Sabem aquele ditado que diz que a cada enxadada vem uma minhoca? Como já escrevi algum dia aqui, no meu caso é uma surucucu que vem. Um assunto puxa o outro e assim vamos que vamos. O tema de hoje foi lembrado pelo assíduo leitor “FOC”: a estrategista da Red Bull Racing. Sim, é “a”, é uma mulher.
Novamente, o que me move a escrever sobre ela é a novidade — para não mencionar que a pessoa é fera. A equipe tem sido sensacional nas estratégias, nas mudanças de estratégias e nas leituras que faz dos acontecimentos e das estratégias das outras equipes. Mereceria uma coluna inteira a pessoa responsável por isto, fosse mulher, homem, criança de colo ou marciano.
Mas, como nem todo mundo que lê minha coluna me acompanha há mais tempo, vamos aos avisos legais, tão necessários ultimamente:
• Esta coluna não é sobre a primeira mulher a ter um cargo de grande importância na Fórmula 1. Esta é apenas uma coluna sobre um (outro) registro histórico.
• Esta coluna é sobre a principal estrategista mulher numa equipe de ponta de Fórmula 1 agora. Isto pode mudar a qualquer momento. Esta é apenas uma coluna sobre um registro histórico.
• Esta coluna não é sobre quem é melhor estrategista: homem, mulher, trans, cis, L, G, B, T, Q, I, A ou +. Esta é apenas uma coluna sobre um registro histórico.
• Esta coluna não é sobre presença de mulheres na Fórmula 1, se são poucas, muitas ou por quê. Esta é apenas uma coluna sobre um registro histórico.
• Nenhuma mulher foi subestimada, ferida em sua dignidade ou de qualquer outra maneira para a pesquisa e redação deste texto. Esta é apenas uma coluna sobre um registro histórico.
Bem, devo ter esquecido algum outro habeas corpus preventivo, mas vamos lá. Paciência. O assunto hoje é a ótima Hannah Schmitz e sua habilidade em transformar dados (que as outras equipes também tem) em decisões acertadas (algo que nem todo mundo faz). Esse é o ponto e daí minha admiração pelo trabalho dela. Faço mais um parêntese aqui: trabalhei vários anos numa empresa de modelos preditivos, analíticos e algoritmos. Simplificando, são programas sofisticadíssimos que podem predizer o que uma pessoa vai comprar com base no seu histórico de compras e, assim, enviar-lhe as ofertas mais adequadas. Por exemplo, se você vem comprando tijolos e cimento, é lícito supor que está construindo e que, em breve, precisará de pisos e azulejos, e assim a empresa envia promoções específicas — quem não odeia receber ofertas de algo que não tem nada a ver? Sem falar no desperdício de recursos. Ou que também detectam possíveis fraudes em compras com cartão de crédito com base no histórico de compras de uma pessoa. Enfim, meus anos nessa empresa mais outros tantos em banco (sempre responsável pela área de Comunicação, claro, que de desenvolvimento não entendo nada) me fizeram gostar e valorizar muito esse trabalho. Mas, como diz meu guru acadêmico Régis Debray, a informação não é poder, e sim o que se faz com ela — senão, os bibliotecários seriam os donos do mundo.
É o caso da Hannah. Ela tem mestrado em Engenharia Mecânica na Universidade de Cambridge e chegou à Red Bull Racing no ano da formatura, 2009, como estagiária, mas em pouco tempo virou engenheira de modelagem e simulação e um ano e meio depois já era Engenheira Sênior de Estratégia e desde o ano passado é Engenheira Chefe de Estratégia.
“Trabalhei em dinâmica de veículos, primeiro fazendo trabalhos de modelagem e simulação e, depois de um tempo, senti que realmente queria uma conexão mais direta com as corridas, e a posição surgiu na estratégia”, disse Hannah. “Eu mudei para esse departamento e estou lá desde então, há quase 13 anos”, conta. Para mim, a frase que melhor define o que ela faz e porque o faz tão bem é a de uma declaração dela: “Todo mundo tem o mesmo acesso aos mesmos dados, mas é o que você faz com esses dados que lhe dá vantagem.”
