Por “Fórmula Finesse”
O Ka XR é frequentemente lembrado como um carrinho sensacional, um esportivo sanguíneo como há muito não se via dentro do catálogo da Ford nacional. E era uma criação totalmente brasileira, feita por gente daqui, o ex-engenheiro da Ford e ex-colunista do AE, Carlos Meccia, contou como basicamente foi criado:
“O computador foi deixado um pouco de lado dando lugar ao feeling do engenheiro. Tudo foi feito no campo de provas, desde a construção do primeiro protótipo até o desenvolvimento completo das suspensões, freios, direção, relações de marcha, sistemas de admissão de ar e escapamento, sistema de arrefecimento e uma nova calibração do motor”. O resultado desse trabalho todo foi talvez o esportivo com a reputação mais feliz da Ford, pois o carro parece imune a contestações. Antes dele, Maverick GT, Corcel GT e a linha Escort XR3/Racer/RS sempre tiveram alguns apontamentos não tão elogiosos, algo que não acontece com o Ka XR, tido como um verdadeiro kart para as estradas.
Andando no Ford Ka XR
Nosso amigo Jeison Paim comprou recentemente um belo XR ano 2007, e resolveu me convidar para experimentar o carro, claro que disso resultaria um texto, pois vamos combinar que esse modelo merece uma matéria dedicada a ele. Ao entrar no Ka preto a gente começa logo procurando o ajuste de direção e do banco do motorista, mas para nossa surpresa, não existe esse tipo de ajuste nesse carro com intenções esportivas. Nada grave, e com o rodar dos primeiros quilômetros, percebe-se logo que banco e volante estão aonde deveriam estar em termos de altura e inclinação, sua ergonomia está correta, e apenas fortes preferências pessoais nesse quesito poderiam decepcionar o condutor.
A embreagem do carro estava agradavelmente leve e progressiva no primeiro contato, parecendo nova, contrastando com o pedal duro do acelerador – que é por cabo – que exige mais força que o normal para ser acionado. O acionamento do câmbio também é pesado para os parâmetros atuais (que estão em extinção, já que câmbio manual parece cada vez mais coisa do passado) .Ele realmente exige um certo empenho em todas as trocas, seu curso nos dois sentidos é bastante bom e o “H” básico é todo bem pertinho.
Mesmo assim, sem chance de errar uma marcha quando com o pé no fundo, momento onde as coisas podem dar errado. Não é um câmbio Volkswagen em termos de maciez e rapidez de engate, e parece realmente mais duro que a caixa das versões 1,0 desses Ford (Ka e Fiesta) que pude experimentar. Mas se o carro foi feito para andar mais forte que os Kas normais, comandos mais pesados são indicativos de que — no mínimo — existe um “popular” diferente aqui.
O volante de direção, apesar de idêntico em desenho às versões 1-litro, têm saliências com textura diferente no aro onde se apoiam as mãos em posição “9 e 15”, e isso ajuda bastante na acomodação dos polegares; não é exatamente o ideal, mas não compromete como o design geral do volante sugere. Outra coisa que chama a atenção é a “ausência” de painel na frente de motorista e passageiro, é tudo diminuto e recuado, a sensação é de estar andando em algo muito diferente, não existe a clausura dos carros modernos.
O encaixe atrás de painéis grandes que avançam para o motorista e passageiro tem-se em qualquer Ka, uma sensação de liberdade e de espaço para os movimentos que é bem peculiar, ainda mais quando se trata de um carro tão pequeno, resultado claro da inteligência do seu projeto original, assinado pelo designer francês Claude Lobo (1943-2011).
Dirigindo normalmente o carro, ainda sentindo-o nos primeiros quilômetros, nota-se que as marchas acabam rápido, e em pouco tempo já se está andando em quinta marcha. As trocas ainda são lentas e pesadas, mas o motor é esperto e cobre qualquer demora (intencional) nas mudanças; As primeiras subidas surgem e onde inicialmente se pensava em espetar a terceira para subir com mais força, começando a esticar realmente o motor, verificamos que podemos fazer o mesmo em quarta, pois o motor vêm cheio de saúde e vai ultrapassando todo mundo que “anda normal”.
