Depois de falar do Ford Falcon, cá estou eu novamente a lembrar outro ícone da indústria automobilística argentina: o Peugeot 504.
Não é por acaso que todo autoentusiasta lembra desse modelo e imediatamente o associa ao país vizinho: ele foi um dos modelos mais fabricados e mais vendidos na Argentina em todos os tempos e é um dos de produção mais duradoura no país — o que não é pouco numa nação onde os carros são fabricados com poucas alterações durante décadas — claro que hoje menos do que antes, mas ainda assim é notável a duração dos projetos automobilísticos do outro lado da fronteira. O Peugeot 504 foi fabricado na Argentina entre 1969 e 1999, enquanto em seu país de origem, a França, foi lançado em setembro de 1968 no Salão de Paris e produzido até 1987 — até 1999 na versão picape. Foi substituído pelo 505.
O lançamento estava previsto para junho daquele ano, mas com os acontecimentos políticos de maio de 1968 e a situação conturbadíssima em toda a França e especialmente em Paris, a Peugeot esticou o anúncio, mas aproveitou a chance no Salão.
O modelo foi sucesso quase instantâneo. Logo em 1969, foi eleito o Carro do Ano da Europa — título conquistado pela primeira vez pela fabricante francesa. Em todo seu ciclo de vida, alongado até 2010 na Nigéria, o carro foi fabricado em países tão variados como França, Argentina, Chile, Egito, Nova Zelândia, Taiwan, Austrália, Quênia, Nigéria, Espanha e China. Aliás, na Austrália o 504 era montado e vendido pela rival Renault. A economia tem razões que nossa razão desconhece… Somados, foram produzidas 3.689.166 unidades no mundo inteiro, 496.693 só na Argentina.
Já no Salão de Genebra de 1969 foram apresentados os modelos cupê de duas portas e o cabriolé, de uma longa série de versões.
A Peugeot se uniu ao centro de design italiano Pininfarina para criar o 504, que ocuparia o espaço do 404, também fruto dessa união, assim como o 403. A ideia era fazer um carro com grande conforto, de aparência elegante e moderna, mas que rompesse com o que era feito até então.
Reza a lenda (e eu adoro essas fofocas) que o corte abrupto na traseira do carro aconteceu porque em meio ao processo criativo, os desenhistas da Pininfarina pegaram pedaços de Isopor apenas para dar volume ao projeto no qual iriam trabalhar, mas em algum momento em que o trabalho estava sendo montado o pessoal da Peugeot achou que esse já era o modelo pronto. Como gostaram, aprovaram.
A frente, ao contrário, foi motivo de muita discussão. Pininfarina criou um modelo que os franceses não gostaram e estes fizeram um desenho com os faróis trapezoidais. Foi a vez de os italianos aceitarem — o próprio Sergio Pininfarina aprovou com uma frase que passou para a história: “É o olhar da Sophia Loren!” (foto de abertura). Todo mundo entendeu que não poderia haver nada mais sensual e elegante do que isso e, pronto, bateu-se o martelo para os faróis trapezoidais..
E aqui abro mais um parêntese. Jamais entendi por que os primeiros modelos produzidos na Argentina tinham os faróis circulares e duplos. Seria uma versão argentinizada de Sophia Loren? Uma homenagem a alguma diva local? Nos Estados Unidos também os faróis eram circulares. Nunca soube o motivo, mas concordo com Pininfarina.
O 504 já saiu das pranchetas com alguns diferenciadores e acabou se unindo indelevelmente à história argentina por um motivo curioso. O chefe dos desenhistas do estúdio Pininfarina naquela época era Aldo Brovarone, um italiano que em 1949, com 23 anos, havia se mudado para a Argentina para trabalhar numa agência de publicidade fugindo das consequências da Segunda Guerra Mundial, durante a qual foi deportado da Itália e ficou preso num campo de concentração alemão na Polônia ocupada por mais de um ano. Em pouco tempo foi contratado pela Autoar, um projeto de fabricar carros em série na Argentina sobre o qual vou falar na semana que vem. Por vários motivos, em 1952 voltou à Itália, direto para o escritório da Pininfarina onde chegou a ser o estilista-chefe. Lá ele trabalhou no projeto de desenvolvimento do 504 sedã. E fechamos o círculo das raízes argentinas do 504.
Mas façamos como Brovarone e viajemos para a Argentina. O 504 foi fabricado na unidade da Peugeot Safrar (Sociedade Anónima Franco Argentina de Automotores) na cidade de Berazategui, na Grande Buenos Aires. As primeiras unidades tinham motor de 1.657 cm³ e 76 cv. Logo no lançamento, os jornalistas que dirigiram o carro no autódromo de Buenos Aires o escolheram, informalmente, o carro do ano. Entre as diferenças para os carros da época estavam, além do teto solar, característica da marca francesa, os bancos reclináveis e com encostos individuais e os cintos de segurança reforçados.