O trabalho de Hannah é fundamental, pois é ela quem recomenda quando parar, quais pneus usar e como os pilotos devem trabalhar juntos. “Os dados entram em todas nossas simulações”, diz Hannah. “Antes mesmo de chegarmos à pista, nossas simulações terão o que esperamos que os pneus façam, o que achamos que será a ultrapassagem naquela pista e todos os ritmos que esperamos de nossos concorrentes e de nós. E então, quando estamos na pista, podemos usar dados para estimar melhor todas essas variáveis. Basicamente, estamos constantemente usando os dados e refinando esses modelos.”
Para mim, não são apenas os dados, e especialmente sua qualidade, mas as decisões que são tomadas a partir deles que são o segredo de uma equipe vencedora. E, especialmente, mudar rapidamente de cenário em função de condições climáticas, da estratégia dos adversários e de todas as variáveis que se apresentam a cada corrida. Acho fantástico isso. Aliás, sempre gostei na história e nos filmes, das questões de estratégia. E lá vem uma das minhas tão frequentes digressões. Minha parte favorita em seriados como Chicago Fire é quando chegam ao local do chamado e o chefe Boden organiza o salvamento: ele decide na hora qual o tipo de salvamento, divide as equipes, diz qual vai primeiro, por qual caminho… Ou no filme Gladiador quando o personagem organiza, em segundos, a estratégia de defesa dos escravos em plena arena. Sensacional!
É claro que Hannah e sua equipe tem à disposição tecnologia de última geração (usam a da Oracle) que lhes permite testar bilhões (sim, bilhões) de cenários e fazer combinações usando simulações. Tudo isso é feito semanas antes de cada grande prêmio.
Se a cara mais conhecida da Red Bull é a de Christian Horner, chefe de equipe e executivo-chefe da Red Bull Racing, ele faz questão de destacar a importância de Hannah e sua equipe: “É um papel fundamental, sentar-se ao lado da pista no muro dos boxes, utilizando todos os dados e informações para tomar decisões sobre a estratégia de corrida”, disse. “Essa função é o eixo central.” Acrescentou. Para o público em geral, Hannah ficou mais conhecida a partir da corrida de 2019 quando depois da vitória no Brasil a equipe a colocou no pódio para receber o troféu de Construtores. Lindo e merecido reconhecimento de alguém que fica sempre apenas nos bastidores.
O trabalho de Hannah e sua equipe é, basicamente, traçar todos os cenários possíveis e suas variáveis para tomar a melhor decisão a cada momento e mudá-la sempre que necessário, sabendo antecipadamente suas consequências e avaliando prós e contras. Na preparação para uma corrida, eles criam um relatório de pré-visualização que analisa todas as estratégias potenciais que a equipe pode seguir no dia da prova. O relatório inclui uma enorme quantidade de informações e variáveis, como análises de corridas recentes e dados históricos de cada pista específica para ajudar a prever o desempenho de pneus e carros. Eles modelarão o que acontece se houver um acidente em diferentes pontos da pista, em diferentes momentos da corrida e considerarão as previsões da meteorologia, as chances de chuva leve ou pesada, sua duração, o vento, entre outros muitos cenários e possíveis resultados. A equipe consegue criar gráficos que mostrem a pontuação esperada com base em certas estratégias e, a partir daí, decidir qual o resultado que melhor atende ao momento da equipe.
Os pneus são uma das principais variáveis nos cenários traçados. Cada equipe tem a mesma quantidade de pneus que pode usar durante um fim de semana de corrida, por isso a estratégia de pneus, quais usar, quando e por quanto tempo, é crucial. Um bom exemplo disso foi o Grande Prêmio do Brasil de 2019. Naquele dia, Hannah tomou a decisão de fazer Max Verstappen parar no boxe pela terceira vez, embora isso significasse entregar a liderança ao seu rival. Foi uma decisão arriscada, mas com um novo conjunto de pneus, Max conseguiu recuperar rapidamente a primeira posição e vencer a penúltima corrida da temporada. Ela ter subido no pódio certamente uma honra, pois há tanta gente envolvida e responsável por uma vitória que escolher somente uma pessoa para receber o prêmio acaba deixando de fora muitos outros que mereceriam estar lá também. Mas foi lindo ver a Hannah naquele dia lá, pois a estratégia de pneus foi a chave da vitória. “Foi um momento incrivelmente especial, o auge da minha carreira. Eu tinha acabado de voltar ao trabalho depois de ser mãe, era algo gigante para mim, eu queria provar que continuava aqui, que poderia seguir fazendo meu trabalho bem. Foi uma experiência fantástica”, resumiu Hannah.
