Certamente o leitor ou leitora já escutou ou leu a expressão, divertido de dirigir, fun to drive na língua inglesa. E vem a pergunta: quais as características do veículo que o fazem divertido de dirigir? Antes de responder a pergunta firmaremos alguns conceitos importantes.
Vamos lá, temos cinco sentidos — visão, audição, tato, olfato, paladar — que nos permite interagir com o meio ambiente, processando tanto as impressões prazerosas quanto as incomodativas do dia a dia. Isso vale particularmente quando estamos dirigindo um veículo, nos despertando a subjetividade de conforto, desempenho e segurança.
Audição
Aguça a boa sensação de velocidade, com o aumento progressivo do ruído aerodinâmico e também de rolagem. Por outro lado, ruídos espúrios de vazamentos, assovios, rangidos e chocalhos tiram o prazer de dirigir.
Ouvir o motor em sua ordem natural de funcionamento, a qualidade sonora tanto em timbre quanto em intensidade, valorizam a sensação de potência e aceleração. Mas ruídos espúrios de admissão de ar, escapamento e do sistema de transmissão também atrapalham o prazer de dirigir.
A isolação da cabine deve ser adequada para permitir que o motorista entenda o tráfego em sua volta. Não escutar o meio ambiente é inseguro e potencialmente causador de acidentes. Por exemplo, não escutar a sirene de uma ambulância ou veículo do corpo de bombeiros.
Também os ruídos operacionais são importantes para distinguir a função e o sentimento de qualidade embarcada, por exemplo, a fácil identificação de todos os controles de maneira geral.
Visibilidade
Visibilidade, quanto mais, melhor. A área envidraçada, o campo de visão dos espelhos retrovisores, interno e externos, para identificar o tráfego e evitar os perigosos pontos cegos que confundem o motorista levando-o a pensar que não existem veículos à sua volta, o que afeta perigosamente a condução, principalmente em ultrapassagens.
Ponto importante é a transparência dos vidros que tem sido fortemente prejudicada com a adição de películas escuras, que estão todas fora de especificação normativa emitida pelo órgão responsável, o Conselho Nacional de Trânsito (Contran).
Outro ponto, a visualização dos controles operacionais, dos instrumentos e da tela do computador de bordo deve ser fácil, sem desviar a atenção do motorista.
Tato
A pele nos veste. É o nosso maior órgão, o mais pesado, o mais visível e o mais sensível, sendo através dela que temos a noção do frio, do calor e do toque. Nas camadas interiores, ficam os diferentes receptores sensoriais, específicos do tato, incluindo os de sensação de pressão.
Neste aspecto a ergonomia dos bancos se faz de grande importância no sentimento de aceleração, desaceleração nas retas e em curvas, mantendo o corpo bem posicionado, transmitindo segurança e conforto. Na realidade o corpo entende todos os movimentos do veiculo com variações de velocidade e esforços, longitudinais, transversais e verticais, identificando as condições de rodagem, necessárias ao bem dirigir. Neste aspecto o tato é complementado pelo labirinto do ouvido que nos transmite a sensação de mudança de posição e de direção.
A maioria dos controles operacionais do veiculo são identificados principalmente pelo tato, incluindo os pedais de acionamento do acelerador, freio e embreagem, alavanca de mudanças de marcha, volante de direção, entre outros.
Olfato
Boas lembranças quando conseguíamos claramente identificar os veículos novos pelo cheiro na cabine. Por exemplo, Volkswagen, marcante pelo cheiro de resina fenólica dos isoladores do assoalho, e Ford com o cheiro adocicado dos carpetes e forro dos bancos. Atualmente é quase impossível distinguir o cheiro da marca devido à utilização de praticamente os mesmos materiais de acabamento e isolação acústica pelos fabricantes em geral.
Carro tem que ter cheiro de carro. Quando mando lavar os meus num lava-rápido dou ordem expressa para apenas passarem um pano úmido no painel e volante, nada de odorizadores.
Paladar
E o leitor pode contestar, o paladar é o único sentimento que não entra em cena dirigindo um veículo. E eu digo que nada é mais prazeroso do que dirigir chupando uma bala de hortelã, brincadeiras a parte… Como fumar tem muito a ver com paladar, um cinzeiro de fácil alcance contribui para o dirigir divertido dos fumantes. O melhor cinzeiro, até hoje, é o do Ford Maverick, ao alcance da mão direita sem precisar tirá-la do volante. Hoje, além da má localização, há carros que nem cinzeiro trazem mais, aquilo que o nosso Bob Sharp chama de patrulhamento ideológico…
Divertido de dirigir
Vamos entrar no assunto propriamente dito que é identificar o que faz o veículo transmitir a sensação de ser divertido de dirigir.
Os controles ativos de tração e estabilidade, por exemplo, tendem a bloquear o prazer de dirigir, inibindo a condução esportiva pura, sem intervenções. Para os consumidores que não tem muita habilidade na direção estes controles são úteis, garantindo mais segurança, porém nada a ver com o comportamento divertido de dirigir em questão. Os freios ABS entrando prematuramente com oscilações sentidas no pedal também inibem o prazer de dirigir.
