Este texto teve como gatilho a coluna “O editor-chefe fala”, do Bob Sharp de 30/07/2023 sobre o uso das vias públicas para as atividades de lazer e esportivas por outros veículos não automotores e até mesmo por pedestres (estes incluídos aqui por mim). O gatilho se deu porque o artigo coincidiu exatamente com o passeio que fiz com minha família no dia anterior à sua publicação e ficou parecendo que o autor estava comigo no carro.
Saí da capital em direção a Itu e decidi que queria também aproveitar não só o destino, mas também o trajeto, como todo bom entusiasta do volante pensa. Logo, deixei de lado Rodovia Castello Branco ou Rodovia dos Bandeirantes e decidi utilizar a Estrada dos Romeiros/Estrada Parque desde Santana do Parnaíba, passando por Pirapora do Bom Jesus e Cabreúva. Esse trajeto não abrange a Maison Blanche e a curva AE, pois já vínhamos na Estrada dos Romeiros desde Santana de Parnaíba ao invés de pegá-la já pelo km 48 da Castello Branco.
O trajeto não foi novidade para mim, pois já havia feito todo esse percurso há alguns anos e sabia que ele muda radicalmente dos dias da semana (ocasião que o fiz pela longínqua última vez) para os finais de semana devido à intensa presença de pedestres em romaria e/ou ciclistas esportistas. Por esse motivo, já saí “ajustado” com a “chavinha” virada na cabeça para, ao invés de curtir grandes acelerações laterais e as deliciosas transições rápidas de relevo juntamente com as curvas, curtir mais a paisagem com a família em um passeio menos emocionante e mais contemplativo. Tudo para não “estressar” mesmo antes de chegar ao destino, ainda que a criançada já se mostre desde sempre apta e adepta dos passeios “à moda”.
Porém, devido aos “inquisidores” que sempre aparecem de onde menos se espera, antes do relato propriamente dito, preciso colocar minha vivência sobre as duas rodas a pedal, demonstrando que já experimentei o “outro lado do balcão” e que quase sempre é a precursora da nossa paixão pelos carros e demais semoventes. E comigo não foi diferente: desde a infância a bicicleta foi apenas o primeiro degrau na escalada pelos maravilhosos inventos que o homem foi capaz de criar para “encurtar” distâncias e lhe trazer liberdade.
Já participei de competições de ciclismo de rua no passado (sempre com as vias fechadas pelo órgão competente) e até mesmo da importante prova “9 de Julho”, mas nunca participei de “grupos”. Depois de muitos anos sem praticar, resolvi que iria voltar a pedalar por lazer e como atividade física. Comecei a acompanhar aqueles grupos que saem à noite para pedalar na cidade como forma de garantir um pouco mais de segurança no que diz respeito à segurança pública.
E no período que pedalei nesses grupos de 30 a 50 ciclistas em vias públicas (sem nenhum tipo de batedor ou autorização municipal específica), a visão que ficou para mim é a mesma daquele estereótipo que fazem do motociclista entregador quando se acidente na rua: o pessoal não segue a regra e sentem-se fortes, valentes, por estarem em grande número, pelo fato da bicicleta não possuir fácil identificação como os veículos que pagam imposto (leia-se placas) e valendo-se daquela máxima com um sem-número de exceções — que constam inclusive no CTB — de que o menor tem prioridade sobre os maiores.
Nunca entrou na minha cabeça o que “nos” dava o direito, por exemplo, de continuar a cruzar o semáforo que já havia passado a vermelho mesmo que houvesse boa parte do bloco ainda por passar. Também ficava constrangido quando, devido ao bloco de bicicletas que ocupava toda a faixa da direita de uma avenida, algum veículo precisava parar (imobilizado mesmo) na faixa adjacente à esquerda porque queria fazer a conversão à direita e todo aquele pelotão de bicicletas não permitia que ele se colocasse na faixa correta para a conversão e ficava bloqueando mais uma faixa da avenida (lembrando que o CTB proíbe os caminhões, por exemplo, de andarem em fila indiana muito próximos entre si justamente para que os veículos menores possam se intercalarem em situações análogas.
O exemplo derradeiro era haver uma avenida no trajeto que possuía ciclovia (sim, não era uma ciclofaixa, mas uma ciclovia totalmente separada da avenida) e aquelas dezenas de bicicletas mantendo-se ocupando uma faixa de rolamento que poderia ser utilizada pelos carros. Eu ficava envergonhado daquilo. Como resultado, preferia sair com mais 3 ou 4 vizinhos apenas e não me sentir o gerador do caos no trânsito. Pelo contrário, a sensação de fazer parte do trânsito era muito maior nessas condições.
Posto essa minha visão prévia, fui para a Estrada dos Romeiros e deparei-me com uma multidão de ciclistas indo e voltando naquilo que parecia ser algum evento, pois havia muitos fotógrafos em vários pontos com suas teleobjetivas (sem absolutamente nenhuma faixa ou placa informando, por isso tenho minhas dúvidas se era um evento). Não havia NENHUM veículo da polícia rodoviária ou das secretarias de trânsito dos municípios cortados pela estrada em nenhum trecho e os grupos de ciclistas ficavam circulando de forma bem aleatória: grupos/blocos grandes, blocos menores, alguns em fila indiana, outros já ocupando toda a largura da faixa de rolamento.