No GP de Mônaco deste ano, o papel de Hannah foi fundamental na vitória de Sérgio Pérez. A equipe deu mais um show de estratégia numa pista conhecida por as ultrapassagens serem difíceis. Hannah notou que Pierre Gasly, na modesta Alpha Tauri, tinha um rendimento muito bom graças aos pneus intermediários e optou por arriscar: mandou Max e Checo pararem quando a pista estava secando. Quando a Ferrari, que corria numa pista que a favorecia, reagiu, era tarde demais. A vitória do mexicano e o terceiro lugar do holandês arrancaram elogios do normalmente frio Helmut Marko, assessor da Red Bull e ele mesmo ex-piloto: “Se conseguimos vencer esta corrida foi principalmente por causa da Hannah”, disse.
É claro que o uso de alta tecnologia ajuda a ampliar o número de cenários e de simulações, mas as decisões finais cabem à Hannah e sua equipe. Ou, pelo menos, as recomendações finais, mas as decisões são tomadas com base nas conclusões e nos dados dela. Uma vez na pista, Hannah analisa dados de treinos e corridas de qualificação, concentrando-se em variáveis como as condições específicas daquele momento da pista, o ritmo do carro e a degradação dos pneus para evoluir ainda mais a estratégia da equipe e mapear as paradas para troca. É claro que a análise da concorrência é outro componente crucial para determinar as estratégias rivais durante todo o final de semana de corrida. Mas isso está longe de ser pré-definido estaticamente. À medida que a corrida se desenrola, Hannah continua modelando cenários rapidamente e oferecendo, eventualmente, novas opções de estratégia para os pilotos, sempre, é claro, de forma a dar a eles a melhor chance de sucesso. É como um moto contínuo, um processo permanentemente em andamento.
“É incrivelmente alucinante. Você fica sempre no limite quando toma uma decisão que vai definir algo em uma fração de segundos. Você tem, talvez, uns 20 segundos, o que não parece nada, mas, em uma corrida, esperar esse tempo todo para ver se tomou a decisão certa, parece uma eternidade. Manter a calma é um dos atributos mais valiosos para quem é estrategista”, descreveu a engenheira sobre a função atual numa entrevista ano passado.
Mas se a quantidade de simulações e cenários poderia ser literalmente infinita se fossem apenas as questões tecnológicas, e as equipes de F-1 tenham um arsenal de ferramentas e tecnologia para auxiliar na estratégia, elas estão sujeitas aos regulamentos da FIA, que limitam o uso destes recursos. Para a temporada de 2022, por exemplo, as equipes estão limitadas no tempo que podem gastar em modelagem e simulação na pista. Ironicamente para gerenciar estas restrições de tempo e os limites de gastos, a própria Oracle tem ferramentas de simulação, tudo para não extrapolar tempos nem gastos. Algo que só torna ainda mais meritório o trabalho desta inglesa admirável.
Mudando de assunto: finalmente acabei de assistir “Drive to Survive”, a docu-série da Netflix sobre Fórmula 1. Tem imagens fantásticas e gostei de rever lances que nem me lembrava mais. Por exemplo, havia me esquecido o tanto de vezes que Carlos Sainz já rodou e/ou bateu desde que começou na F-1. Concordo com a crítica de muitos pilotos de que há tretas forçadas e outras simplesmente inventadas, e me incomoda um pouco a falta de critério para destacar determinadas equipes ou pilotos Na verdade, não que ache que não há critérios, é mais que não concordo com eles. Mas tem lá seus méritos, embora não ache tão sensacional do ponto de vista de conteúdo. No geral, vale a pena assistir.
NG