Participo de diversos grupos de Fórmula 1 em redes sociais, no Brasil e no Exterior, e é visível que muitas das discussões que ocorrem nesses espaços são as mesmas que se repetem em outras áreas, especialmente, mas não apenas, na política. Chega a ser irritante não apenas a polarização, mas também o grau de desinformação e de má fé, sobretudo na intenção de apenas provocar. No caso da F-1, fãs de Lewis Hamilton se digladiam om fãs de Max Verstappen o tempo todo, pelos motivos mais idiotas.
Recentemente consegui escapar de uma treta apenas não comentando nada, mas, como sempre, me despertou uma curiosidade: um inglês insistia em se pegar com um holandês alegando que Max Verstappen não seria holandês, mas sim belga. Até o asfalto de Interlagos sabe que o piloto nasceu na Bélgica (mais especificamente em Hasselt), mas é holandês até a medula. Torce pelo time holandês de futebol PSV Eindhoven, corre com a bandeira holandesa, ouve o hino holandês a cada vitória, fala holandês… enfim, para mim é ponto pacífico que ele é holandês, mas o inglês entrou em várias postagens da mesma página apenas para dizer isso — e, o pior, apenas para provocar uma discussão e sempre de forma virulenta.
Bem, críticas à parte, me interessei por pesquisar quais outros pilotos de Fórmula 1 correm (ou correram) sob bandeiras de países que não eram os seus de nascimento.
E aí vamos ao primeiro momento cultura esportiva. Plim!
O Código Desportivo Internacional, é um conjunto de regras válido para todos os eventos automobilísticos subordinados à Federação Internacional do Automóvel (FIA). O documento tem 17 capítulos e vários apêndices. Muito bem, e o que diz o Código? Textualmente, no seu Artigo 112, está escrito que:
”No que diz respeito à aplicação deste Código, todos os participantes ou pilotos que obtiverem suas licenças de uma ASN (sigla para Associação Desportiva Nacional em francês), usarão a nacionalidade desta ASN durante o período de validade dessa licença. Todos os pilotos, independentemente da nacionalidade da sua licença, que participem de qualquer evento do Campeonato Mundial da FIA, devem manter a nacionalidade do seu passaporte em todos os documentos oficiais e em todas as reuniões e boletins informativos. Para o Campeonato do Mundo de Pilotos de Carros de Turismo da FIA, “nacionalidade” significará a nacionalidade do passaporte do piloto.”
Como a licença do Max foi emitida pela Holanda, ele é, sim, holandês para a FIA. Ou seja, aquele inglês estava tretando mesmo, como lhe foi dito por muita gente, mas parece que ele só queria perturbar, mesmo.
Mas, quais outros pilotos tem uma bandeira diferente daquela do país em que nasceram?
O caso mais estranho e, na minha opinião, menos conhecido que encontrei foi o do canadense Jacques Villeneuve, que começou sua carreira de piloto correndo com a bandeira de… Andorra. Villeneuve era jovem demais para obter uma licença de piloto em seu país natal e então, com a ajuda da Federação Automobilística Canadense, obteve uma licença de Andorra. Mais tarde, ele passou a correr como canadense, mesmo.
Há vários casos de pilotos que correram por outros países que não aqueles em que nasceram.
Jacques Villeneuve
Jochen Rindt
Nasceu em Mainz, na Alemanha, mas depois de seus pais morreram num bombardeio aliado durante a Segunda Guerra Mundial ele foi viver com seus avós em Graz, na Áustria, onde começou a pilotar. Nunca se naturalizou austríaco e continuou alemão até sua morte, mas optou por representar a Áustria como piloto.
Bertrand Jean Gachot
Nascido em Luxemburgo e naturalizado belga, como filho de um comissário francês da União Europeia, tem também nacionalidade francesa. Correu inicialmente sob a bandeira da Bélgica na Fórmula 1. Disputou provas entre 1989 e 1992 e entre 1992 e 1995. Em 1992 renovou a superlicença pela França e passou a correr com essa bandeira, mas o capacete tinha a pintura do círculo com as estrelas da União Europeia — uma verdadeira globalização. Disputou efetivamente 47 provas e marcou um total de 5 pontos.
