Essa é a quarta e última parte de um capítulo paralelo à história do automóvel, os acessórios e modificações que eram comuns ou desejadas em carros, na época. Pesquisando sobre esse capítulo que tanto gosto, acabei chegando até o Galaxie Caltabiano, peça única e que foi apresentado na terceira parte dessa matéria.
Mas esse capítulo me leva ao tempo em que eu estava procurando um Maverick, eu queria um carro de configuração diferente. Minha ideia era um sedã, V-8, simplesmente por ser um carro diferente e com boa velocidade final (segundo as revistas da época, maior que a do GT), mas acabei chegando a um automóvel que por tempos duvidei da existência: o Maverick Quadrijet — eu e muita gente (foto de abertura).
O carro estava anunciado como um Maverick qualquer, embora tivesse nele as faixas e adereços externos comuns à versão esportiva GT, as duas travas no capô e o console de túnel com relógio. Na primeira fase das negociações, por curiosidade pedi a plaqueta do carro: uma surpresa, tratava-se de um Super (versão mais básica), mas equipado com motor V-8 e câmbio de quatro marchas, ou seja, mecanicamente igual a qualquer GT V-8, mas feito num modelo de entrada.
Minha curiosidade aguçou mesmo quando vi, ainda, pelas fotos as rodas palito, telas de alto-falante, tweeter e faróis amarelos. Marquei de ir ver o carro e, chegando lá, ainda mais detalhes curiosos: antena elétrica Truffi e buzina Fiamm com dupla função. Estava, ali naquele anúncio, um carro que tinha uma configuração interessante “de plaqueta” e repleto de acessórios de época. Comecei a me interessar pelo veículo.
O dono do carro confessou que perdeu o interesse no carro quando descobriu que o veículo não era um GT, seu pai havia recebido o carro como parte do pagamento de uma máquina de perfuração em 1978, como ele mesmo confessou: “O carro tinha apenas três anos de uso e era lindo”. Há dois anos, quando foi submeter o carro à certificação de originalidade (placa preta) o avaliador disse que o veículo era um Super e não de um GT. Pronto, naquele momento o mundo dele desmoronou, pensou que seu pai havia sido enganado e ficado com o carro por quase 40 anos.
Fui ver o carro e enquanto ouvia a história de lamentos e compartilhava do seu sentimento, ouvi uma frase esquisita, “Mas acho que é um GT, porque esse carro tinha aquele carburador grande”. Retruquei que o carburador do GT era o mesmo de qualquer V-8 e ele respondeu que não, apontando para onde estaria o carburador original. Completou com: “Tiramos nos anos 80, quando a gasolina estava muito cara”.
Olhei para o canto da garagem, havia um Toyota Bandeirante desmontado e cheio de peças no interior. Olhei para aquela pilha de peças e iniciei um mergulho, procurando qualquer carburador. Não demorou muito e achei um Quadrijet Holley ao lado de um coletor de admissão Edelbrock.
O Marquinho, meu melhor amigo e fiel escudeiro, analisando o Quadrijet encontrado, notou que ele era usado, mas incrivelmente conservado, “Precisaremos apenas trocar as juntas” — disse.
Meu primeiro pensamento foi de que alguém deveria ter adaptado aquilo na época, pois dificilmente a Ford usaria carburador de uma marca e coletor de outra. Eu mal sabia que estava completamente errado. Debaixo do tapete traseiro uma pasta guardava o manual do proprietário e um punhado de notas fiscais, a principal delas da concessionária Cia. Santo Amaro de Automóveis, referente à compra do carro, 0-km, na qual constava os dizeres “Carburação de Competição LAG”.
Comecei a pesquisar sobre o carro e encontrei propagandas da Cia. Santo Amaro de Automóveis com o “Maverick Quadrijet”. As matérias da época diziam que Luiz Antônio Greco — daí o LAG citado acima, são as iniciais do seu nome —, o chefe de equipe da Ford, era o responsável em instalar e dar a garantia do Kit Quadrijet nos Maverick. Qualquer modelo com motor V-8 poderia receber a preparação. Quando a gente não sabe tem que ir atrás dos mestres, e foi isso o que eu fiz.
Passei a pesquisar. Bob Sharp era um dos citados na imprensa. Roberto Nasser e Claudio Carsughi fizeram matérias, na época. Falei com alguns jovens estudiosos: Lucas Vane, Tonhão Ribeiro e Juninho Fonseca. Os dois últimos são jovens e donos de Maverick, pesquisam o modelo com uma disposição admirável, enquanto que o primeiro é meu grande amigo de caçadas às peças e longas conversas sobre detalhes curiosos da história automobilística.
De fato, a Ford fez um verdadeiro catado de peças para montar os Quadrijet, e o motivo era um só, ter desempenho para derrotar os Opalas 250-S que, com seus motores de seis cilindros, estavam andando mais que os V-8. O coletor de admissão era o 4FB, modelo mais baixo da Edelbrock, com um carburador Holley Quadrijet 4667 de 600 cfm (iniciais, em inglês, de pés cúbicos por minuto) e com segundo estágio mecânico. Os tuchos mecânicos, com molas de válvulas duplas e comando Iskanderian, formavam o pacote de preparação, simples e que dava ao carro mais 56 cv com apenas um dia de oficina, passando de 199 cv para 255 cv.
