Estive recentemente na Argentina, a passeio e para visitar a família. Fazia pouco mais de quatro anos que não ia lá e acho que nunca havia ficado tanto tempo sem ir. Desta vez foi uma somatória de fatores: trabalho, problemas de agenda e Covid — a Argentina ficou totalmente fechada durante um bom tempo. Mas, finalmente, deu certo.
Há décadas tenho um acordo tácito com meu marido: quando vamos lá sempre ficamos em Buenos Aires tempo suficiente para que eu possa ver minha enorme família, passear um pouco pela cidade e também viajamos pelo país. Foi uma forma que encontrei de que ele não tivesse hipotecadas suas férias exclusivamente com minha família e minha cidade natal e, de fato, tem dado supercerto.
A duração e o lugar aonde vamos depende da época do ano e do tempo que temos. Já revi lugares para onde não ia havia muitos anos e fui para outros que eu mesma não conhecia. Com isso, já estivemos em Bariloche, Mendoza, no lindo e diferente Noroeste argentino (sobre o qual escrevi aqui), Ushuaia, Calafate…Desta vez ficaríamos menos tempo e, pela época, escolhi conhecer o Pantanal argentino, os Esteros del Iberá. Primeira digressão: Iberá, em guarani, significa “águas brilhantes”, algo fácil de entender quando se vê o pôr do sol sobre a água.
Optei por ir de avião para poupar tempo, pois são mais de 800 quilômetros de caminhos bastante difíceis desde Buenos Aires até o aeroporto de Posadas, capital da província de Misiones, o lugar mais próximo dos Esteros. Mas por “mais próximo” não achem que é aí do lado. Fizemos 200 quilômetros de lá até a “colônia” (um lugar menor do que um povoado) Carlos Pellegrini, na província de Corrientes que, junto com as províncias de Misiones e Entre Ríos, forma a Mesopotâmia argentina.
Colônia Carlos Pellegrini fica, em linha reta, mais ou menos na altura de São Borja, no Rio Grande do Sul e é o lugar onde estão as pousadas e de onde saem os passeios para os “esteros”, pois está bem à margem do pantanal.
Depois do aeroporto, seguimos pela rodovia 12 rumo ao Sul por uma estrada de asfalto — mas somente os primeiros 60 ou 70 quilômetros. Saímos da província de Misiones e entramos em Corrientes. Na fronteira entre as duas, a estrada já perde o acostamento e a qualidade do asfalto parece piorar.
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Mas nada que nos desse a menor ideia do que iríamos encarar nos seguintes 130 quilômetros, quando saímos da 12 e entramos na rodovia 40. Talvez se eu contar logo que levamos pouco mais de 3 horas para percorrê-los, com tempo bom, sem chuva, sem congestionamento nem nenhum contratempo, meus caros leitores tenham alguma ligeira noção do que quero dizer.
Poucas vezes vi tantas mudanças de caminho, todas indo do péssimo para o pior e voltando para o péssimo. Passamos por areia, pedras, terra vermelha, argila… tudo em pista simples, mas larga o suficiente para que dois veículos passem ao mesmo tempo, mas sem acostamento.
Lembrem-se daquilo que minha cara-metade diz sempre: os roteiros de Noratur não são para os fracos. A única vantagem é que como quase tudo na Argentina (exceto o Noroeste), é tudo plano. De resto, é mesmo para aventureiros.
O caminho é bonito, mas dirigir e olhar é impossível para quem não estiver muito bem treinado o que, felizmente, era o caso do motorista que eu havia contratado, o excelente Oscar da empresa Mbarete, craque na direção de veículos 4×4 nas terríveis condições destes caminhos.
E eis aqui uma curiosidade: as condições de trânsito de toda esta região são tão cruéis que as locadoras de veículos impõem uma pesada sobretaxa (coisa de uns 5.000 euros, coisa de 27.600 reais) a quem for dirigir nestas estradas dos Esteros.
Assim, a opção para andar por estes lugares é ir com o próprio veículo ou fazer como eu fiz: contratar alguém experiente e com veículo próprio. Era condição sine qua non que fosse 4×4, o que se revelou imprescindível.