Já em 1973, foi lançado o 504 XSE, um modelo muito bem equipado (era o primeiro com toca-fitas!) e que disputava o mercado de luxo, embora não fosse o mais caro do mercado. Tinha motor 1,8-litro de 99 cv, e depois vieram as versões com motor de 2 litros, com o inovador sistema de freios antitravamento nas rodas traseiras.
Com tantas opções de acabamento e motorização, o 504 passou a ser um carro de classe média e, com o passar dos muitos anos virou até mesmo um modelo de enorme sucesso entre os motoristas de táxi graças ao conforto proporcionado para o motorista e os passageiros. Somaram-se as versões “familiar” (perua) com três fileiras de bancos, muito usada como táxi nos países africanos, e a picape para 1,3 tonelada. Na Argentina a perua chegou primeiro importada da França e depois produzida no Uruguai.
Uma curiosidade: na Europa, o 504 teve várias versões a diesel e uma com câmbio automático — combinação pouco frequente na época.
Na Argentina, além dos modelos a diesel, muito comuns até hoje no país, em 1977 foi lançado um dos mais desejados pelos apaixonados por carros: o 504 TN (de Turismo Nacional, outra categoria de competição de carros de passageiros, semelhante à argentina Turismo Carretera e à Stock Car brasileira). O TN era porque o carro era homologado para a categoria.
Já mencionei várias vezes nas minhas escrevinhações o gosto dos argentinos por carros e por corridas. Até hoje competições de quatro ou duas rodas atraem multidões aos autódromos, mesmo em localidades longínquas como Termas de Río Hondo — uma cidadezinha de 35.000 habitantes na província de Santiago del Estero a 1.100 quilômetros de Buenos Aires com um autódromo internacional com capacidade para 60.000 pessoas — simplesmente quase o dobro da população local. Por isso, qualquer carro que ganhe campeonatos no país vê suas vendas subirem. Foi assim com o Ford Falcon, o Torino, e com o 504. O Peugeot ganhou nove campeonatos de Turismo Nacional, um rali argentino e um TC2000 (Turismo Carretera com motor de até 2.000 cm³).
Um dos pilotos mais conhecidos foi Pancho Alcuaz, que ganhou dois campeonatos com o 504 (1978 e 1981). E sim, antes que me peçam (para que sim ou para que não o faça) já penso em escrever, em algum momento, sobre as diversas categorias de competição de carros que há na Argentina… Como dizem por aí, puxei uma pena e veio uma galinha. Uma galinha, não, está mais para uma fantasia de Clóvis Bornay inteira!
Bom, o 504 TN tinha um público bem específico, que não eram os motoristas de táxi nem a classe média: eram os apaixonados por carro e por velocidade. Até hoje é um modelo bastante procurado entre os modelos mais velhinhos pelo fato de ser homologado para TN. O modelo tinha motor de 110 cv, suspensão mais firme do que a dos outros modelos da marca, pneus mais largos e um inovador painel com cinco instrumentos incluído o conta-giros, além do toca-fitas com dois alto-falantes, alavanca de câmbio no assoalho (em vez de no volante) e bancos reclináveis. Na falta de bolsa inflável, alguns modelos tinham o volante com um centro acolchoado para amortecer o impacto em caso de acidente e cintos de segurança reforçados, além do teto solar característico da marca francesa. Leitores, para quem acha tudo isto ultrapassado ou pouco, lembrem-se que estou falando da década de 1970 e na Argentina, certo?
Tanto na África quanto na Argentina, os modelos do 504 tinham eixo traseiro rígido e a chamada “suspensão África” no lugar da suspensão independente europeia para aguentar as condições mais duras dos caminhos tanto do continente africano quanto do interior argentino.
Nos anos 1980, muda a razão social do fabricante na Argentina, que passa a ser Sevel e unia as operações e a fabricação dos modelos da Fiat e da Peugeot. A mudança coincidiu com uma espécie de lifting no visual do carro, que passou a ter para-choques, grade e molduras inferiores de plástico e mudanças nos faróis e nas rodas. Com isso, o modelo ganhou uma sobrevida até que, em sua última década de vida, passou por uma nova reestilização, feita pelo estúdio Pininfarina. O resultado foi avaliado como excelente pelo público e em 1994, já com 25 anos de produção, o modelo alcançou seu melhor ano de vendas, com 24.970 unidades, ajudado por um preço de venda muito competitivo pois o investimento feito nele já estava totalmente amortizado.
E lá se vão mais de 50 anos do 504: 30 de produção e 20 desde sua aposentadoria. No entanto, ainda os vemos rodando por aí, facilmente identificáveis com motoristas argentinos ao volante. Uma história e tanto.
Mudando de assunto: quase no final da temporada de Fórmula 1 e em pré-abstinência, não posso evitar uma piadinha infame sobre o assunto. Infame, porém divertidinha:
NG