Hora de voltar ao tema do porquê os carros são tão caros no Brasil. Vamos decompor a estrutura de preços em detalhes. Imagine que você pegue como exemplo um carro 1,0 de R$ 124,7 mil de preço de venda. Você desonera os 24,7% de imposto: seu preço real é R$ 100 mil.
Parto de uma entrevista que o empresário Sérgio Habib deu ao (grande) jornalista João Anacleto, do canal “A Roda”, no YouTube. O custo de distribuição já abocanha 29 ou 30%. Inicialmente, aqui está embutida, com pequenas variações percentuais de uma marca a outra, a margem bruta da rede (10%). Dentro desse percentual, a concessionária aufere seu lucro, paga a comissão do vendedor, dá jogo de tapetes e paga o café. Dentro desses 30%, você ainda inclui 2% com despesas com garantia, tipo a “revisão grátis” que é concedida ao cliente, mas paga ao concessionário.
Já os valores referentes a logística equivalem a 3%, isto é, o movimento de trazer todas as peças para dentro da fábrica (inbound) e depois tirar o carro pronto do pátio e levá-lo até a concessionaria (outbound). A próxima despesa chama-se meio comercial variável, ou seja, tudo aquilo que está relacionado às despesas promocionais caracterizadas como bônus, descontos, taxa zero, etc. Isso dá cerca de 5%. E é um valor que, costumeiramente, a concessionária pode ou não repassar ao consumidor. Você ainda precisa incorporar 5% de investimentos em marketing e 4% de despesas financeiras com trâmites relacionados ao fluxo de notas fiscais que entram e saem. Tudo isso dá por volta de 30%. Sobram 70%.
De acordo com Habib, o custo agregado da unidade industrial é mais 5%. Isso engloba estampar as peças de aço, soldá-las, armar a carroceria, pintá-la e montar todos os agregados mecânicos e eletrônicos, aqui incluído todo o custo da mão de obra, energia elétrica, etc. Tudo, tudo. Cai para 65%. Agora vamos somar todos os componentes mecânicos, eletrônicos, bobinas de aço, vidros, plásticos e borrachas, ou seja, tudo aquilo que o fabricante compra de fornecedores de autopeças: 55%.
Sobra 10%. Milad Kalume Neto, um dos mais respeitados consultores do mercado automobilístico, amplia esse leque. “Na prática, dependendo do carro, da fabricante e da época em que se faz essa análise, essa margem varia de 6% a 12% em modelos de entrada”, garante.
Isso no exemplo que adotei, de um carro de R$ 100 mil sem os impostos. Quanto mais caro for esse carro, maior também será a margem, visto que os modelos de categorias premium “aceitam” preços finais mais dilatados e alguns custos serão “congelados” frente aos modelos de entrada (marketing, despesas financeiras, logística, etc.) — e percentualmente menores, portanto, de acordo com a dona Matemática.
Explicando melhor: o custo de despesas financeiras é o mesmo nos trâmites de emissão de notas para carros de R$ 100 mil ou R$ 200 mil. Se ele é de 4% para um carro de entrada (R$ 100 mil), será de 2% para um modelo médio de luxo (R$ 200 mil). O saldo de 2% vira margem — entendeu agora por que não existe mais carro popular no Brasil?
Mas tem a margem das peças
Habib também informa que a margem obtida nas peças de reposição de qualquer marca de volume paga todas as suas despesas operacionais. Quem já não teve a experiência desagradável de encostar o umbigo no balcão de peças de uma concessionária? Dá vontade de chorar o tanto que qualquer parafusinho custa uma fortuna. Ou, algo mais comum a qualquer motorista, ter de pagar os valores referentes às revisões de seu seminovo, que irão incluir as peças “originais”. É um disparate o quanto isso é oneroso.
10% tá bom ou não tá?
Confessadamente, eu não tenho opinião definitiva para cravar se os 10% de margem estão muito acima ou muito abaixo de outros produtos manufaturados. Por puro achismo, direi que a complexidade de fabricar um carro, com todas as etapas anteriores de pesquisar mercado, ouvir clientes, desenhar e definir um novo produto — mais o emaranhado de alguns milhares de componentes que têm que ser projetados e entregues na linha de montagem just in time —, me induz a crer que é… pouco.
