Poucos pilotos brasileiros foram tão dedicados à preservação da memória do automobilismo brasileiro quanto o paulista Bird Clemente (foto de abertura) que faleceu domingo. A herança que Bird deixa é o exemplo de sempre valorizar o nome dos seus contemporâneos em prejuízo de sua própria importância em um ambiente marcado por egos geralmente maiores que a relativa grandeza de seus personagens. Com raras aparições em monopostos, Clemente foi o primeiro piloto profissional do País, mas jamais se aventurou por lançar-se no automobilismo internacional. O motivo para isso era dos mais frugais, como ele declarou em um texto em primeira pessoa publicado na revista especializada Curva3:
“Eu nunca quis me sujeitar aos sacrifícios que os pilotos faziam para ir correr na Europa. Sempre preferi permanecer no Brasil, perto da minha família e no conforto do meu lar.”
Após algumas corridas como amador, algumas delas pilotando o carro de amigos que apostavam na sua habilidade ao volante, Bird foi convidado a correr pela equipe oficial da Vemag, junto com Mário César de Camargo Filho. Umas das primeiras, senão a primeira, atitudes de Luiz Antônio Greco quando assumiu o comando da equipe Willys após a morte de Christian Heins, foi contratar Clemente e oferecer-lhe emprego com carteira assinada e carro de empresa, no caso, um Willys Interlagos. A parceria com Greco abriu caminho para ele celebrizar o número 22 a bordo desse esportivo fabricado no Brasil sob licença da Renault. A parceria só foi interrompida quando a Ford adquiriu a Willys e, anos depois, interrompeu suas atividades de competição no Brasil. Depois disso, Bird competiu com um Chevrolet Opala, usando o número 80 e fazendo parceria com seu irmão Nílson.
Fanático por automóveis, herança do pai argentino que acompanhava as corridas disputadas no país vizinho através de um rádio de ondas curtas, Clemente chegou a ter negócios ligados à sua profissão: teve uma loja que vendia equipamentos esportivos e carros de rua modificados para terem melhor desempenho. Por muitos anos manteve uma coleção de carros antigos bastante significativa, hoje transferida para colecionadores variados.
Quem o viu correndo em Interlagos jamais esquecerá o arrojo de seu estilo de pilotagem: pode-se dizer que foi Bird quem fez os brasileiros conhecerem a arte do drift, manobra que consiste em fazer as curvas com o veículo totalmente de lado. O recurso foi explorado por causa de um cenário diametralmente oposto ao que caracteriza a modalidade atualmente, com carros superpotentes e pneus largos.
“Era a melhor maneira de compensar a pequena potência e torque dos motores que equipavam nossos automóveis na época, no caso dos Renault, estou falando de motores de 845 cm3, ou um litro, no máximo”, me explicou Bird uma vez. Ainda nos tempos da Willys, ele foi convidado a participar de um inédito curso de pilotagem de pilotagem organizado pela revista Quatro Rodas e aberto a brasileiros com boa experiência de pista. Quando o instrutor italiano Piero Taruffi, também piloto, insistiu que o que Bird fazia estava fazendo errado, ele lançou um desafio para ver quem fazia a curva 3 mais rápido. Bird saiu-se melhor entre todos.
Os pneus da época eram radiais de primeira geração e apenas as equipes e pilotos mais abastados podiam se dar ao luxo de trazer material importado e com dimensões e estrutura mais apropriadas para competições. A chegada dos pneus slick, que têm a banda de rodagem lisa e por isso só podem ser usados em piso seco, foi o fator determinante para Bird encerrar sua carreira de piloto.
Nem por isso ele se afastou das pistas: desde que pendurou o capacete, Bird Clemente seguiu trabalhando em prol do automobilismo. A cada oportunidade enobrecia os feitos dos seus colegas de pista e sempre os motivava a aparecer em encontros e eventos ligados ao automóvel. Também escreveu um livro, “Entre Ases e Reis”, em parceria com o jornalista e ex-piloto Bob Sharp. Sempre falou com carinho de todos eles, em especial de Wilsinho Fittipaldi, que considerava um irmão menor, e seu irmão Emerson:
“O Emerson é uma figura carismática, ele empresta a majestade a quem quer que esteja ao seu lado.”
Bird Clemente, com seu jeito manso de falar, enobreceu a muitos mais pilotos, amigos e incontáveis fãs.
WG
A coluna “Conversa de pista” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.