Em 1635, o Decreto de Sakoku isolou o Japão do mundo exterior. Segundo o decreto, nenhum japonês comum, sob pena de morte, poderia sair do país e nenhum estrangeiro entrar. Era uma medida contra o excesso de influência europeia na cultura local e, principalmente, o excesso de conversões ao catolicismo, religião que negando a divindade a governantes terrenos não convinha ao sistema então vigente, baseado justamente nisso, na suposta divindade do imperador.
Daí que o Japão então ficou na mesma por mais de dois séculos, não evoluiu. Só na segunda metade de 1800 é que, forçado, principalmente pelos Estados Unidos, voltou a se abrir. E quando se abriu o que os estrangeiros lá encontraram? Um país feudal, agrícola, do século 17.
Mas logo o japonês mostrou seu pendor para a disciplina e tremenda capacidade de trabalho e recuperou o tempo perdido. Entrou com tudo na Revolução Industrial e em pouco tempo se viu sem matérias-primas para tocar a sua nascente e vigorosa indústria, daí que resolveu tomar as coisas dos outros.
Naquele tempo o mundo era maior — o que acontecia do outro lado do planeta era sempre muito longe — e também não havia muito dessa história de escrúpulos em matéria de relações internacionais. Não havia essa entidade, ainda hoje em formação, a tal “comunidade internacional” que pretende passar a imagem de moralista, então todos eram descaradamente complacentes com o país que invadisse outro mais fraco e todo mundo tratava de tirar suas casquinhas onde pudesse.
Daí que o Japão não se fez de rogado e resolveu engolir países próximos para obter o que precisava. Enquanto ele só invadiu pedaços da China e da Rússia, os Estados Unidos e outros países poderosos só olharam para o alto e assobiaram fingindo que não era com eles, já que, afinal, eles faziam o mesmo na banda de cá do globo.
Mas a Segunda Guerra Mundial mudou a desordem vigente e com a guerra finda o Japão se viu arrasado, com seu parque industrial inteiro em chamas e um povo faminto de tudo, menos da determinação em dar uma vida melhor a seus filhos.
Os Estados Unidos acharam por bem ter o Japão como um aliado capitalista forte no extremo oriente, já que a União Soviética e a China, comunistas, estavam pondo as manguinhas de fora. Então criaram o Plano Marshall que consistia em emprestar-lhes dólares a preço de reais para que fossem investidos na economia em geral, coisa que o Japão soube aproveitar com sabedoria e muito trabalho, e criou — assim como a Alemanha, que recebeu semelhantes benesses no pós-guerra — um parque industrial até mais moderno que o americano, já que, por não terem nada, tudo era novo, máquinas novas, modernas.
O modo de obter matérias-primas à custa de invasão de país mais fraco já não lhes era mais permitido, então o jeito era exportar para obter dinheiro para comprá-las. Só que para exportar eles tinham que produzir algo que atraísse os olhares do ocidente, então numa sábia atitude adotaram a posição humilde de fabricar produtos a preço baixo e com a cara dos produtos ocidentais. Equipamentos de som e TVs com desenho europeu, automóveis e motos idem, e por aí vai.
No começo enfrentaram certa resistência dos compradores ocidentais para quem rádio bom era Philips, TV boa era Telefunken, carro bom era americano e alemão, etc.; o ocidental desconfiava da qualidade do produto japonês assim como atualmente ainda desconfia do produto chinês (e já desconfiou do coreano).
E que carros japoneses lindos saíram disso! Principalmente os esportivos! Carro esportivo é bom para chamar a atenção para indústria que o fez, sempre foi assim, e os japoneses investiram nisso porque pensam antes de sair fazendo, não são burros. E esportivos bons! Bons que nem os inglesinhos MG e Triumph e sem as complicações e falta de confiabilidade dos carros ingleses de então, anos 50, 60 e 70.
Vieram também os confiáveis e econômicos Corollas, Civics e similares, todos com cara de carro ocidental, mais baratos que esses, e que, apesar de não gerarem status, ganharam grande naco do mercado. E para repicar tiveram sorte com a bomba que a Opep soltou no começo de 1973, elevando barbaramente o preço do petróleo em questão de meses, já que os carros japoneses eram notoriamente mais econômicos. Aí é que na Europa e Estados Unidos deu correria atrás de carro japonês.
E na mesma onda vieram as motos, principalmente as da Honda e da Yamaha, arrasando com a indústria ocidental. E que motos lindas! Lindas e boas! O ocidental as achava lindas porque seu desenho era baseado no que estávamos acostumados, um desenho ocidental. Era uma Honda, mas parecia uma Norton, ou uma Gilera, ou uma Triumph. O foco era vender aos ocidentais algo que não lhes causasse estranheza, fosse lá o que fosse.
Desenho de carro e moto é que nem desenho de roupa. Posso comprar uma calça jeans feita no Japão, mas me sentiria meio estranho saindo por aí vestindo um quimono. Desenho é importante, talvez mais importante do que supomos. É cultural. Está na arquitetura das casas, na decoração, nas artes, nos hábitos, está, enfim, desde o nosso berço, no meio em que vivemos, no que nos envolve.