Todo o caminho é feito margeando os “esteros”, uma espécie de pântano, mesmo. Na ida vimos vários animais, alguns vivos, outros mortos, como jacarés, capivaras, raposas, veados, cobras e vários tipos de pássaros, além de carneiros, vacas e cavalos. Depois que saímos do asfalto nada de posto de gasolina, restaurante, bar, borracharia, nada de nada. Apenas algumas porteiras de fazenda. Só isso durante várias horas.
Aliás, o mesmo em Carlos Pellegrini. Seus menos de 1.000 habitantes não têm posto de combustíveis, farmácia, banco, caixa automático. Nada. Apenas algumas pousadas, algumas com pequenos restaurantes, um par de vendinhas e encontrei duas lojinhas de artesanato, mas em todos os dias que estivemos estiveram fechadas.
A vida é bem tranquila em Colônia Carlos Pellegrini e voltei com gosto da minha infância me deliciando com comidas caseiras na simpática pousada em que ficamos, onde as refeições eram feitas com muito carinho pela proprietária.
Não há nenhuma rua asfaltada e o povoado tem uns 8 quarteirões por 8, e, como tudo na Argentina, segue o traçado quadradinho das cidades. Não há calçadas, há muitos cachorros nas ruas, as crianças andam livremente, jogam futebol na rua e todos se cumprimentam quando cruzam com alguém, mesmo que seja um completo desconhecido como nós. Foi bom lembrar esses costumes.
A energia elétrica pode falhar e então entra em funcionamento o megagerador a diesel que a cidade tem. Nas casas e nas pousadas é comum que o aquecimento da água do banho seja elétrico 1 o que faz todo o sentido. Acho até que deveria haver energia fotovoltaica mas, lembremos que a região é muito simples.
As ruas têm nomes de animais da região — geralmente na língua indígena, que é o guarani — e é muito fácil se movimentar de um lugar para o outro. Obviamente, não há necessidade de Waze — ainda bem, porque o sinal de internet é bastante ruim e em alguns lugares é totalmente inexistente. Nas ruas não há quase placas e nenhuma que indique velocidade máxima, proibição de estacionar, ou qualquer coisa assim.
E, na verdade, não fazem falta. Estaciona-se em praticamente qualquer lugar exceto, por óbvio, na frente das porteiras que, por sinal, estão sempre abertas, a velocidade máxima é aquela que as ruas de terra batida permitem…
Fizemos amizade com nossos vizinhos de pousada e acabamos pegando carona alguma vez com alguns deles pois éramos os únicos “desmotorizados”. Todos eram argentinos de Buenos Aires e estavam com carros próprios —nenhum com veículos 4×4, mas sedãs médios que enfrentaram valentemente as agruras da região.
Segundo nos contaram, o único inconveniente era ter de andar bem devagar. Os passeios no Iberá se resumem à Natureza. Há dois parques, o nacional e o provincial, de Iberá — em ambos o visual é parecido e a flora e a fauna também, o que muda é o tamanho – o Nacional é bem maior. Fomos várias vezes, e de várias formas, ao Parque Nacional. Passeamos a pé de dia, a pé de noite, a pé novamente de dia, de lancha — só não conseguimos fazer o passeio de caiaque porque começou a chover um dia e praticamente não parou mais.
Me senti como se estivesse dentro da Macondo de “Cem anos de solidão”, de Gabriel García Márquez. Nada que uma boa bota, casaco para chuva (leve, pois a temperatura lá é etíope e junto com os pernilongos faz uma combinação terrível) e bom humor não fizessem superar qualquer coisa.
Na falta de bota, uma vizinha de pousada usou boa parte de um rolo de filme plástico e embrulhou os tênis que usava. Adorei. Sempre acho que quando há boa vontade não há obstáculos para aproveitar um passeio.
Todos esses pequenos perrengues valeram a pena. O lugar é rústico e muito bonito, mas desconhecido de brasileiros (que estavam todos em Buenos Aires), mas onde encontramos alemães e franceses. Nos Esteros de Iberá vi a maior quantidade de jacarés de toda a minha vida. Em duas horas de lancha foram, fácil, uma centena. Capivaras perdi a conta.