Os 93 cv do motor 1,6 Zetec Rocam (95 cv nos primeiros) podem parecer ínfimos em termos de números, só que o Ka XR é leve e pequeno, seus dados divulgados de desempenho são virtualmente idênticos aos do Gol GTI 8v AB9 (o popular “bolinha”, a segunda geração) de poucos anos antes do XR — um esportivo caro e de renome na época — e 186 km/h de máxima nesse diminuto carro devem proporcionar emoções incríveis. No entanto, desempenho em linha reta é o que menos interessa no Ka XR; apesar das retomadas e arrancadas fortes, a melhor parte da sua fama advém do fato de ser um carro sensacional nas curvas, no manejo na estrada e na sua grande capacidade de entreter o motorista.
Estrada com chuva
Chegando ao trecho destinado à avaliações mais quentes, o céu decidiu desabar forte, botando mais pressão e responsabilidade sobre mim, mas confiamos no pedigree do carro e fomos em frente. Começando pela direção, ela nem parece assistida hidráulica, pois o sistema estava tinindo ao não apresentar variação alguma na força da assistência, e o manejo não era exatamente leve, bem diferente das direções eletroassistidas atuais.
Andando sob chuva forte o carro avança tranquilo, mas pouco podemos fazer além de esticar algumas marchas até o limite de corte, caçando o tempo todo possíveis pontos de aquaplanagem. O motor gira contente e feliz o tempo todo, e não apresenta a mínima hesitação ou buracos ao solicitarmos potência pelo acelerador, já que nesse “antigo”, a injeção eletrônica já é uma realidade há bastante tempo.
Aproveitamos o piso molhado, agora com a chuva cessando, para fazermos algumas arrancadas realmente mais quentes; com menos aderência, o esforço sobre as homocinéticas e câmbio seria menor. Claro que o carro sai patinando uma barbaridade, mas nossa intenção não era medir tempo, mas sensações, e surpreende como a terceira marcha acaba muito rápido, quase consumindo o mesmo tempo que a segunda marcha exige.
É sério, parece quase uma moto: a primeira termina normal, a segunda marcha vem forte pedindo logo a terceira, esta também acaba rapidinho (parecendo uma “segunda marcha e meio”) e a quarta grita para ser chamada, a essa altura — sempre com o pé no fundo — o velocímetro aponta como limite os 120 km/h em terceira marcha, o que não é de modo algum uma marca elevada, mas a facilidade com que chega a ela é que surpreende para um “inofensivo Ford Ka”.
A quarta vem cortando o motor nos 160 km/h indicados e é hora de aliviar, pois o pequeno Ka começa a ficar um pouco sensível demais na pista molhada. Engata-se a quinta, também pesada no acionamento, para refrescar o motor.
As primeiras curvas começam a ser feitas com a devida cautela, ainda tateando a aderência provável do asfalto molhado. Até aqui, o carro vai mantendo uma compostura exemplar. A caixa de direção, apesar de não ser um grande exemplo de rapidez (tiveram que alongar a relação), não tem ponto baixo algum, é virar o volante e a resposta é imediata; os freios sem ABS são realmente surpreendentes. Aumentando gradativamente a velocidade, aumentava-se também a exigência no pedal do freio, e nas descidas e curvas curtas que se seguiam, já num ritmo não muito recomendável para carros mais normais, o pedal do meio nunca falhou: sem a mínima ameaça de travamento, a velocidade era cortada com muita facilidade e o pé sempre sabia qual sensibilidade encontraria lá embaixo.
Com confiança adquirida nos freios, passamos a andar um pouco mais forte, agora buscando mais velocidade de contorno nas curvas menos perigosas de ampla visibilidade, tentando ver onde a quebra de aderência poderia ser alcançada naquelas condições. E amigos, mesmo com a pista molhada e escorregadia, o Ka XR parecia meio imperturbável às provocações. Em longas “retas-curvas” se soltava a terceira para quarta com o pé no assoalho e aparecia numa breve ciscada da frente, mas tudo sob controle absoluto.
