Em setembro do ano passado o Tesla Model 3 foi o modelo mais vendido na Europa, quando foram licenciadas 29.367 unidades, enquanto o Peugeot 208 figurou num distante segundo posto, com 10 mil unidades a menos, mas ainda assim fechou o ano na frente. A VW enfrentava sérias dificuldades com o abastecimento de semicondutores, que se repetiu por vários meses, o que limitou a participação de seus best-sellers.
Porém, esses números ganham um outro significado quando entendemos que esse desempenho estupendo da Tesla foi de uma marca americana, em solo europeu, com modelos vindos da China (a fábrica de Berlim ainda estava em aceleração de ritmo de produção) e mais, um modelo elétrico batendo todo mundo, principalmente os de motores a combustão.
Ao longo de todo 2022 os modelos BEV (totalmente elétricos) responderiam por quase 14% do mercado, há muitos incentivos de governo misturados, o custo de um BEV ainda é bastante superior a um equivalente a combustão, principalmente por conta da bateria, mas o fluxo de dinheiro de governo entrando para estimular as vendas de elétricos segue a pleno, não só em abatimentos no preço de venda, como também em mudanças na linha de produção das fábricas, instalação de fábricas de baterias e de rede de recarga.
Os fabricantes ali instalados trabalham com a visão de que 2030 a produção de modelos com motores a combustão será residual (quase totalmente destinada à exportação para os mercados que ainda os consomem). Outro número que vale a pena deixar aqui registrado, Akio Toyoda, então presidente-executivo do grupo Toyota, declarara que seriam necessários investimentos da ordem de € 16 bilhões somente em postos de recarga de BEVs e PHEVs (híbridos plugáveis, com recarga elétrica) em todo o continente europeu. Em reais isso bate nos 90 bilhões.
Em outubro do ano passado a Anfavea lançava um documento aqui com suas previsões sobre a eletrificação e, timidamente assumia que aqui haveria maior participação de BEVs somente a partir de 2035. Esse documento foi bastante debatido por alguns dos escribas do AE e foi então que lançamos na mesa alguns fatores que jogam contra essas previsões, no sentido de que a eletrificação aqui acontecerá bem antes.
Há que se excluir das previsões aquilo que chamamos de wishful thinking (ou sonhos de uma noite de verão), que é quando misturamos desejos, vontades e visões que favoreçam aquilo que pensamos.
Vou lançar aqui dois fatores bastante importantes que se chamam ciclo de produto e ciclo de vida de produto, que são os que norteiam as engenharias dos fabricantes de veículos, e adicionar outro, o Gol foi o último VW com projeto brasileiro feito para o Brasil e morreu em dezembro. O Fox foi outro e deixou a produção dois anos antes. Ambos usaram a base de uma plataforma global da matriz (PQ24), porém todo o conceito, estilo e características foram concebidos exclusivamente para atender as demandas do público brasileiro. Acredito esses fatores foram primordiais para o estrondoso sucesso de ambos e não entrarei no mérito do porquê a VW abandonou os produtos jabuticabas.
Quando olhamos o ranking dos mais vendidos dos últimos três anos, temos o HB20, modelo da Hyundai sobre base coreana, é também um produto jabuticaba. O Onix divide engenharia, conceituação e plataforma com similar chinês e também é produto jabuicaba, Argo idem jabuticaba e origem numa mistura de produtos de seus antecessores. Strada também. Fica fácil de perceber que a “jabuticabazação” de automóveis é fundamental para ter sucesso de vendas por aqui, principalmente para os produtos de maior volume, que são os que sustentam as linhas de produção cheias. Por outro lado, os volumes totais de produção e vendas no Brasil estão hoje à metade do que foram até 2013, algo na casa dos dois milhões anuais.
Portanto, excetuando o caso dos Fiats, todos os demais modelos de sucesso e volume vendidos aqui têm origem de seu projeto em plataformas europeias, ou sul-coreanas (no caso da Hyundai).
Voltando então ao ciclo de vida de produto, e quando essas matrizes estiverem fazendo somente BEVs? De onde virão os veículos feitos aqui, sabendo que cada um dividindo uma pequena fração dos dois milhões de vendas não lhe dá volume mínimo para amortizar investimentos na renovação do produto?