O primeiro e importante aspecto é vestir o automóvel. Lembro-me nos meus seminários de engenharia em que eu ressaltava aos participantes que se sentir acoplado ao veículo é o principal aspecto para o bem dirigir, com motorista e veículo se tornando um só conjunto, integrando a ergonomia, o conforto e a dinâmica previsível e necessária.
Creio que a dinâmica veicular é um dos principais aspectos que faz o veículo divertido de dirigir, direção firme em linha reta, sem que as imperfeições e o perfil do piso interfiram com movimentos espúrios do veículo. Mudanças rápidas de faixa de rolamento e/ou desvios de obstáculos com comportamento neutro, sem apresentar sobre-esterço, que possa em sua correção provocar o perigoso movimento pendular, com risco de capotagem.
Alto limite de aceleração lateral em curvas, porém alertando o motorista quando próximo da perda de aderência dos pneus, com o sentimento de seu limite de escorregamento, associado ao ruído, por exemplo. A diminuição progressiva do esforço no volante é a melhor indicação de perda de aderência próxima.
Fazer curvas, provocando o under/oversteer (subesterço/sobre-esterço) seguro, aplicando menos ou mais acelerador, é tudo o que um piloto gosta, “fazer curva no acelerador”, no jargão popular. Resposta instantânea sensível no pedal do acelerador, onde mais curso resulta em mais aceleração
Também o aumento progressivo do esforço direcional em curvas, com a diminuição do raio, torna o veículo previsível, “na mão”, como dizem os pilotos.
Outro ponto importante é o som do motor em acelerações e em desacelerações, traduzindo sem ruídos espúrios, as frequências de funcionamento do motor. Sentir o acelerador varrendo as situações de rodagem, com controle total de todas as situações, tanto nas retas quanto nas curvas. A amplitude sonora é importante para ouvir o motor, porém sem que seja incomodativo. Neste aspecto, a análise do sonograma ajuda bastante. Veja o reforço sonoro em baixas rotações, comparando o Porsche 911, esportivo, com o refinado Lexus.
As trocas de marcha devem ser precisas e de preferência situarem-se entre as rotações de torque máximo e de potencia máxima. Isto ajuda, por exemplo, no sentimento de força de tração em aclives, onde uma diminuição de velocidade do veículo, com queda de rotação, aumenta o torque disponível do motor. É o chamado crescimento sensível de torque, complemento da elasticidade do motor. Na realidade o sentimento de forte potência do motor é fundamental para o fun to drive.
- Região de elasticidade do motor, entre o torque máximo e a potência máxima
A indústria automobilística aprendeu que mesmo que a rotação de torque máximo esteja num nível indesejável, dispor de torque inferior ao máximo nas rotações mais baixas provê boa potência — e boa sensação, bom divertimento — nessa faixa.
“Sentir o chão”, identificando todas as situações de irregularidades do perfil da pista e do tipo de pavimento, tanto no seco quanto no molhado, faz parte do dirigir divertido.
Outro ponto importante é o motorista perceber a carroceria firme, sem movimentos espúrios de torção e de flexão, com alto grau de sentimento de rigidez.
Na realidade todos os fabricantes de veículos perseguem o sentimento de ser divertido de dirigir, sem esquecer o conforto e a economia de combustível, o que é um compromisso sempre muito difícil de ser atingido. Dados subjetivos e objetivos nas várias condições de rodagem, em campo de provas, por exemplo, ajudam na identificação desta sensação.
Ser divertido de dirigir é, sem nenhuma dúvida, um atributo que agrega muito valor ao veículo, podendo ser muito útil nas divulgações de propaganda e marketing das fábricas de automóveis, de maneira geral. Aliar esta sensação, com conforto e economia de combustível, é o sonho dos fabricantes, pois é muito difícil consegui-lo.
Lembro-me de alguns veículos que me chamaram a atenção pela qualidade fun to drive, por exemplo, o VW Passat, o Ford Focus MK1, o Ford Ka XR, e o Fiat Uno 1.5 R e mesmo o Gol GTS (quadradinho), que tinha um compromisso muito interessante de robustez e estabilidade. E o Fusca, que mesmo longe de ser um primor em desempenho e estabilidade, era divertido de dirigir, e esse fator em muito contribuiu para o seu sucesso.
O Ka XR RoCam 1,6, realmente veiculo divertido de dirigir, tinha as relações de marcha bem curtas e próximas uma das outras, dando uma sensação de desempenho notável. O consumo em 5ª marcha não era dos melhores, porém os outros excelentes atributos o compensavam.
Creio que o Ka XR foi realmente o veículo brasileiro mais divertido de dirigir que eu conheci e vai à ele minha homenagem de hoje. A Ford é uma empresa com muita tecnologia disponível, porém não sabe valorizá-la, infelizmente. Abandona projetos maravilhosos que poderiam dar um grande impulso à companhia.
CM