Sabemos que o Gol tem muito do Passat em seu projeto original, e o Passat de primeira geração é quase uma versão do Audi 80 com uma carroceria ligeiramente diferente. Existe então uma sólida ligação familiar entre esses três carros, mas não podemos achar que o Gol BX seja igual ao Passat. Tem sim base nele, mas começou sua vida com um motor muito diferente: o motor do Fusca, de 1.285 cm³. Isso é interessante para entendermos o Voyage que nasceu um ano após a grande aposta da Volkswagen.
O Voyage era mais parecido com o Passat do que o próprio Gol, pois dividia com o carro mais velho o mesmo motor arrefecido a água de quatro cilindros e 1,5 litro (1.471 cm³) com carburador de corpo simples. Apesar de entregar apenas 65 cv a 5.600 rpm e 11 m·kgf de torque a 3.000 rpm, tornava-se uma opção bem mais interessante que o motor 1,3 do Fusca aplicado no Gol (42 cv), e também melhor que a versão 1,6 de mesmo tipo (4 cilindros boxer, 54 cv). Potência e torque do 1,5 litro a álcool se mantiveram as mesmas.
Como no Passat, motor era longitudinal e inclinado 15º à direita com o radiador deslocado para a esquerda, cujo ventilador era elétrico de atuação automática por sensor de temperatura do líquido de arrefecimento e relê.
Em 1983, ganhou um motor novo de 1,6 litro agora denominado de MD-270, nome comercial Torque. É importante destacar isso, pois o Voyage sempre foi um carro em constante evolução, nos primeiros anos, inclusive, foi recebendo aprimoramentos muito mais importantes do que o próprio Gol, só ficando para trás quando o glorioso GT 1.8 (1.781 cm³ foi lançado, em 1984. Anos antes do Gol esportivo com motor moderno, então, o Voyage, com a ajuda do Passat, já indicava o caminho que pelo qual a Volkswagen seria conhecida ao longo das décadas seguintes: carros com comandos leves e precisos, rápidos e alertas em relação à cilindrada. Foi uma espécie de pioneiro, antecipando em parte, o que sentiríamos nos modelos da linha BX mais desejados: GT, GTS e GTi.
O Voyage ao longo do tempo nunca deixou de melhorar: motor AP800 na versão Super em 1986, o mesmo do Santana, e respondendo a esse estímulo com um desempenho geral muito bom, incomodando Escort XR3 e Monza S/R 1,8 em acelerações e retomadas com o pé no fundo, caindo fácil nas graças dos motoristas mais entusiasmados.
No ano seguinte surgia a versão GLS, que novamente não era tratado como um esportivo puro, mas um carro que flertava com isso por conta da decoração caprichada, interior de bom acabamento, das respostas vivas do motor levemente melhorado (carburador de Gol GTS agora) e da eficiência da sua suspensão; um carro para andar forte se o seu motorista assim exigisse, como era o Voyage Super.
O carro de hoje é um Voyage GLS 1988 com rodas Silverstone, imortalizadas nas versões esportivas do Gol e que depois equiparam o Santana Evidence e as últimas Parati GLS de primeira geração. Sua cor é denominada vermelho Tornado, e seu aspecto geral é impecável como se pode ver nas fotos. Nessa cor, inclusive, é possível perceber o delicado trabalho de decoração aplicado nas molduras das janelas, adesivos laboriosamente colocados fazendo uma bonita composição final, chamando a atenção o cuidado e o bom gosto nesses detalhes que só podemos perceber bem de perto. Exclusivas saias laterais, interior em cinza claro com painel satélite e bancos Recaro, ajudam a compor o pacote perfeitamente sedutor desse pequeno sedã, outro carro de propriedade do nosso amigo Elton, que eu e o Jeison vamos mostrar a vocês. Vamos passear de Voyage?
Andando no Voyage do Elton
O Voyage é um carro decididamente pequeno com o que nos acostumamos a ver nas ruas nos dias atuais, suas medidas contidas talvez nos causem mais impacto do que no próprio Gol, esse sempre percebido como um carro pequeno, pois existe sempre uma ideia no subconsciente que um sedã é um carro de “dimensões normais”. O carro do Elton ainda está com sua suspensão levemente rebaixada, então, para entrar no Voyage a gente precisa literalmente descer, se abaixar bem para se acomodar nos seus bancos Recaro, que têm as abas laterais menos pronunciadas do que nas versões esportivas do Gol.
Dentro dele, a impressão de divertida estranheza continua, tudo é pequeno, compacto e bem perto do alcance das mãos; literalmente somos engaiolados pela acanhada cabine, mas isso, antes traz mais aconchego do que desconforto, o banco é uma delícia e está bem perto do assoalho. O clássico volante de direção de quatro raios e quatro botões de buzina tem aro fino, de 380 mm de diâmetro, e é agradável de tocar e manusear. O painel-satélite está pertinho dos dedos e chama a atenção o diagrama das marchas no centro do quadro de instrumentos, um charme.