A pé vimos em dois dias duas surucucus, felizmente dormindo placidamente, além de diversos tipos de veadinhos pantaneiros pequenos e de outra variedade bem grande. Pássaros e garças de sei lá quantas espécies, uma mais linda do que a outra e no passeio noturno, tivemos sorte de ver um gato-montês, uma espécie de gato selvagem de hábitos noturnos.
Faltou ver as lindas raposas cinzas e vermelhas — a única que vi estava parcialmente devorada à margem da estrada. E, ao contrário do pantanal brasileiro, no Iberá não há onças — o “yaguareté”, uma variedade menor do que a brasileira, está sendo reintroduzida numa área específica da região depois de ter sido praticamente extinto, mas ainda não são vistos por turistas.
Os veículos em Colônia Pellegrini são, em sua maioria, picapes cabine-dupla 4×4, mas vimos alguns sedãs e carros pequenos, populares mesmo. Um deles inclusive foi o que nos acudiu um dia de chuva para nos levar até o Parque Nacional já que a lama era demais para os cerca de dois quilômetros que tínhamos que vencer, a pé, desde nossa pousada. Foi bem fácil.
Pedimos na pousada ajuda, já que não há táxis nem Uber, e um morador vizinho se prontificou a fazer o trabalho por uma bagatela (claro, o câmbio nos era muito favorável). No vilarejo não há ônibus de linha e o transporte mais comum é a pé, mesmo, seguido talvez da bicicleta e do carro. Por óbvio, todo mundo entende um pouco de mecânica de veículos e tem em casa peças sobressalentes e pneus.
Nossa volta foi mais complicada, pois depois de muita chuva, a estrada era um perigo. Saímos com muitíssima antecedência para ir ao aeroporto de Posadas, mas os 140 quilômetros de terra, lama, areia e pedra nos levaram cinco horas – novamente com o valoroso Oscar que, não à toa, tem hérnia de disco somente de fazer esse percurso várias vezes por semana.
Os outros 60 quilômetros foram “apenas” sob muita chuva e vencidos em uma hora. Mas a parte da terra requer muita, muita perícia e um veículo em perfeitas condições e, como faz o Oscar, pelo menos dois estepes, uma bomba de encher pneu e uma pistola elétrica para tirar os parafusos da roda.
Observamos a forma de dirigir do Oscar: ele seguia exatamente o trilho marcado pelos veículos que já havia passado, mesmo quando a roda entrava até a metade nos sulcos. Deixava deslizar suavemente a picape sem corrigir bruscamente o volante. Eu, que ia no banco do carona, via pelo retrovisor a lateral do carro e até mesmo o pneu traseiro, tamanha a derrapagem, ainda que controlada. Fomos assim o tempo todo, deslizando suavemente para um lado e para o outro, sem correções bruscas, freadas ou sustos.
E, claro, as reduções de marchas e as passadas para cima eram constantes — melhor forma de tracionar mais completamente o veículo. Por mais que goste de dirigir, acho que foi um grande acerto ter contratado alguém da região para nos levar e trazer por esta região tão inóspita.
Vale a pena? Sim, com certeza, mas é viagem para quem gosta deste tipo de aventura e para quem já esteve em vários outros lugares. Não é para turistas amadores — ou seja, bem minha cara…
Mudando de assunto: Eu já havia achado o GP de São Paulo de Fórmula 1 excepcional, mas agora acrescento a ele a edição de Las Vegas 2023. Detestei tudo o que antecedeu a prova (exceto o show, que achei legalzinho), a pista problemática, a injusta punição a Carlos Sainz, a apresentação dos pilotos no estilo “Jogos Vorazes”… sei lá, gosto de corrida. Mas reconheço que a prova em si foi incrível, especialmente o final com a belíssima ultrapassagem de Charles Leclerc sobre Checo Pérez que, mais uma vez, estava desatento.
NG
A coluna “Visão feminina” é de exclusiva responsabilidade de sua autora.