Saiamos um pouco dos carros e falemos dos seus motores e teremos situação similar, ou seja, 100% dos motores fabricados e vendidos e empregados no Brasil têm origem de suas matrizes na Europa e Ásia. O ciclo de vida de um motor difere do de veículo que o potencia, porém ainda segue a regrinha do ciclo de vida e estes por sua vez são definidos também por leis de emissões de gases, além das demandas naturais de evolução de desempenho e consumo ao longo do tempo.
Porém, como dito lá em cima, se a partir de 2030 não haverá mais novas famílias de motores a combustão saindo do forno na Europa, fica lógico deduzir que essa última fornada terá sido concebida entre 2024 e 2025, que são o ano que vem! Isso mesmo. Sem novos motores e sem sua evolução, como lidam os fabricantes que planejam seus produtos para estas terras e outros países de mercados emergentes (antiga designação de terceiro mundo)? A Renault anunciou recentemente uma associação com um fabricante chinês, mas, e os demais fabricantes?
Voltando para o ciclo de vida dos produtos, os motores lançados na Europa em 2025, na última fornada, serão os que servirão de base para potenciar os modelos fabricados na América do Sul e dali para frente a vida deles será não muito maior que oito ou dez anos.
Nesse meio tempo, acredita-se que o custo de produção de um BEV terá despencado e já será inferior a seu equivalente a combustão, portanto não precisará de estímulos dos governos.
Então o Brasil e mercados emergentes têm não muito mais que dez anos para que possa oferecer modelos modernos e competitivos e, ou ele parte para uma eletrificação a sério, ou terão de recorrer a governos para pedirem proteção tarifária, para que modelos BEVs não invadam aqui e não acabem com nossa indústria —e emprego.
Passou da hora de o pessoal da Anfavea começar a pensar a sério e o que vemos são diversas narrativas saindo das RPs (relações públicas) de que pá-pá-pi pó-pó-pó nossa matriz energética, nosso álcool em abundância, etc., um amontoado de papos furados enquanto o mundo já está em nova página rodando a pleno.
É bom que os brasileiros se lembrem que o Proálcool foi um programa de governo que nunca levou em conta qualquer exercício de futuro na sua concepção, foi tudo na base do improviso mesmo, não houve programa industrial e de energia que fizesse o planejamento disso e, sim eles vieram depois, a reboque, para ver como fazer com postos, tecnologia, etc. O Brasil nunca soube planejar o futuro e não será hoje que o fará. Discutir 2035 aqui é menos vago que 2050, um briga com o outro e nada sai do papel.
Considerando a extensão territorial dos 27 países-membros da comunidade europeia ser mais ou menos da mesma ordem de grandeza da nossa aqui e uma frota veicular talvez seis a oito vezes maior, aqueles 90 bilhões de reais da previsão do mandão da Toyota necessários para eletrificar uma rede de postos de abastecimento podem ser um número de similar magnitude a colocar por aqui. Que sairá de nossos bolsos todos sabemos, que será na base do improviso, idem, uma desordem generalizada na distribuição, também, mas ninguém consegue saber como.
Resumindo, a eletrificação no Brasil encontra-se em fase preliminar de discussão, zero definições, num país EM que planejamento a médio e longo prazos inexistem, mas sabemos que seremos forçados a receber os BEVs aqui por não haver novos modelos-base de automóveis nem de motores disponíveis nos países de origem.
E que tudo mudará quando os BEVs estiverem mais baratos que seus equivalentes a combustão. Quisera eu ouvir ou ver na imprensa que há um programa em vias de ser implementado de instalação de fábricas de baterias, de onde virão as matérias-primas para essas baterias e quais fabricantes serão os primeiros a produzir BEVs no Brasil.
Que por enquanto os PHEVs mostram-se mais viáveis para nossas circunstâncias, todos sabemos, assim como todos esses não mais existirão num prazo entre 10 e 12 anos.
Uma coisa é certa. Ou escutamos as batidas do futuro na nossa porta, e agimos, ou s disrupção do automóvel e sua indústria, como conhecemos há 120 anos, será muito penosa.
MAS