Os coreanos e chineses seguiram a mesma trilha aberta pelos japoneses. Contrataram estúdios de desenho europeus para desenhar seus carros. A chinesa JAC, por exemplo, até montou um centro de desenho em Turim, Itália, e não foi para que dali saíssem formas que agradassem os olhos chineses.
E de uns tempos para cá estamos vendo os japoneses já plenamente confiantes em seus produtos e deixando para lá essa filosofia de não chocar o ocidental. Seus produtos estão ficando com cara de orientais demais para o nosso gosto. Nada contra a cultura oriental, nada; só acho que o subconsciente do ocidental pode criar algum reflexo de repulsa a esses produtos simplesmente por estranhá-los. Portanto, acho que é um erro desnecessário. Espero, dando exemplos, poder me fazer entender claramente.
Vamos lá então.
O Honda Civic atual é um excelente carro, ninguém haverá de negar. Tem tudo, é bom de dirigir, espaçoso, confortável, potente, econômico, porém algo nele nos causa certa estranheza: seu desenho é muito oriental. E não devemos confundir o moderno, o futurista, com o oriental.
E as motos? Como tem moto modernosa feia tipo Jaspion por aí. Boas, ótimas, porém feias. E logo moto, um veículo que está, ou ao menos sempre esteve, intrinsecamente ligado à paixão.
O desenho do Toyota Etios é criticado por muitos. Dizem-no feio, mas não é feio, se bem que bonito é que não é. É muito oriental. Já o desenho do Corolla é só discretamente oriental, porém não tem atitude.
O Chevrolet Cruze, apesar de, a meu ver, ser um dos melhores médios — tanto o sedã quanto o hatch —, parece não ter pegado tão bem quanto merece. E acho que não é porque seu preço inibe vendas, mas porque lhe deram um desenho um tanto oriental, provavelmente influência de seu projeto ter sido feito em parceria com a coreana Daewoo, hoje pertencente à GM. Na certa vende muito bem na China. Na certa deram prioridade a esse imenso mercado. Não dá para agradar a gregos e troianos.
O Toyota GT86 foi um dos melhores carros que já dirigi. Uma perfeição. Tudo nele foi pensado para agradar o autoentusiasta, absolutamente tudo. Só se esqueceram do desenho, que pode agradar o autoentusiasta oriental, mas não empolga o ocidental. E sonhos são feitos principalmente de imagens…
Outro dia flagrei o crossover C-HR da Toyota em testes na rua. Minha primeira impressão foi “Mas que carro estranho!”. Nem feio nem bonito. Só estranho.
Já os Jeep, tanto o Compass como o Renegade, estão superando as mais otimistas expectativas de vendas, e não é porque sejam melhores que os suves orientais concorrentes. São só igualmente bons e nada mais. O que os diferencia é seu desenho bem tradicional americano, o que cria no ocidental uma imediata simpatia pelos modelos. E além do desenho exterior há o do interior, mesma coisa. O ocidental se sente mais em casa dentro deles.
O MINI é exemplo de desenho europeu. O Fiat 500, idem, e não é porque são retrôs. Os carros da Citroën e Peugeot, também. Ninguém aqui diz que são feios. Ninguém aqui os estranha. Algo neles, ou o todo deles, faz com que se encaixem nos nossos conceitos ocidentais de beleza, de esteticamente agradáveis, e isso os torna atraentes aos nossos olhos. Os carros da Renault, no Brasil, só agora, com o belo suve Captur voltou a ter desenho realmente francês, já que andou anos usando só desenho romeno, Europa Oriental, um tanto inferior em tradição ao francês.
Desenho de automóvel é uma arte sutil, complexa e vasta, que envolve conceitos culturais atávicos a cada povo. Ainda não somos uma ilha global e espero que nunca sejamos, pois a graça está na diversidade.
Essa história de carro global, a meu ver, portanto, não funciona (uma exceção foi o Fusca). Sua engenharia, sim, para baixar custos, hoje é e tem mais que ser global, mas o desenho, se quiserem sucesso de vendas, de jeito nenhum. Não há como agradar igualmente a olhos nascidos e criados em culturas diferentes. Gosto é gosto. Terão que fazer o mesmo carro com desenhos diferentes, um para cada cultura.
Está acontecendo com o automóvel o que já aconteceu com os relógios. Hoje não se compra mais relógios de uma marca porque eles são precisos e não quebram. Fora os bem baratinhos de camelô, todos os relógios hoje são precisos e não quebram. Hoje se compra relógio pelo desenho e pelo status. Então os desenhistas é que estão com a bola. É a vez deles. Eles ganharam importância porque eles é que vão vender. A tecnologia de hoje permite que a engenharia dê conta de montar um carro sob o que o desenhista desenhar. Antes era o contrário; o desenhista vestia uma mecânica dada pelo engenheiro.
Em tempo: o padrão estético brasileiro, felizmente, é uma mistura, um amálgama de vários, mas o predominante ainda é o europeu. Basta abrir o armário e ver o que vestimos. Basta olhar os quadros das paredes. Não vejo motivos para que mudemos nem vejo motivos para que os outros mudem os padrões deles.
Tenhamos diferenças. Por que não? A mesmice só interessa aos medíocres.
AK