Pois é, caros leitores, depois de um curto interregno, cá estou eu de volta para falar de automobilismo argentino e para escrevinhar mais uma história interessante e até mesmo sui generis sobre este mesmo assunto.
Afinal, contarei aqui nestas (não tão mal) traçadas linhas a saga da IAME (Industrias Aeronáuticas y Mecánicas del Estado). O nome já dá uma boa dica do que se trata: uma fábrica de veículos estatal. Sim, senhores, abram as discussões sobre liberalismo e estatização e que a Argentina teve uma indústria estatal de carros de passeio.
Entremos então no túnel do tempo e voltemos às décadas de 1940-1950. Juan Domingo Perón era o presidente da Argentina e queria que houvesse uma indústria automobilística nacional, como parte de um plano quinquenal. Ao longo de 1950, Perón manteve contatos com representantes das principais fabricantes de veículos estrangeiros para tentar impulsionar a produção de veículos no país, que então apenas montava unidades. A ideia foi rejeitada por todos, que alegaram que não havia capacidade técnica para isso na Argentina e apenas alguns se comprometeram, ainda que ligeiramente e sem assinar nada, a produzir algumas autopeças dentro do país ou a fazer a montagem de autopeças estrangeiras. E só.
Lembro aqui que naquela época o mercado argentino inteiro de carros e caminhões não passava das 450.000 unidades.
Como já contei aqui neste espaço, Perón acenou então a um empresário italiano, Piero Dusio, que, com uma boa ajuda do governo argentino, criou a Autoar, uma empresa de origem italiana, mas instalada na Argentina para produzir carros nacionais.
Mas Perón queria mais — não apenas veículos e algumas máquinas agrícolas, que era o que a Autoar e a Cisitalia Argentina faziam. Em 30 de novembro de 1951, portanto quase dois anos depois da criação da Autoar, o presidente assinou o Decreto 24.103 que criou a Fábrica de Motores e Automotores. No ano seguinte, em 28 de março, foi criada a IAME, que substituiu, na prática, o Instituto Aerotécnico e tinha a intenção de produzir aviões, tratores, motocicletas, carros, lanchas esportivas e de competição e armamentos.
O conglomerado IAME tornou-se uma autarquia, com diretoria própria, administração central e reunia 10 fábricas, incluindo uma de paraquedas, todas já existentes e que passaram por reconfigurações. O primeiro diretor-geral foi o então Ministro da Aeronáutica, o brigadeiro San Martín, justamente quem havia sugerido a Perón o uso dessas fábricas. Os recursos usados vieram de um empréstimo do Banco Industrial de la República Argentina de 53 milhões de pesos argentinos, com garantia do Estado. O banco havia sido criado em 1943 pelo governo militar daquela época e foi avidamente utilizado por Perón para tentar impulsionar praticamente todas as atividades manufatureiras.
O início de produção foi rápido, pois foram usadas as instalações já existentes desde 1927 da Fábrica Militar de Aviones na província de… Córdoba. Sim, caros leitores, se alguém quiser sintetizar num mapa a produção de veículos na Argentina em toda a história do país basta saber localizar as províncias de Buenos Aires e a de Córdoba. E os nomes das empresas eram, naquela época, autoexplicativos. Se bem a unidade já estava em produção, o que saía de lá eram aeronaves e todos seus empregados eram dessa área. Para poder atender à pressa presidencial, que pretendia iniciar a produção de carros de série em 1° de novembro de 1952, foram contratados operários, técnicos e pessoal administrativo a jato (OK, o trocadilho é infame, mas não resisti). Com isso, em pouquíssimo tempo o número de pessoas na autarquia passou de 9.000 para 12.000.
