Como prometido há uns dias, volto aqui ao tema automobilismo argentino para falar de algo muito peculiar por aquelas paragens: o uso constante de apelidos para os pilotos daquele país. Não me refiro aqui às formas carinhosas pela qual amigos e familiares se referem a eles, mas sim à maneira pela qual eles são conhecidos — muitas vezes, a única forma pela qual são conhecidos. Quem acompanha futebol, mesmo que esporadicamente, percebe isso nas escalações dos times e da seleção argentina também.
E já começo aqui com uma digressão. Um amigo que conheci pelas mídias sociais, Eduardo Affonso, e a quem só vi pessoalmente uma vez, disse uma vez que a mãe dele não admitia que ninguém chamasse seus filhos por apelidos. Nem mesmo diminutivos. Nada de Edu, Dudu, nadica de nada. “Eu não coloquei nomes bonitos nos meus filhos para que fossem chamados de outra forma”, ou algo nessa linha, dizia a senhora. Pessoalmente, penso mais ou menos assim, mas aceito diminutivos. Sempre fui chamada pelo meu nome ou pelos diminutivos Norita, Nori ou Norinha, que eu gosto e acho perfeitamente normais e aceitáveis, em especial dado o fato de eu ser prejudicada verticalmente. Talvez justamente por gostar do meu nome é que não quereria ser chamada de outras formas.
Não me refiro à mania que tomou o mundo de usar diminutivos para tudo. Mariana virou Mari, Eduardo virou Edu, Taciane virou Taci e mesmo nomes curtos como Júlia viraram Ju. Digo apelidos mesmo. Mesmo fazendo um esforço, há nomes de pilotos argentinos que tive que procurar para saber como haviam sido registrados pelos seus pais, pois nem nos registros de corridas apareciam. Só seus apelidos. Vamos então a alguns casos:
– Carlos Alberto “Lole” Reutemann – (foto de abertura) Vamos primeiro a uma explicação. Na Argentina o mais comum é ter como registro apenas o sobrenome do pai e dois nomes, como vocês verão na maioria dos exemplos a seguir. O apelido deste grande piloto e ser humano tem uma origem engraçada. A família Reutemann tinha uma enorme propriedade rural no interior da Argentina onde criava vacas e porcos e Carlos gostava muito de bichos. Quando pequeno, ia muito aos currais e dizia que ia ver “los lechones” (os leitões). Só que pronunciava “lo lechone”. Daí veio a contração “lole”. Mais tarde, ele conquistou 12 vitórias na F-1 entre 1972 e 1982 (numa época de menos provas do que atualmente) e no seu melhor ano, em 1981, terminou vice-campeão a apenas um ponto do campeão Nélson Piquet. O campeonato foi marcado por uma briga duríssima dentro da equipe Williams, quando Reutemann se recusou a ceder a vitória a seu companheiro de equipe, o australiano Alan Jones, que nunca o perdoou.
– Juan Manuel “Chueco” Fangio – é certamente o maior nome do automobilismo argentino e dos maiores da História mundial, com seus cinco títulos com quatro equipes (1951 com Alfa Romeo, 1954 e 1955 com Mercedes-Benz, 1956 com Ferrari e 1957 com Maserati). Foram 24 vitórias (47,06% das corridas das quais participou), 35 pódios (68,63%), 29 poles positions (56,86%) e 23 voltas mais rápidas (45,10%), além de 9 (!!) hat tricks (quando o piloto garante a pole-position, faz a melhor volta e vence a prova) e 2 grand slams (quando o piloto conquista a pole position, a vitória e a volta mais rápida em uma corrida). Nem vou falar dos outros números de Fangio em outras categorias para não ficar uma coluna inteira só sobre ele. Mas vamos à origem do apelido dele, que é bem simples: ele tinha as pernas arqueadas (“chueco” em espanhol é quem tem as pernas tortas) e recebeu esse apelido quando jogava futebol amador na juventude. Fangio era apaixonadíssimo por esporte bretão e chegou a jogar no time do clube Rivadavia como ponta direita, onde ganhou esse apelido que o acompanhou a vida toda.
– José María “Pechito” López – foi tricampeão mundial de Turismo em 2014, 2015 e 2106, bicampeão mundial de resistência da FIA em 2019-2020 e 2020 e ganhador da 24 Horas de Le Mans em 2021, além de vencedor de outras categorias. Chegou a ser anunciado como piloto de F-1 em 2011, mas na última hora houve uma série de cancelamentos de patrocínios e outros problemas que inviabilizaram sua participação. Mas vamos à origem do apelido do piloto. Na verdade, ele foi herdado do pai que também era piloto e se chamava José María López. Em algum momento nos anos 1980, ao terminar uma corrida, ele foi brigar com outros pilotos a quem acusou de serem covardes (“pecho frío” em espanhol). Desde então, o apelido de López pai virou “Pecho”, embora não tivesse nenhum vínculo com algum tipo de covardia — era apenas pelas palavras que ele gritou a seus adversários. Quando dois anos depois desse fato nasceu seu filho, batizado com o mesmo nome, ganhou o apelido de “pechito” pelo qual é conhecido até hoje, muito mais do que pelo nome de batismo. O irônico é que o estilo de “Pechito” é exatamente o oposto, já que ele é agressivo na pilotagem e nada covarde, mas ele adotou o apelido de bom grado e o usa em sua conta do X (ex Twitter) e em seus registros como piloto.