Mario Andretti
Este caso é mais complicado. Mario Gabrielle Andretti nasceu em 1940 na cidade de Montona, que naquela época fazia parte da Itália. É muito, muito pequena. Vinte anos atrás tinha apenas 983 habitantes. Encurtando a longa história de a quem pertenceu a cidade, ela fez parte do Império Austríaco de 1814 até 1918. Era parte do império, mas uma unidade territorial separada — a capital era Trieste. No final da Primeira Guerra Mundial, o império austro-húngaro perdeu o território para a Itália. Com a capitulação do nacional-socialismo ao final da Segunda Guerra Mundial, a cidade passou a fazer parte da Iugoslávia. Em 1954, um acordo passou definitivamente Motovun e boa parte do território para a Iugoslávia. Com o fim da Iugoslávia, em 1991, Motovun passou a fazer parte da Croácia. Em 1948, como fizeram muitos moradores da região da Istria, a família foi para um campo de refugiados em Lucca (Itália) e em 1955 os Andretti foram para os Estados Unidos, onde Mario obteve sua superlicença e anos mais tarde se naturalizou. Sempre correu pelos Estados Unidos. Andretti é um dos principais nomes do automobilismo nos Estados Unidos e é dos poucos a ter conseguido ser campeão da Fórmula 1 (em 1978) e a ganhar provas na IndyCar, Nascar e no Campeonato Mundial de Carros Esporte..
Eddie Irvine
Um dos mais irlandeses pilotos de todos os tempos correu com uma bandeira que não era a do seu lugar de nascimento. Irvine nasceu em 1965 em Newtownards, na Irlanda do Norte. Como até hoje o Reino Unidos considera que a região faz parte do império britânico e não é um país independente (bom, formalmente nenhuma nação o considera um país independente), ele obteve sua licença pela ASN da República da Irlanda. O cerimonial de diversos países, assim como a própria FIA, confundiram a nacionalidade de Irvine com “irlandês” e em várias ocasiões foi hasteada a bandeira da Irlanda (que não é a Irlanda do Norte e é, sim, independente), assim como foi tocado o hino deste país. Isso aconteceu na Argentina e depois disso ele e sua família sofreram diversas ameaças. Por isso, ele pediu para que fosse hasteada uma neutra bandeira com um trevo verde e que fosse tocado um hino irlandês, também neutro em relação às duas Irlandas. Mas sempre se definiu como irlandês — “se você é da Irlanda, não importa se do Norte ou do Sul, você é irlandês”. Irvine disputou a Fórmula 1 entre 1993 e 2002 pela Jordan, Ferrari e Jaguar. Largou 145 vezes, ganhou 4 provas e subiu 26 vezes ao pódio.
John Watson
Mais um caso parecido com o de Eddie Irvine, mas este é mais claro. Watson nasceu em 1946 em Belfast, Irlanda do Norte, mas corria sob a bandeira do Reino Unido. Disputou a Fórmula 1 de 1973 a 1983 e depois em 1985. Defendeu as equipes Brabham, Surtees, Lotus, Penske e McLaren. Largou 152 vezes, ganhou 5 provas e subiu 20 vezes ao pódio.
Mike Beuttler
Nome menos conhecido no circo da Fórmula 1, Michael Simon Brindley Bream Beuttler, ou apenas Mike Beuttler, nasceu em 1940 no Cairo, ou seja, no Egito e é até agora o único piloto dessa nacionalidade a ter corrido na Fórmula 1. Outro fato único é que até este momento é o único piloto declaradamente homossexual a ter corrido na F-1. Correu entre 1971 e 1973, largou 28 vezes e não marcou nenhum ponto.