O carro ainda está frio e vamos puxar levemente o afogador para ele não tranquear ou morrer nos primeiros metros. O ronco forte e ligeiramente abafado é puro Gol GTS, apesar de o sistema de escapamento não ser o mesmo, mas neste carro também não era puramente original. Não apenas o motor está frio, mas sua caixa de marchas também; a primeira entra um pouco pesada e a segunda dá aquela mínima arranhada que nunca é ouvida, mas apenas sentida pela palma da mão, o pomo da alavanca é igual aos dos modelos CL e GL da marca, que fica escorregadia se for uma peça já bem usada. O ideal, claro, seria uma manopla ao estilo do Gol GTi, só disponível neste em 1988 e exclusiva do modelo na linha BX. O pedal da esquerda é um pouco pesado, mas progressivo, o do acelerador é bem leve e nos incentiva a “telegrafar” nas manobras, apenas para ouvir o barulhinho cheio do motor.
O resto das marchas entra suave, e para quem dirigiu esses carros nos anos 1980 ou 1990, quando esses VW eram referência máxima em excelência de câmbio, chama a atenção como os engates têm o curso um tanto longos perto dos Volkswagen recentes (Polo, up!, Fox, Gol atual, etc.), mas logo se pega o jeitinho e a coisa vai melhorar, muito, em condução francamente esportiva.
E o motor 1,8 agora está quente, mas apesar disso, mostra-se temperamental como bom carburado que é dos 2 mil aos 3 mil giros, amarrando um pouco como se tivesse afogado ou gerido por um comando muito bravo, mas limpando lindamente quando se ultrapassa essa faixa de giro e vai cantando forte dali para diante, bastando apenas uma afinação. Claro que essa potência não vai assustar ninguém em pleno 2022, mas sua progressão e vivacidade são dignos de nota. A terceira, por exemplo, vai a 130 km/h indicados, e uma troca rápida para quarta chega a balançar a cabeça dos ocupantes, você sente o impacto nas mudanças e a força do motor (carro leve), sempre muito presente e ausente de filtros ou amenidades.
A aceleração 0-100 km/h declarada pela fábrica era em 11,5 segundos e a velocidade máxima, 165 km/h.
Os 160/165 km/h são apontados no painel pelo ponteiro vacilante, quando a quinta começa a encher (caixa PV, de quinta real) e temos a nítida impressão que estamos a bem mais, culpa da dificuldade do carro em cortar o ar (Cx 0,43) e do berro ardido e áspero do motor em altas rotações, parece que entra ar por tudo, mesmo com as janelas fechadas.
Arrancadas feitas com o motor nas 4 mil rpm proporcionam boas patinadas das rodas com pneus 185/60R14, portanto fora das especificações originais 175/70R13. Mas logo o carro pega tração e a segunda entra forte com pouca queda de giros, pneus cantando e o processo se repetindo no engate da terceira (com uma última manifestação dos pneus), e na quarta. O Voyage avança e ao mesmo tempo nos leva lá para trás, para o passado, num tempo distante onde esse tipo de arrancada era normal quando carros dessa estirpe se encontravam.
A essa altura, o câmbio já se tornou o nosso melhor amigo, com ele e o motorista bem aquecidos, as trocas são limpas e rápidas, a quinta marcha é apenas um movimento em diagonal, saindo da quarta sem pausa alguma e com o pé no fundo se assim quiser; não existe o menor sinal de hesitação. A alavanca pode ser operada com toda a velocidade que você pode extrair do braço direito nas subidas de marcha, e na descida delas, as reduzidas entram como faca quente na manteiga com a ajuda de um toque no acelerador só para igualar velocidade e rotação na marcha engatada ao soltar o pedal de embreagem. Você se pega cambiando por cambiar, muitas vezes sem necessidade alguma no momento, pois o mecanismo é tão bom que grita para ser usado.
Voyage do Marcas
Andar com carros diferentes num mesmo lugar, como uma espécie de laboratório para colher dados em igualdade de condições, nos mostra mais honestamente como eles reagem em relação aos seus pares, suas qualidades e defeitos não podem assim ser escondidos por diferenças de traçado ou tipo de piso. Nesse mesmo lugar, menos de um mês atrás, andamos com um carro que saía de frente sutilmente no limite, muito seguro e muito permissível, e mesmo assim bem divertido.
