O sol, malvado, nos castigava. Acordamos antes de ele nascer, ainda na fresca e após estralarmos as costas num espreguiço tomamos o café fumegante, comemos pão com manteiga, desmontamos as barracas, colocamo-las no caminhão, selamos os 63 cavalos e saímos. Estávamos na Serra da Canastra fazendo uma cavalgada para cavaleiros e cavalos de verdade. Foram cinco dias subindo e descendo morro, entrando por furnas e grotas escorregadias e pedregosas, pegando platôs que descortinavam cenários esplendorosos, atravessando ou pulando vaus d’água límpida e por aí foi. Aventura.
Meu cavalo, o Sheik, um castanho da cruza (crossover!) de sangue árabe com inglês, estava na melhor idade para um cavalo de sela, uns 11 anos, e se fosse para compará-lo a um carro eu o faria a um Porsche 911 a ar e mexido, com comando bravo, daqueles de marcha-lenta impaciente e pipocante e que só quer saber de correr. Em baixa, na lenta, aquele cavalo — que infelizmente já morreu de velho — estava de lascar. Ele nunca havia feito uma cavalgada e quando se viu em meio a tantos cavalos achou que seria um rali de velocidade e queria tomar a ponta. Deus do céu! Ele não se conformava em andar sossegado no meio do pelotão. Ele espumava. Eu, mesmo conhecendo-o muitíssimo bem e sabendo como acalmá-lo, estava tendo dificuldades. Rédeas curtas, porém leves, dando só a tensão necessária e nem um pouco além, pois tesas demais deixam o cavalo ainda mais nervoso. Cavalo é que nem carro; quanto mais bruto o bicho é, mais delicados temos que ser.
E o tal sol, como disse a princípio, estava de lascar também. Parecia que dava para escutar a pele das costas borbulhando, e essa dureza iria até o sol se pôr, quando chegaríamos ao próximo sítio onde iríamos acampar, o que era longe dali, ainda bem longe, a perder de vista; com várias cumeeiras de serra a cruzar.
Subíamos, o Sheik e eu, uma colina, quando emparelhamos com uma moça. Seu cavalinho era um alazão de frente aberta com sangue de Mangalarga Marchador. Cavalinho baixo e rechonchudo, troncudinho, e decidido. Ia que ia no seu andar macio em que nunca fica no ar, onde sempre tem ao menos uma pata apoiada no solo. Já no trote, como era o andar do Sheik, há momentos de suspensão em que o cavalo não toca o solo, daí vem certo tranco ao aterrissar, maior ou menor dependendo do cavalo. A sela da moça estava forrada com um grosso pelego de pele de carneiro. Macio. A minha, sem pelego, não era tão macia, mas era a que melhor me encaixava, mais me dava firmeza.
— Moça bonita, não quer trocar um pouco de cavalo, não? — perguntei-lhe. Tenha dó de mim.
— Que nada! Eu, hein? Você não é homem? — foi sua divertida resposta.
— Acho que sim, mas tem horas que não é moleza esse negócio de ficar dando uma de machão.
— Teu cavalo é lindo — ela disse.
— Lindo, sim, obrigado, mas ele só quer saber de correr e já estou um pouco cheio de escutar meus ossos moendo. Não quer experimentar ele só um pouquinho? Ele é um doce. É só fogoso, mas é bom de boca e não apronta besteira se você souber dosar seus ímpetos.
— Deixe quieto. Ele é um pouco demais para mim. Prefiro ir sossegada aqui.
E assim fomos papeando um papo gostoso sobre o que amávamos, os cavalos, ela suavemente na sua limusine e eu tremelicando no meu carro de corridas e só imaginando como o meu traseiro agradeceria uma meia horinha que fosse de clemência.
Mas as coisas mudam e acontece que chegamos ao topo da colina e, quando vimos, aquilo se descortinou num chapadão imenso. Parecia um aeroporto plano a 1.300 metros de altitude com uns bons quatro quilômetros de extensão por uns 200 metros de largura. O solo era um cascalho fino entremeado de capim nativo baixo e ralo. Dava para ver que não tinha buracos de tatu e, se os tivesse, seriam visíveis. Outros grupos de cavalos iam à frente. Meu cunhado, na sua égua Beija, eguona grande e poderosa, entre eles.