Compare com a produção de um smartphone. Uma rápida pesquisa na imprensa aponta a margem de 20% para os fabricantes, considerando que a quantidade de fornecedores é infinitamente reduzida frente ao automóvel — no caso de eletroeletrônicos, faz-se óbvio supor que as “eletropeças” têm custo irrisório. A grande despesa está no custo de desenvolvimento, o que elucida também a informação de que os grandes engenheiros e cientistas não atuam mais na indústria automobilística. Esses caras migraram para as fábricas de gadgets e, principalmente, para as “techs”.
Imagine que as fábricas de automóveis, que lidam com altíssimas taxas de risco — elas investem no mínimo US$ 500 milhões na criação de um novo automóvel e, de repente, o público o rejeita —, possuem um parque instalado gigante e complexo, atuam em um segmento com mais de 50 contendores (e isso sem contar os chineses que vêm aí…), empregam milhares de trabalhadores, negociam com milhares de fornecedores, nomeiam centenas de concessionárias para atuarem em todo o país… para ganharem só 10% no final de todo esse périplo?
E para que serve todo esse raciocínio?
- As fabricantes são coitadas? Não. Óbvio que não. Há outra importante fonte de receita, como vimos, que é a que vem das peças para o mercado de reposição. A Ford deixou de produzir no Brasil porque perdia dinheiro. Mas as outras 20 e poucas fabricantes ainda estão produzindo. Ademais, o impacto social causado pela instalação de uma fábrica de carros é gigantesco em qualquer região, o que faz com essas empresas tenham generosos incentivos de governos.
- Houve aumento real durante a pandemia? De acordo com o consultor Ricardo Bacellar, um dos mais importantes experts desse setor, essa perversa cobrança de impostos sempre existiu, mas vale lembrar que as fabricantes reajustaram os valores muito acima da inflação num passado recente. “Seguramente os reflexos onerosos que a Covid-19 trouxe para a infraestrutura logística global, câmbio, preço de commodities e preço da energia elétrica, sem falar na crise dos semicondutores, tiveram um peso diferenciado na escalada assustadora dos preços dos produtos”, explica. Acho (apenas acho) que aqui também se repôs margem.
- E na comparação com outros países? Fora do Brasil, o impacto do custo das autopeças e da mão de obra é maior. Aqui os salários dos operários são menores e os componentes, mais baratos. Mas o Custo Brasil compensa negativamente essa vantagem, dadas as ineficiências logísticas (isso encarece a produção) e o complexo quebra-cabeças tributário (você precisa de uma legião de contabilistas para entender a encrenca toda).
- A questão da economia de escala. O custo de acesso ao crédito restringe a economia de escala. Explico: temos parque instalado para produzir praticamente o dobro do que estamos fabricando. “Sem escala é impossível arcar com os custos financeiros e administrativos”, destaca Flávio Padovan, presidente da REVO, que é uma empresa transformadora de veículos (carros policiais, ambulâncias, etc.), que já trabalhou em Subaru, Ford, Volkswagen e Jaguar Land Rover. “Com isso se reduzem os custos com investimentos em desenvolvimento e na produção, utilizando plataformas comuns, racionalizando componentes e buscando comprar maiores quantidades com menores preços dos fornecedores”. Enquanto isso não ocorre, a rentabilidade padece.
- Não dá para esquecer do imposto. Para Bacellar, “o governo, que propaga como uma de suas bandeiras retomar a pujança da indústria nacional, deveria considerar reduzir de forma drástica este patamar de impostos, assim como os argentinos, e passar a recolher muito mais impostos pelo volume de vendas e não pelas unidades”.
- Protecionismo também atrapalha. Citei recentemente o que houve com o Jeep Commander de um ano para cá. Alvo da concorrência direta com suves eletrificados vindos da China, seu preço de lista caiu R$ 13 mil. Já a Ram Rampage, sem rivais chinesas, compartilha a mesma plataforma e diversos itens mecânicos, além de ser produzida na mesma fábrica da Jeep. Ficou R$ 15 mil mais cara.
- Torço pela sugestão dada pelo Bacellar, mas me parece improvável que o governo federal irá algum dia abrir mão da receita de 25% a 45% de carga tributária na venda de um automóvel. Desde o governo FHC eu ouço esse pleito dos fabricantes. Não vai reduzir e pronto, tanto que a reforma tributária tende a incluir os automóveis no “imposto do pecado”, ou seja, essa carga vai até aumentar.
- Solução? Dá-lhe maior concorrência. Você, consumidor, devia torcer por isso.
EP
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