Por Daniel Girald’
Uma obra de engenharia que às vezes parece ser injustamente subestimada. Mesmo tendo sido de enorme valor para a própria difusão do veículo motorizado de um modo geral em regiões onde o Ford Modelo T e até o Fusca e o Citroën 2CV foram incapazes de alcançar o resultado que tiveram nos respectivos países de origem, o motor da Vespa conseguia unir simplicidade e versatilidade em proporções que eventualmente até o idealizador do projeto da Vespa tenha ficado surpreso.
A necessidade de transporte barato na Itália do imediato pós-guerra, aliada a dificuldades na obtenção de algumas peças com um desgaste mais frequente para reposição, considerando tanto carros quanto motos de configuração mais convencional, certamente pesou muito a favor de um motor 2-tempos. Mesmo modesto e racional, incorporava soluções como arrefecimento forçado por turbina junto ao volante magnético que supria eletricidade para os sistemas de ignição e iluminação, aliado à transmissão direta para a roda traseira por engrenagens, portanto sem corrente.
E apesar da Vespa original de 1946 ter seguido desprovida de suspensão traseira até 1948, o conjunto motriz ter incorporado a função que caberia à balança de suspensão traseira em motos convencionais também foi uma medida que só reforça a genialidade do projeto do seu criador, o engenheiro Corradino D’Ascanio (1891-1981). Notável também àquela altura a Vespa ter estrutura monobloco.
Um motor tão compacto porém de incalculável valor tanto na reconstrução da Itália quanto na motorização de países tão diversos quanto a Índia, e até o Brasil onde a Vespa (e a Lambretta) eram praticamente um sinônimo de motos pequenas e econômicas antes da meteórica ascensão das indústrias automobilística e sobretudo motociclística japonesa como líderes mundiais.
É inevitável também fazer uma observação quanto ao uso do mesmo motor de scooter nas primeiras gerações do triciclo utilitários Piaggio Ape que, se por um lado sofriam pela ideia consolidada junto ao público brasileiro acerca da alegada “inferioridade” inerente a motocicletas e triciclos em comparação a um carro, por outro lado tiveram e ainda têm de certa forma uma importância na Índia talvez mais significativa que a alcançada pelo Ford Modelo T nos Estados Unidos, por mais que pudesse soar incrivelmente exagerado num primeiro momento.
No caso do triciclo, que no Brasil foi produzido na época, sob licença, pela Panauto S.A sob denominação comercial Vespacar, certamente a velocidade máxima ao redor de 60 km/h desencorajava a eventual pretensão de ao menos tentar o uso como veículo particular ou mesmo familiar devido à necessidade de um único veículo que atendesse tanto deslocamentos urbanos quanto trechos rodoviários ocasionais E até um Kombi “corujinha” que certamente era demasiado forçado para o motor de 1.192 cm³, que tinha que chegar ao menos perto de 100 km/h, causava menos receio de virar bola de futebol de caminhão do que o Vespacar.
Mas o mesmo projeto básico do veículo ainda segue em produção pela indiana Bajaj só com modificações pontuais, entre as quais o atual uso de motores 4-tempos tanto de ignição por centelha com opção pelo gás natural ou o gás liquefeito de petróleo (GLP, o “gás de cozinha” proibido no Brasil para veículos exceto empilhadeiras), quanto algumas versões Diesel que apenas pelo recrudescimento de normas de emissões efetivamente chegam a substituir o 2-tempos clássico.
Por incrível que pareça, mesmo considerando a defasagem normalmente ocorrida em relação a normas de emissões para motocicletas e similares, de certa forma terem sido produzidas versões do clássico motor da Vespa enquadradas nas normas Euro 3 para ser vendida na Europa de 2010 a 2017, foi um feito notável.
Tão notável quanto ter permanecido disponível para triciclos na Índia até 2020 quando as normas Bharat Stage 4, equivalentes à Euro 4, deram lugar às normas Bharat Stage 6 equivalentes à Euro 6. Já foi até experimentada a injeção direta e com um amplo uso de combustíveis gasosos para a operação como minitáxi. Este permanece extremamente popular tanto na própria Índia quanto nos principais mercados de exportação das cópias indianas do Piaggio Ape clássico.