O Voyage também é um bocado divertido, na verdade até mais, pois sua receita nas curvas é diferente, mesmo sendo de tração dianteira também. A sua direção desprovida de assistência, mostra-se ligeiramente atrasada ao virar uma esquina em comparação a um sistema eletro-hidráulico ou eletromecânico, e um pouco pesada ao estacionar. Ela se conecta às rodas dianteiras de modo exemplar, sem apresentar qualquer folga, atraso ou excesso de comando quando se dirige mais forte. É girar o volante e o carro apontar para onde você deseja, perdendo um pouco de peso no processo, mas não por que a dianteira está espalhando, mas sim pelo motivo de que todo o veículo está rotacionando em harmonia, entrando para dentro da curva com vontade de verdade.
Na breve sucessão de curvas de média velocidade (feitas em terceira), o Voyage mostra sua classe esportiva: a frente começa a sair, mas imediatamente esse comportamento é substituído por uma clara tendência do eixo traseiro em fechar a curva. E se você forçar um pouco a situação nesse sentido o carro virá de lado mesmo, embora bem sutilmente, quase de forma imperceptível para quem vê de fora — só que exigindo uma certa contraordem no volante para arrumar as coisas. Nada complicado ou difícil para um motorista um pouco mais alerta, é bastante instintivo na verdade; basta um toque no sentido contrário e tudo se resolve, ao menos em piso seco e em velocidades não tão elevadas. Devo informar que o carro estava equipado com uma barra da amarração unindo as duas torres dos amortecedores, tornando toda a frente mais rígida torcionalmente, talvez assim estimulando as saídas de traseira ao ser mais responsiva.
Imagino que esse comportamento se amplifique em asfalto molhado ou escorregadio, e se o motorista se habituar a esse comportamento e ter o respeito necessário em condições traiçoeiras, com certeza nunca se dará mal ou levará sustos. De todo modo, essa tendência do carro sair de traseira talvez explique parte do seu sucesso no extinto Campeonato Brasileiro de Marcas e Pilotos, quando os Voyage era maioria de um grid que antes tinha como rei o Passat, que foi deposto ao sair de linha. São célebres os vídeos no YouTube com o pequeno sedã da Volkswagen pendurado nas curvas, entrando totalmente de lado em quase todas do circuito, com a frente sempre apontada para o lado certo e acelerando antes.
Conclusão
O Voyage GLS tem um nome forte, pois forte é sua lembrança entre os autoentusiastas e é quase como se fosse um Gol GTS sedã, com bancos mais macios, acabamento mais claro no interior, e rodas e pneus mais modestos. Muitos acham o Voyage Sport o ápice em termos de Voyage, e — isoladamente — ele é mesmo, pois é literalmente um Gol GTS com porta-malas; por dentro é virtualmente idêntico e os pneus de perfil baixo e rodas aro 14 são os mesmos.
No entanto, no começo e no decorrer da sua vida, o Voyage GLS esteve mais perto do topo dos automóveis nacionais, em termos de desempenho ao menos, do que o Sport jamais esteve, e isso é um fato, tudo passa e evolui, e o Voyage Sport apesar de lindo e cheio de qualidades, em 93/94 já sentia forte os sinais da idade. O tempo nada perdoa.
O GLS visto pelos olhos de hoje pode parecer apertado, barulhento, inseguro e obsoleto, e também pouco impressionante em linha reta. Mas esses defeitos, ou particularidades, você vai encontrar em quase qualquer carro de mais de 30 anos atrás. O progresso é uma constante e temos que agradecer por isso. O que era bom lá atrás hoje não é mais, e o que é ótimo hoje será apenas razoável amanhã. Por outro lado, existem características antigas que estão sumindo com o passar do tempo, e isso não é visto como um processo evolutivo por todas as pessoas. Diante dos carros comuns cada vez mais isolados de hoje em dia, com suas caixas automáticas e diversos assistentes de condução, o pequeno Voyage é mais um grito de liberdade do que “eu deveria estar num museu”.
O GLS ainda é um carro muito gostoso de dirigir, as concessões que ele exige são poucas pois a ergonomia é decente e o motor puxa bem, ultrapassando com segurança e mantendo velocidades coerentes com facilidade. Consome bem e vibra um pouco sobre paralelepípedos (ainda mais este), exige mais força para estacionar, mas ao menos é pequeno para caber nas vagas, e a caixa de marchas — quase regra nos antigos — melhora em condução mais dedicada.
Goste ou não, e eu e o Jeison gostamos um bocado, é o tipo de carro que não te deixa indiferente, nem atrás do volante e nem para as pessoas na rua. Aquelas que gostam mesmo de carros viram o pescoço para acompanhar melhor esse pequeno best-seller da VW, um dos carros mais legais produzidos por ela.
Fórmula Finesse” / Bento Gonçalves, RS
Jeison Paim / Farroupilha, RS