– Oscar Alfredo “Aguilucho” Gálvez –( Irmão de Juan que, juntos, dão nome ao autódromo de Buenos Aires. Foi um dos primeiros campeões de Turismo Carretera, categoria na qual venceu cinco vezes (1947, 1948, 1953, 1954 e 1961) além de ter vencido várias provas em outras categorias. É um dos grandes nomes do automobilismo argentino. Na F-1participou de apenas uma corrida na qual terminou em quinto lugar. A história do apelido é folclórica, mas triste. Gálvez disputava o Gran Premio Internacional del Norte, que saía de Buenos Aires em direção a Lima (Peru) e volta. Largaram 92 pilotos em 31 carros, entre os quais Juan Manuel Fangio. Os problemas de Gálvez foram na volta. Ao sair de Lima em terceiro lugar, perto de Pisco, à noite, com tempo ruim, nevoeiro denso e à noite, Oscar e Juan saíram a toda velocidade para tentar tomar a ponta, algo que conseguiram em poucos quilômetros. Quando começava a amanhecer, notaram um curto-circuito nos faróis do carro e ao chegar a Nazca, entraram num túnel de 80 metros de comprimento que terminava numa curva fechada à direita. No entanto, dentro do túnel as luzes do carro se apagaram totalmente, o carro seguiu reto, passou por cima de uma pequena defensa e caiu no vazio. O veículo caiu por 20 metros até bater pela primeira vez e continuar caindo, batendo e virando. A porta do lado de Oscar foi arrancada e ele também foi arrancado do carro. O irmão conseguiu se manter dentro do veículo, que terminou mais de 200 metros abaixo do caminho por onde vinham. Oscar desmaiou. Outros pilotos que vinham atrás, entre os quais o próprio Fangio e Daniel Musso, os recolheram. Oscar acordou num hospital com fratura na clavícula e omoplata, mas agradecido por estar vivo. A queda foi tão impressionante que o jornalista Pedro Fiore disse no rádio: “hoje pela manhã caiu como um “aguilucho” (filhote de águia) num precipício da irmã terra peruana o piloto Oscar Alfredo Gálvez”. “A partir de então fui sempre chamado de ‘Aguilucho’ ”, contava Gálvez. Ah, aquela corrida foi vencida por Fangio, e em segundo chegou Daniel Musso.
– Luis Rubén “Loco” Di Palma – outro dos apelidos mais comuns na Argentina, um país onde se diz que metade da população é de psicanalistas e a outra metade de psicanalisados, portanto, faz todo sentido! Di Palma tem um histórico e tanto como piloto. Para não variar, várias vitórias em Turismo Carretera, incluindo uma no segundo ano na categoria, aos 19 anos e 7 meses, quando se tornou o piloto mais novo a vencer na categoria. Foi da famosa equipe que participou da Marathon de la Route em Nürburgring com os Torinos da Missão Argentina, no Torino número 1 ao lado de Galbato e Fangio. Era pai dos também pilotos José Luis, Patricio e Marcos, no que foi chamado o Clã Di Palma.
Mas vamos ao que importa hoje, que é o apelido de “Loco”, amplamente merecido, diga-se de passagem. Uma das coisas que lhe valeram o título era um hábito que Di Palma tinha de pilotar seu próprio avião na cidade natal de Arrecifes, em Buenos Aires, e passar com ele por baixo de uma ponte do rio que corta a cidade. Tem também uma história contada por quatro então garotos da cidade de Arrecifes: em 1972 eles encontraram Di Palma, já campeão de TC e de Esporte-Protótipos, num posto de gasolina, calibrando os pneus de seu Renault 4 azul claro. O carro tinha a cilindrada de um Renault 12 e motor preparado para, diziam, alcançar os 200 km/h. Mas como o para-brisa do carro era reto, sem nenhuma aerodinâmica, o vento batia, deformava a carroceria e abria as portas. Para resolver a questão, Di Palma simplesmente amarrou uma à outra com uma corda (versão confirmada pelas quatro testemunhas).
Resolvido o problema das portas, restava o problema de como fazer curvas em altíssima velocidade com esse carro — e foi então quando nossos quatro personagens encontraram Di Palma no posto de gasolina, calibrando os pneus — 80 libras nos externos e 45 nos internos. “Se os deixo com 28 libras, o aro encosta no asfalto pela velocidade”, contou o piloto aos garotos. Seguiram todos para a curva do Club Náutico, na estrada 191 que ligava as cidades de Salto com Arrecifes e onde viram Di Palma chegar a milhão e fazer a curva a toda velocidade. Claro, não havia telemetria nem medição alguma, mas foi considerada uma façanha e mais uma vez Di Palma confirmou o apelido de “Loco”.
Mudando de assunto: e não é que a grande movimentação da Fórmula 1 não é com pilotos e sim com um engenheiro? O craque da aerodinâmica Adrian Newey foi para a Aston Martin, mas suspeito que não será o único nome a se unir à equipe.
NG
A coluna “Visão feminina” [e de exclusiva responsabilidade de sua autora.