Vale uma explicação: na época a indústria automobilística daqui fornecia números de potência e torque SAE brutos. A partir do início dos anos 1990 foram adotados valores líquidos segundo a norma brasileira NBR 5484, igual à americana SAE J3049. Por essa norma o Maverick V-8 desenvolvia 135 cv e com o kit Quadrijet passava a 180 cv, ganho de 45 cv. Para comparar, o 6-cilindros Chevrolet normal era declarado com 118 cv e o 250-S, com 153 cv.
Desvendado o mistério de que o carro não se tratava de uma modificação moderna, passei a querer saber quem seria o primeiro dono. Na contracapa do manual do proprietário um nome incomum, Wilhelm, seguido por um sobrenome de origem belga. e um endereço relativamente próximo de onde moro, um condomínio onde tenho alguns amigos, entre eles os pilotos de Fórmula 1 Alex Dias Ribeiro e Emerson Fittipaldi. Foi fácil entrar no vasto condomínio de prédios com o Maverick, na esperança de promover um encontro.
Por interfone, descobri que os atuais donos do apartamento não têm mais nenhum parentesco com a família que viveu lá nos anos 70. Recorri às redes sociais, nada. Passei a pesquisar do jeito antigo, nas listas telefônicas e encontrei em outro estado o mesmo sobrenome, passei a gastar com interurbanos. Mais telefonemas e consegui o WhatsApp do Sr. Wilhelm. Já comecei a conversa enviando fotos do carro.
O jovem paulistano Wilhelm havia entrado na faculdade pública, em 1975, para fazer engenharia mecânica. Seu pai havia-lhe prometido que se entrasse numa universidade ele teria um bom emprego na empresa da família, uma empresa de mineração que tinha escritório em São Paulo e atividades nos estados do Paraná, Goiás e Minas Gerais.
A promessa do patriarca ia além, se a faculdade fosse pública ele ganharia um bom automóvel 0-km. O problema é que para o pai dele carro bom era da Willys, o velho empresário trocava — todos os anos — de Itamaraty. Com a paralisação do modelo em 1971 o sistemático senhor ficou por dois anos andando com o mesmo carro, trocando-o só em 1973 por um Maverick, que era lançamento e tinha o motor de seis cilindros do Itamaraty. Tudo o que o Wilhelm não queria era um Maverick seis-cilindros.
Como havia conseguido entrar numa faculdade pública, então teria o trabalho bem remunerado e o carro, mas ele queria um Maverick GT e não o modelo seis-cilindros. Seu pai havia disponibilizado valor suficiente para um Super Luxo seis-cilindros, então veio-lhe a ideia: comprar pelo valor de um seis-cilindros de luxo um V-8 simples.
Foram dois meses de espera entre o pagamento e o carro estar disponível para ser retirado. O motivo era simples: não eram comuns pedidos do Super com motor V-8 e câmbio de quatro marchas, por isso o carro não existia para pronta entrega.
Nesse meio-tempo Wilhelm fez mais economias e veio a ideia de instalar a carburação de competição. O sonho de pintar as faixas e instalar os detalhes de GT ficou para outra oportunidade. Em apenas um ano o carro tinha mais do que a aparência da versão esportiva, recebeu ar-condicionado, rodas de tala larga da Jolly e um conta-giros Smiths. Transformou o cupê azul num típico carro de playboy.
No ano seguinte o entusiasta pelo modelo adquiriu mais um Maverick V-8, dessa vez um Super Luxo de quatro portas, branco, com teto de vinil, câmbio automático e nenhuma preparação, esse era o carro de uso diário, como bem cabia a um homem sério e de negócios.
O cupê de “playboy” foi ficando de lado, passou a ser um carro de final de semana, mas os dias livres eram poucos, já que seu comprometimento na empresa familiar estava cada vez maior. Até que, em pouco tempo os dois Mavericks foram oferecidos como pagamento de alguns maquinários, mas só o azul foi aceito.
História confirmada, munido de notas fiscais e comprovações de mercado da época, com anúncios e matérias, ficou fácil comprovar que o veículo está conforme diz o workshop de 2014 da FBVA (Federação Brasileira de Veículos Antigos), onde acessórios, adaptações e pedidos especiais passaram a ser aceitos quando o processo está com documentação e comprovação anexada.
Por mim, um veículo ter placas pretas ou cinza pouco importa, tenho carros dos dois jeitos, mas essa foi minha maneira de demonstrar aos antigos donos (que hoje são meus amigos) de que eles fizeram um excelente trabalho preservando o automóvel e que o Maverick está conservado e à disposição deles para matarem saudade sempre que quiserem.
Uma forma de agradecimento por terem criado e preservado essa história repleta de acessórios.
PT
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