A produção de veículos começou com um sedã de quatro lugares chamado Institec – já já discorrerei sobre os nomes dos veículos, mas adianto que não sei quem era o pessoal do Marketing que teve a ideia de batizar assim um carrinho econômico, do qual pouco tempo depois foi lançada uma versão picape. Sei lá, esse nome me lembra remédio. Até imagino o médico receitando 20 gotas de Institec duas vezes ao dia…
Bom, o fato é que o Institec era baseado nos trabalhos de César Castano, de quem o governo Perón comprara os planos de seu carro Castanito. E sim, já percebi que preciso falar sobre ele numa coluna… aguardem.
Paralelamente, a IAME desenvolvia um pequeno utilitário que tinha motor de origem americana, a gasolina, e derivado dos tratores Empire que eram adquiridos através de outra estatal, o IAPI (Instituto Argentino de Promoción del Intercambio). Mas neste caso, o nome do veículo era bem mais mercadológico: Rastrojero.
O utilitário tem uma história muito interessante e por isso vou escrever sobre ele em breve. Assim, não vou me alongar muito nos detalhes, mas adianto aqui que o design era, digamos, meio rústico, mas o veículo era extremamente robusto e desde o lançamento no mercado, em 1952, caiu nas graças dos argentinos e foi produzido durante décadas.
A IAME teve um portfólio não muito amplo de produtos, mas os mais bem sucedidos foram variações de três opções: o carro Justicialista, a moto Puma e o utilitário Rastrojero.
O Justicialista tinha carroceria desenhada na Argentina, mas copiada das linhas dos Chevrolet (foto de abertura). A motorização era Wartburg, com motores importados da Alemanha Oriental e o primeiro protótipo foi construído em apenas 90 dias, usando materiais nacionais. Justicialistas foram vendidos nos modelos Gran Turismo, Gran Sport, sedã Graciela, sedã com motor M-800, station wagon e station wagon Wartburg.
Em 1953 foi lançado o esportivo Justicialista Sport e os folhetos da época ressaltavam características como o brasão do Partido Peronista na traseira do carro. O Justicialista Sport tinha carroceria de resina com fibra de vidro e motor Porsche de 1.500 cm³. O modelo foi produzido entre 1953 e 1955. Como forma de acelerar seu lançamento, foram importados um carro e uma station wagon DKW e a tecnologia foi toda adaptada. O primeiro motor era de dois cilindros e pouca potência — algo considerado insuficiente para um sedã dessa categoria. Foi então que Raúl Magallanes teria proposto a incorporação de um motor de dois tempos, mas com quatro cilindros em “U”, duas câmaras de combustão e 800 cm³. O modelo foi chamado inicialmente M-800 e se bem era uma solução interessante, não era inédita — a austríaca Puch usava essa tecnologia em seus motores de 125 e de 250 cm³. A velocidade máxima do Justicialista era de 120 km/h.
A carroceria foi inspirada no Chevrolet, mais especificamente no modelo 51, com alguns toques como o uso de resina poliéster com fibra de vidro para os modelos sport, com o objetivo de diminuir o peso final do carro. Depois de alguns protótipos, foi produzida uma versão com teto rígido, mas do qual foram produzidos somente 167 unidades — a única que foi exportada foi dada de presente por Perón ao então presidente da Nicarágua, Anastasio Somoza.
Com o golpe de 1955 e a interrupção da produção, a fábrica onde era produzido o Justicialista foi entregue à Porsche e renomeada como TERAM (Talleres Especializados Reparaciones Autos y Motores). Não digam que não tenho motivo para implicar com esses nomes tão, digamos, mercadológicos… Bom, o carro foi modificado um pouco, especialmente a frente, para que ficasse mais parecido com o Porsche 356 e foi rebatizado como Puntero — em espanhol significa aquele que está na frente, em primeiro lugar. Até que enfim um nome bacana, não?.
A versão esportiva foi cancelada enquanto o sedã e a pequena picape duraram até 1957.
No total, foram fabricados 3.730 unidades de Justicialista em seus vários modelos, que foram vendidos a preços proporcionalmente baixos para a época.
Mudando de assunto: aproveito para desejar a todos meus leitores e suas famílias um excelente Natal, com muita saúde e muita paz.
NG