Naturalmente, a simplicidade, até extrema, do motor 2-tempos ainda parecia ter aptidão de atender às preferências e necessidades de operadores mais austeros nas mais diversas regiões. Como a América Latina, região onde as condições econômicas e sociais nem sempre são favoráveis a uma reprodução tão fiel do American Way of Life (modo de vida americano) que tem no automóvel um dos principais expoentes.
O Brasil ter permanecido por muito tempo com a ideia da moto mais como um veículo recreativo e tratado com descaso os triciclos utilitários proporcionou a oportunidade para empresas de países como a Índia suprirem em parte essa demanda — até o cerco começar a se fechar com a proibição da importação e do licenciamento de motos e assemelhados novos com motor 2-tempos a partir de 2008, como na Colômbia, sob alegações de poluírem em demasia.
Por mais improvável ou absurda que possa soar qualquer alusão entre um triciclo utilitário que efetivamente sirva como uma ferramenta de trabalho em algum país andino e o sucesso comercial de picapes e utilitários esporte nos Estados Unidos junto ao público generalista, é inegável que o motor da Vespa atendeu também a necessidades de transporte intermediárias entre as motos e os carros compactos em ambiente urbano e periferias.
Ainda há reflexos mesmo após a substituição por motores 4-tempos motivada pelo enquadramento a normas de emissões mais recentes, embora o viés essencialmente utilitário de uma picape seja mais fácil para conciliar à imagem de prestígio desejada pela imensa maioria dos que adquirem um veículo para uso familiar, enquanto um triciclo seja tratado no máximo como “exótico”.
Em que pese a baixa velocidade máxima de um triciclo derivado da Vespa desencorajar seu tratamento como alternativa legítima — de baixo custo — a um carro tradicional, e tanto o Brasil quanto os Estados Unidos terem combatido durante a II Guerra Mundial em fronts externos, o motor da Vespa facilitou muito a reconstrução da Itália e influenciou uma motorização mais intensa do transporte.
Especialmente em regiões como a Índia, onde os triciclos “auto-rickshaw”, ainda usados como alternativa a um táxi normal e também exportados em grande escala para a mesma finalidade, tiveram origem no Piaggio Ape. Ou na Indonésia, onde persiste uma cultura forte de scooters, em parte pela antiga produção local da Vespa sob licença. Sem sombra de dúvida é um grande feito.
Com a indústria automobilística tratada pelo governo Juscelino Kubitschek como uma necessidade mais urgente do que a de motocicletas, chega a ser curioso o motor da Vespa clássica ter usado arrefecimento a ar forçado por turbina tal qual ocorria com o boxer da Volkswagen que equipou modelos tão icônicos como o Fusca.
Em que pese os motores 2-tempos de um modo geral serem às vezes tratados como “inferiores” devido à extrema simplicidade construtiva, a ponto de terem sido amplamente usados em carros subcompactos alemães imediatamente antes da Volkswagen, eles efetivamente conquistaram espaço no mercado.
A necessidade de usar óleo misturado diretamente à gasolina ou dosado automaticamente por uma bomba ser frequentemente retratada como um foco de poluição, são inegáveis as contribuições que deram ao transporte leve em diferentes partes do mundo, tanto durante momentos de recuperação econômica da Europa no imediato pós-guerra, quanto nos países “em desenvolvimento” ou subdesenvolvidos onde mesmo os automóveis convencionais mais básicos ainda são praticamente um artigo de luxo.
Enfim, por mais que pareça difícil furar algumas bolhas tão diversas quanto a de um agroboy que cultua picapes grandes, de um redneck americano cujo contato com o mundo é filtrado pela National Geographic, ou do brasileiro condicionado desde cedo a considerar uma moto como inerentemente inferior a um carro e um triciclo como mera gambiarra, na prática o motor da Vespa clássica considerando também as produções sob licença fora da Itália foi tão importante quanto outros ícones da engenharia como os motores do Ford Modelo T e o boxer da Volkswagen. E certamente mudou as vidas de muito mais gente mundo afora que os V-8 small-block da Chevrolet que são também muito usados para inúmeras finalidades fora do mercado automobilístico.
Daniel Girald’
Porto Alegre, RS
’Leitor assíduo do AE. Daniel fez um comentário tão longo para a matéria “Tenor ou orquestra filarmônica, o que melhor?” que seria incabível publicar. E foi tão bom e preciso que resolvemos publicar, com a sua devida autorização (Bob Sharp/editor-chefe)