Sim, caros leitores, acabei tendo uma recaída. Depois de duas colunas sobre o grande Oreste Berta, que podem ser lidas aqui, primeira e segunda, volto a falar sobre carros argentinos. Tentei, juro que tentei não voltar ao assunto — bem, pelo menos não tão cedo assim — mas, como já dizia Oscar Wilde posso resistir a tudo, menos à tentação.
Desta vez, para piorar, tive dois empurrões rumo ao inefável: um dos meus mais fiéis leitores, Hernán Saavedra Herrera, me mandou uma mensagem com um link para a matéria que eu acabava de ler no jornal argentino Clarín sobre o destino do último Ford Falcon produzido no país, publicada nesta terça-feira, dia 23 de novembro. Ou seja, isto já tomava contornos de conspiração intergaláctica, não? A rigor, a efeméride deveria ter sido lembrada em setembro, quando foi oficialmente encerrada a produção do carro e que neste ano se lembrariam seus 30 anos, mas parece que até nisso estava destinada a escrever sobre o assunto… (Foto de abertura)
Assim, então, sem mais alternativa, conto aqui como foi a despedida de um dos mais icônicos carros argentinos junto com o Torino. Na verdade, argentino é tão fanático por carro que posso ser vítima de búlin a qualquer momento por parte de membros de clubes da F-100, do Citroën 2CV, e outros pois, como já disse, argentino gosta mesmo de carro e tentar argumentar se um representa melhor o país do que outro é inútil. Então, sem ranking algum, vamos falar sobre um dos carros mais argentinos que já houve.
O Falcon foi um dos maiores sucessos da Ford na Argentina e provavelmente da indústria automobilística no país. Ele foi produzido entre o final de 1961 e 1991, num total de exatas 494.209 unidades (489.548 vendidos na Argentina e 4.661 exportados montados). Pessoalmente, teria feito de tudo para arredondar para 500.000 mas sabe-se lá por que a fabricante não fez isso. Em seu último ano, foram registrados apenas 2.462 Falcons na Argentina, depois de ter alcançado 38.150 em 1980, quando a Ford bateu seu recorde de vendas do modelo. Mas em 1991 já se viviam outros tempos, o mercado havia mudado e era muito disputado com carros importados depois de anos de exclusividade nacional.
Foi um dos modelos de maior e mais rápido sucesso. Nos dois primeiros anos, o Falcon foi todo montado a partir de componentes importados, mas logo chegou a altíssimos 98% de nacionalização. Em 1965 já era o modelo mais vendido na Argentina, com 15.442 unidades comercializadas. Paralelamente, começava uma bem sucedida escaladas na categoria esportiva mais apreciada pelos argentinos, a Turismo Carretera, semelhante à Stock Car brasileira, com 20 campeonatos ganhos entre 1972 e 2020.
Quando a Ford optou pelo fim do Falcon, ficou decidido que a última unidade não seria vendida, mas sim sorteada entre os mais de 6.000 funcionários da Argentina. Cientes de que estavam montando a última unidade, cada célula fez homenagens ao carro e, contrariando tudo aquilo que a invenção da linha de montagem e os princípios de Henry Ford preconizavam, a produção do último Falcon levou oito dias para sair da fábrica de General Pacheco, na grande Buenos Aires. Nada de automação, velocidade, nadinha. Muito pelo contrário. Foi quase tudo bem, bem demorado.
O felizardo foi um rapaz que tinha somente um ano de empresa e trabalhava na unidade de transmissões na província de Córdoba. Ironicamente, ele ganhava, à época, o equivalente a 600 dólares e o carro custava 18.000 dólares – ou seja, o equivalente a 30 meses de salário.
Emilio Félix Poligiotto tinha então 30 anos e era bastante reservado. Costumava ir ao trabalho de bicicleta e assim continuou pois o Falcon, embora tenha sido produzido com sua configuração básica, a GL standard 3.0, vinha equipado com o motor de seis cilindros em linha Max Econo, de 3.077 cm³ e 106 cv. Encher o tanque e, especialmente, rodar com esse carro não era para alguém como Poligiotto.