O lado bom foi que a estrada estava deserta de carros. Dificilmente via-se outros carros transitando. Toda generalização é burra, mas é fato que alguns maus elementos sempre são responsáveis por toda uma má fama que certas “categorias” acabam levando. E com os ciclistas não seria diferente. Alguns até sinalizavam com a mão que poderia ultrapassá-los e avisavam os demais do pelotão sobre haver um carro “estranho” atrás, enquanto outros faziam questão de não se alinharem atrás dos demais e ficarem próximos à faixa central da via mesmo após notarem a presença do carro atrás, bem ao estilo “curtindo meus 5 minutos de estrelato”. Aos primeiros, aquela buzinada de agradecimento ou o aceno. A estes últimos, o desejo de sempre “toparem” com motoristas pacientes…
Ao final do trajeto, o saldo foi positivo, pois os blocos eram relativamente pequenos e acabavam se comportando como um caminhão lento à nossa frente – ou no sentido contrário. Pelo pouco movimento de veículos automotores, ficou fácil ultrapassá-los. Porém, como em qualquer situação de ultrapassagem em via simples de mão dupla, não se deve “fazer hora” na contramão e as arrancadas vigorosas de trás dos pelotões para aproveitar as curtas retas da estrada muitas vezes não são compreendidas pelos ciclistas que “parecem” não ter CNH (e por isso poderiam se passar por ignorantes no sentido de desconhecer), mas que no final do “passeio”, acabam colocando as magrelas nos suportes instalados nos seus carros (muitos de valores proporcionais aos das caras bicicletas utilizadas) estacionados tanto em Cabreúva como já em Itu.
Penso o seguinte: aqueles que sinalizam e facilitam o uso COMPARTILHADO da via por todos os veículos (seja tração humana ou automotores) devem fazer parte do grupo que se sente PARTE do todo. Já aqueles marrentos devem ser representantes da MINORIA BARULHENTA que não está interessada em compartilhar de fato, mas em PRIVILEGIAR as próprias necessidades. No fim, sempre tem a ver com a educação de valores da população e o egoísmo que precede a conveniência: o pedestre que reclama do carro que não parou antes da faixa para ele atravessar muitas vezes é o motorista que está ao celular atrás de vidros absurdamente escurecidos (para ninguém observar a caca que está fazendo e não o reconhecer) que sequer nota o pedestre na esquina aguardando uma oportunidade de passar também.
Quando mais pessoas praticarem o oposto disso, que poderíamos chamar de empatia, talvez, aí comece a melhorar a convivência. Esta é a única maneira que vejo de todos conviverem de forma harmoniosa. Toda vez que procuram impor mais restrições a uma categoria para privilegiar a outra, pavimentam o caminho para mais ranço e impaciência em relação àquele favorecido. Não faz nenhum sentido reduzir mais e mais a velocidade das vias para, no fim das contas, nivelar todos por baixo: não dá para deixar as vias forçosamente tão lentas a fim de que os carros circulem na velocidade das bicicletas.
Quando se trata de mobilidade, o progresso, em regra, está ligado ao “encurtamento” das distâncias. E por isso usei as aspas, pois não é possível reduzir as distâncias físicas entre duas localidades, mas sim o tempo necessário para cobrir essas distâncias. E como na simples fórmula matemática, adivinhem qual a variável que sobrou para mexer a fim do tempo reduzir? Alguém acha que os pedestres (para citar o mais fraco na escala de força) ficariam felizes com o ônibus que eles – ou nós – pegamos para “encurtar” um trajeto circulasse apenas na velocidade das bicicletas?
Apesar de eu às vezes também brincar de “milleage” e tentar fazer o menor consumo possível ao final do trajeto, costumo dizer que eficiência mesmo é cumprir um trajeto no menor tempo possível, afinal de contas, se fosse para gastar o mínimo possível ($) e sem restrições de tempo disponível, iria a pé ou de bicicleta… Precisamos, dentro do razoável, utilizar menos o excludente (um OU outro) e partir para a real inclusão do “um E outro”.
Opiniões à parte, no final de tudo todos saíram satisfeitos: ciclistas curtindo o “pedal” em uma bonita paisagem, papai levando a família para passear no melhor jeito entusiasta e o sol brilhando para todos. Utilizando a estrada menos veloz (e por isso mais desprezada pelos motoristas), acabou-se fazendo o trajeto mais prazeroso. E como bônus, a estrada menos espaçosa e estruturada (em que pese a excelente pavimentação e sinalização que atualmente a Estrada dos Romeiros possui), pode se tornar a opção mais econômica pela distância mais curta e ausência dos extorsivos pedágios paulistas.
Achei que trocando a velocidade constante das grandes rodovias pelo sobe e desce, freia e acelera das vias de pista simples o consumo aumentaria sensivelmente, mas o que se viu ao final dos mais de 100 quilômetros foi a excelente marca de 15,1 km/L, mesmo sem brincar de “milleage” e competindo comigo mesmo. Realmente, menos é mais.
“Avatar”
Santo André – SP