Beuttler morreu aos 48 anos por complicações decorrentes da aids. Foi o primeiro caso de piloto a morrer da doença – o segundo foi o canadense Stéphane Proulx, em 1993., sendo o primeiro caso de um automobilista a morrer da doença. O segundo corredor vitimado pela aids foi o canadense Stéphane Proulx, falecido em 1993, mas que não disputou nenhuma prova da F-1, mas sim da Fórmula 3000. Ele foi contaminado pela namorada, uma francesa, e morreu aos 27 anos.
Mas voltemos a Beuttler: ele corria sob a bandeira britânica, pois seu pai era inglês e sua mãe escocesa.
Lorenzo Bandini
Bandini foi um piloto de Fórmula 1, que correu pelas equipes Scuderia Centro Sud e Ferrari. Nascido em 1935 em Al Marj, na Líbia, correu sob a bandeira italiana. Morreu em 1967, com apenas 31 anos e está enterrado na Itália. Vamos a mais um momento cultural: em 1835, o Império Otomano estabelece controle sobre a Líbia, apesar da resistência dos muçulmanos sanusis. Em 1911, a Itália inicia a Guerra Ítalo-Turca e no ano seguinte a Turquia renuncia a seu direito sobre a Líbia em favor da Itália. Depois de idas e vindas, guerras e invasões, em 1951 a Líbia declara sua independência. Por isso Bandini corria sob a bandeira italiana, já que quando ele nasceu o país pertencia à Itália.
Bandini disputou 42 provas de Fórmula 1, ganhou uma corrida, e subiu um total de 8 vezes ao pódio. Morreu no GP de Mônaco em maio de 1967 ao bater na chicana do Porto. O Ferrari pegou fogo que deixaram o piloto com 70% do corpo com queimaduras de terceiro grau e ele morreu três dias depois.
Romain Grosjean
Grosjean nasceu em 1986 na Suíça, mais exatamente em Genebra. Correu na Fórmula 1 pela Renault, Lotus e Haas e hoje disputa a IndyCar Series pela equipe Dale Coyne Racing. Foi campeão da Fórmula 3 Euro Series em 2007 e campeão das categorias GP2 Asia Series e GP2 Series em 2011.
O motivo de Grosjean correr com a bandeira da França é simples e foi explicado de forma bem direta pelo pai do piloto, o suíço Christian Grosjean numa entrevista ao jornal Blick:
“A Suíça nunca ajudou meu filho ao longo de sua carreira, enquanto os franceses ajudaram. Meu coração bate pela Suíça, mas você precisa ser leal e permanecer leal ao país que lhe deu uma chance. Em 2003 Romain foi o campeão do Formel List, mas o dono da equipe suíça, Andreas Jenzer, disse que não via talento em Romain, embora alguns anos depois ele pelo menos se desculpou. Em 2005 pedimos a ajuda da Red Bull, só a Renault nos ajudou”, disse ele. Mais claro e objetivo, impossível.
Pierre-Henri Raphanel
Este ex-piloto de Fórmula 1 nascido em 1961 em Argel, na Argélia, correu sob a bandeira francesa. Mais uma vez, vou simplificar a história: a Argélia foi uma colônia francesa, em 1947, a França estende a cidadania francesa aos argelinos. Em 1958 um golpe militar é o ponto mais visível de uma guerra que já se estendia por anos. No ano seguinte, o presidente francês Charles de Gaulle concede autodeterminação aos argelinos, mas somente em 1962 é acertado o Armistício de Evian, com o reconhecimento da independência argelina pela França em troca de garantias aos franceses na Argélia. A República Popular Democrática da Argélia é proclamada. Mais um caso de piloto que nasce num país que posteriormente passa a pertencer a outro ou torna-se independente.
Ah, ele participou de 17 provas de F-1 entre 1988 e 1989 pelas equipes Coloni, Rial e Larrousse, mas não marcou nenhum ponto.
Mudando de assunto: sou um pouco desligada de datas comemorativas e o Dia dos Pais é uma delas, depois que perdi meu pai e meu sogro. Mas gostei da piadinha autoentusiasta.
NG