Para quem diz que os argentinos são/somos (sim, eu me considero argentina e brasileira) melodramáticos, o último Falcon saiu da linha de montagem com um laço enorme no teto e um recado claríssimo escrito com tinta no para-brisa: O imortal rodou por todos os cantos da fábrica de General Pacheco para que pudesse receber o adeus de todos os empregados e fosse visto já completamente montado, cheio de cartazes escritos à mão e depois rodou pela pista de testes da fábrica. Tudo parecia ter sido feito para adiar o inevitável: a saída, definitiva, do carro da linha de montagem.
Poligiotto ficou com o carro durante 18 anos, mas em dezembro de 2009 anunciou o Falcon. Na época, raríssimos desse modelo e ano alcançavam os 20.000 dólares, mas Poligiotto pedia 30.000. Tinha 180.000 quilômetros e ele mesmo disse que a opção pela venda foi porque teve um sério problema de saúde que o fez mudar suas prioridades (“deste mundo não se leva nada”). Tudo indica que não foi vendido, pois encontrei registros do carro de 2007, já com outra placa, mas que estaria ainda com o mesmo dono. Confesso que não aposto nisso, assim como ninguém. Pena que nem a Ford tenha mantido o registro de por onde anda o carro.
Mas o que fez a fama do Falcon? Em primeiro lugar, a robustez e a durabilidade, como pode constatar qualquer pessoa que já tenha visto um circulando especialmente por Santa Catarina. Tudo no carro foi feito para ser simples e eficiente: o motor não quebrava, o trem dianteiro era resistente, a transmissão durava séculos e qualquer conserto podia ser realizado em qualquer fim de mundo tal a simplicidade de seus componentes e facilidade de encontrar peças de reposição.
É fato que o preço inicial assustava um pouco, apesar de várias opções de motorização, que iam desde algumas menos possantes até verdadeiros bólidos. Inicialmente, era um carro comprado por pessoas de um certo poder econômico, mas também tinha um ótimo valor de revenda, ajudado pelo altíssimo índice de nacionalização de seus componentes, o que fez com que em pouco tempo os modelos usados fossem comprados com entusiasmo pela classe média.
Um detalhe interessante para os autoentusiastas: o Falcon tinha um elevado grau de exclusividade – para a época, é claro. Era possível escolher várias configurações diferentes, como motorização, acabamento, transmissão, tipo e cor de estofamento, isto é, coisas que, naquela época, na Argentina, eram raras. Por todos esses motivos, além de uma certa paixão pelo melodrama, é claro, é que este ano se lembraram as três décadas do fim do Ford Falcon na Argentina. E uma curiosidade: ele foi produzido na Austrália até 2016, mas totalmente diferente – na verdade, quase só o nome era o mesmo. Os fãs devem se lembrar dele no modelo GT Interceptor, o V-8 com compressor do filme “Mad Max”. Bem, eu lembro.
Mudando de assunto: se este ano está sendo um dos melhores campeonatos de Fórmula 1 em muito tempo, o excesso de regras e, pior, a lentidão nos julgamentos está fazendo com que as corridas fiquem muito parecidas com o VAR (Video Assistant Referee, árbitro assistente de vídeo) nos jogos de futebol. Não se sabe o que está valendo e o que não. Pessoalmente, não gosto de tanta demora para decidir punir ou não um piloto — muito menos fazer isso um par de horas antes da corrida. Sim, meu marido vai dizer que implico com Lewis Hamilton, mas ele ir parar no último lugar no grid da sprint race em Interlagos por irregularidade na asa com um dia de antecedência no anuncio lhe permitiu trocar componentes do motor e a punição a Max Verstappen, dada um par de horas antes da corrida do Qatar, lhe rendeu cinco posições, mas não lhe permitiu trocar nada, pois nem daria tempo. Como já disse, penas não deveriam ser subtraídas uma da outra. Para mim, Hamilton não deveria ter podido trocar componentes do motor.
NG