1971 da F-1 argentina, Jorge Enrique Cupeiro, também teve uma relação com a equipe do Torino. Em 1969 também era da Missão Argentina das 84 Horas de Nürburgring, correndo com o Torino 380 W número 2 e dividindo o volante com Gastón Perkins e Eduardo Rodríguez Canedo. Liderou boa parte da prova, mas uma saída da pista provocou o fim da competição para eles.
Outro que participou da equipe argentina nas 84 Horas de Nürburgring foi Rubén Luis di Palma, campeão da F-1 argentina de 1974 (foto do carro campeão, recuperado recentemente) e 1978. Ele correu com o Torino número 1 e se revezou com Oscar Fangio e Carmelo Galbato.
Mais um da equipe da Missão Argentina que ganhou o campeonato da F-1 argentina (em 1973) foi Néstor García-Veiga, que foi suplente da equipe.
Em 1963 e 1964 o campeão foi Nasif Estéfano, que não correu com nenhum Torino em Nürburgring , mas chegou a participar da F-1 em 1962. Estéfano vendeu todos seus bens e entregou todo o dinheiro para o construtor ítalo-argentino Alejandro de Tomaso para bancar a construção do carro, no que seria uma sociedade. Depois de vários adiamentos, consegue largar no GP da Itália, mas abandonou depois de somente cinco voltas por problemas construtivos. Com isso, encerrou sua curtíssima participação na categoria, voltou para a Argentina e nunca conseguiu reaver o dinheiro. Mas ganhou provas e títulos em outros campeonatos.
O campeão de 1969, Jorge Ternengo, além de consagrado em outras categorias, fazia parte do “esquadrão CGT”, um trocadilho com a central sindical Confederación General del Trabajo e com as siglas dos sobrenomes dos pilotos Eduardo Copello, Héctor Gradassi e o próprio Ternengo, a equipe oficial da Industrias Kaiser Argentina, fabricante do Torino.
Se a F-1 argentina não alcançou grande repercussão no público internacional, serviu para ajudar a desenvolver e incentivar a indústria automobilística argentina de competição. Isso, numa categoria que utiliza apenas veículos totalmente nacionais num setor tão globalizado, não é pouco.
Mudando de assunto: nunca, jamais, nunquinha, teria imaginado que o campeonato de F-1 de 2021 seria tão emocionante. Sim, tem uma enorme chance de Lewis Hamilton ser novamente campeão, mas ainda assim este promete ser o melhor e mais disputado ano. Tenho visto cada corrida umas três vezes, fácil, pois há muitas manobras lindas que merecem replay. Torço muito pela nova geração: Norris, Russel, Leclerc e estou adorando ver um Verstappen que continua muito rápido, mas está mais maduro.
NG