As condições ideais para o Sheik e eu estavam dadas. Dei um “te vejo mais tarde” pra moça, tirei o chapéu da cabeça e só soltei a rédea do Sheik enquanto fazia nosso costumeiro sinal para a disparada: chupei duas vezes o ar com os lábios fechados. O Sheik, quando sacou que eu tirara o chapéu, já entendeu que era hora de selvageria e saiu empinando que nem um dragster, que nem um jato decolando, e seu primeiro galão de galope engoliu sei lá quantos metros. No terceiro galão ele já estava quase à toda, tamanha a arrancada daquele cavalo. Voou. Deixei o pau comer. Que fosse o que Deus quisesse. Agora eu canso este fiadamãe!, pensei, numa justificativa para a doideira.
Quando de longe vi meu cunhado, fui gritando feito um índio feroz em plena carga, convidando-o para o racha. Ele se virou, nos viu e partiu com tudo antes que chegássemos a eles. Mas não deu nem pro cheiro, pois os passamos como um vento.
Que cavalo! Que sonho de cavalo! Que se danasse todo o sofrimento do seu trote! Que se danasse toda a canseira de acalmar seus ímpetos! Ele ansiava pelo êxtase da velocidade, ele precisava de uma explosão em que botasse pra fora a tremenda energia que seu coração continha. E, meu amigo, meu caro leitor ou leitora, eu era o companheiro certo para isso.
Passamos todo mundo, eu gritando para avisar que lá iam uns malucos e que ninguém nos cruzasse a frente, até que toca já a começar a ver o fim daquele platô…, que acabava num despenhadeiro onde nunca mais achariam a gente.
— Ôa, Sheik! Ôa, bichão! — agora eu com o corpo inclinado para trás, estribos adiante, e muque firme nas rédeas, tendo a mão direita segurando, além da rédea, o diabo do chapéu panamá que eu não podia perder de jeito nenhum.
Por sorte do destino, o Sheik resolveu acatar minhas ponderações, e como não tinha mais ninguém à nossa frente, ele tratou de ir esfriando a coisa. E assim ele foi esfriando, até que ao atingir o galopinho de três pés, aquele galope em que se vai longe sem cansar o cavalo, aquele em que os cavaleiros civilizados conduzem seus cavalos civilizados rodando e rodando nos picadeiros de elegantes hípicas, tratei dar as minhas voltas também, até baixar para o trote e o passo, esperando pelo meu cunhado.
Não se para de repente um cavalo após um grande esforço. Ele tem que trotar, depois andar, até que pare de resfolegar e sua pulsação baixe para perto do normal.
Meu cunhado chegou com a Beija, ele rindo de orelha a orelha. A Beija fez questão de cheirar o focinho do Sheik para eles se entenderem lá do jeito deles. Após os comentários sobre o racha, meu cunhado conseguiu sinal no seu celular. Liguei para minha mulher. Disse a ela que o Sheik era o melhor cavalo do mundo e que ele e eu estávamos exultantemente felizes.
E ele foi, mesmo, o melhor cavalo do mundo. Para mim, foi. Para aquela moça do cavalinho parrudo de andar macio, hoje ela deve se lembrar do seu alazãozinho como o melhor. Cada um na sua. Tive alguns cavalos que foram os melhores do mundo: o Sultão, o Garrincha, o Caçula, o Gualixo, o Granjé, o Buscapé. Cada um no seu tempo, foi. O melhor de todos os tempos, o Gualixo.
E o que toda essa história tem a ver com carro que satisfaz?, me perguntará o leitor ou leitora.
Com carro é a mesma coisa. O importante, para o(a) autoentusiasta é que tenha o carro feito para ele(a), seja um fogoso esportivo ou uma suave limusine. O autoentusiasta, o sujeito que ama os carros, só está satisfeito se tiver o que considera o melhor carro do mundo para suas necessidades, sejam elas quais forem, seja esse carro qual for.
O sujeito que se satisfaz em comprar o que melhor será revendido, o outro que se satisfaz por ter o carro que dá mais status, etc., esses aí são só blá, blá, blá a respeito de carro, não gostam realmente de carro. Gostam de outras coisas, mas de carro, não. Dirigem e imaginam, mas não sentem.
Nada impede que o(a) autoentusiasta tenha o mais econômico, o mais racional, etc. Nada impede. Mas para ele(ela) satisfazer-se, mesmo, ele(ela) tem que ter o carro que ama, o que foi feito para ele(ela) e esse muitas vezes passa longe do mais racional.
AK