Em curvas reais, bastava apontar, reduzir para terceira ou segunda marcha (punta tacco desajeitado (horrível no Ka, a Fiat é mestre nisso), e apenas virar o volante e esperar a inevitável saída de frente…Mas, que saída? O carro contornava fácil, com obediência total. Uma curva em subida, que poderia ser feita em terceira a meio acelerador, e que representava pouco risco se algo desse errado, foi nossa cobaia para a tentativa de encontrar a proverbial saída de traseira do carro.
Fizemos ela três ou quatro vezes, e passamos a usar a segunda marcha — com apetite —para provocar a escapada. Finalmente quebramos a aderência dos pneus novos na frente e o carro deslizou de frente ao longo da curva. Mas ao aliviarmos o acelerador, o eixo traseiro não veio em arco como se pretendia… O carro recuperou a compostura e continuou subindo de forma nada acrobática.
Uma pena, no seco e em outra curva local, um Voyage GLS dava claros sinais de vir de lado se um leve contra-esterço no volante não fosse dado no momento certo. Quem sabe em uma outra oportunidade? O dono do carro, felizmente um pé pesado de primeira, disse que em serra com asfalto seco a tendência de o eixo traseiro desgarrar é real, e o carro vira um oponente duríssimo para um monte de carro maior. Talvez fosse melhor ele dirigindo…
O que eu entendi é que naquela estrada molhada e sinuosa, com muitas subidas e descidas, o que eu tinha na mão não era exatamente um automóvel irrequieto, mas, antes de tudo, um veículo seguro que passa uma confiança tremenda no motorista. Juro que dava vontade de manter o pé cravado no assoalho o tempo todo, num paroxismo de busca de emoções. O câmbio – aquecido como o braço do “piloto” – tornando-se mais leve e rápido nas trocas, todo o conjunto geral do carro conversando com o condutor no mesmo idioma.
Conclusão
Quem dera uma pista para testar os limites deste carro de forma mais segura, usando o acelerador e o volante para equalizar frente e traseira nas curvas. Seve ser uma experiência incrível. Nonô Figueredo, um grande piloto de um passado recente testou o Ka XR para a revista Quatro Rodas quando o carro era novo, e ele atestou que era o caro mais divertido do rol de esportivos testados na ocasião.
Não podemos duvidar: mesmo nas mãos de um mero motorista e em estrada pública molhada, o Ka XR incentiva a dirigir com mais atenção, concentração e prazer ao mesmo tempo. São essas qualidades que tocam o coração de um autoentusiasta; apesar da decoração até certo ponto discreta em comparação com o famoso Escort XR3 de 1984, por exemplo. Se pensarmos com atenção, percebemos que o Ka XR era mais diferente dos Ka normais do que o XR3 original era em relação aos outros Escort. O XR3 não tinha um motor 60% maior do que o do Escort L, e os ajustes de direção, suspensão, freios, relações de marchas e ajuste de motor do Ka XR, eram tão radicais quanto os ajustes que a Ford fez para diferenciar o esportivo de 1984.
Claro que nem tudo são flores, pessoalmente eu gostaria de bancos mais esportivos e um volante de direção com um desenho mais inspirado; detalhes apenas. Mas isso tudo agora pertence ao passado (2001 a 2007), o que vale para o presente é que o Ka XR é totalmente moderno em termos de aderência no molhado e capacidade de acompanhar o tráfego atual.
Mas ao contrário da maioria dos carros de hoje em dia, ele te deixa realmente ligado atrás do volante e de uma forma boa, sem os inúmeros dispositivos eletrônicos dos carros de 2024 que ficam o tempo todo servindo de babá para o motorista, que parece sempre mais interessado no que acontece nas telinhas brilhantes de celulares e centrais de entretenimento. O Ka XR tem uma malícia, uma agilidade felina que deve ser realmente mágica em condições mais favoráveis. Quem sabe em outra ocasião?
“Fórmula Finesse”
Bento Gonçalves – RS